Aquela criança ainda sou eu
- Opinión
Neste Dia da Criança, vou ao encontro daquela que ainda sobrevive
O diferente é que o mundo era longe de minha aldeia abrigada entre montanhas. E eu não tinha idéia de que o sofrimento não atingia apenas adultos...
Fui uma criança nem rica nem pobre; feliz. Meus pares de sapato eram dois, o da escola e o de missas dominicais e aniversários. O divertido, porém, era andar descalço na lama deixada pelas chuvas, enfiar as pernas na enxurrada lavando ladeiras, sentir na sola dos pés a cócega áspera dos paralelepípedos que cobriam as ruas de Belo Horizonte.
A falta de brinquedos industrializados, caros e raros, estimulava-nos a criatividade. Com a mente povoada pelos contos dos irmãos Grimm e as histórias de Hans Christian Andersen, de um cabo de vassoura nascia um cavalo; de uma tábua e quatro rolimãs, um carrinho; de um caixote, um castelo; de um pedaço de chumbo derretido, o imbatível exército dos soldadinhos de Napoleão...
As narrativas de Monteiro Lobato nos induziam a recriar, nos quintais arborizados, o sítio do Picapau Amarelo. Sim, havia casas e, aos fundos, quintais ensolarados, jabuticabeiras e goiabeiras que nos abrigavam, pontes e trapézios em nossas aventuras de um Tarzan indígena. Meninos armados de arco e flecha e, à parte, meninas entregues aos cuidados de bonecas, preparando saborosos e imaginários quitutes...
A infância se derramava, generosa, por aqueles dias imensamente longos. Para tudo havia tempo – escola, deveres de casa, esporte, brincadeiras – e ainda sobrava. E a disciplina paterna impunha-nos limites e proteção: banho tomado antes do café da manhã e do jantar, toda a família reunida à mesa no horário das refeições, dinheiro curto para as matinês de domingo, o desejo livre de ansiedades e imune ao consumismo.
A palavra colesterol inexistia, de modo que de tudo se comia, sobretudo graças à oferta prestimosa dos feirantes aos nos ver em companhia da mãe: uma fatia de abacaxi ou mamão; o caqui maduro; o doce de leite no copinho de sorvete; a lasca leitosa de queijo de Minas...
Nem traziam os dicionários o vocábulo grife. Sequer prestávamos atenção à marca do tênis e da roupa usados, coisas que, como o material escolar, herdava-se de irmão em irmão, já que eram feitos para durar, como as bicicletas imorredouras.
Nossas molecagens desaforavam adultos, sem ofensas ou danos: atirar espoletas em caixas de correio, passar trote pelo telefone, colar chicletes na cadeira do professor, prender com esparadrapo a campainha da vizinha...
Havia um confortável sentimento de pertença ao clã, fiel a seu código de conduta: o mutirão culinário de mãe e tias confeitando cada docinho da festa de aniversário; a árvore de Natal grávida de primícias e promessas; os domingos fartos à mesa dos avós; a magia encantadora do circo; os piqueniques à beira da Lagoa da Pampulha.
Mudou o mundo, mudou o Natal, e também a infância. Quebra-se o encanto, rareiam os avós pacientes, a TV suga a imaginação infantil, a fantasia colore-se de logomarcas. A rua está interditada; o quintal desloca-se para o shopping; o desejo é contabilizado; a alegria maquiada; os brinquedos descartáveis.
Encolhe-se agora a respeitosa distância entre crianças e adultos, abrindo espaço à irreverência, ao desrespeito, à falta de educação. Não há que generalizar, é verdade. Mas espanta-me ver filhos ditarem ordens aos pais e crianças, no ônibus, indiferentes aos mais velhos que viajam em pé.
Perdeu a infância sua inocência? Ou a inocência já não tem infância? Quantos pais oram com seus filhos? Quantos despem-se do pudor de acarinhá-los? Outrora um simples sorvete aquecia o reduto indelével da memória.
Nosso heróis traziam o marca messiânica do altruísmo, embora algemados pelo maniqueísmo da divisão do mundo entre as forças do bem e do mal. Obedecer era uma condição, não uma imposição. Manter disciplina em sala de aula, uma regra, não uma exceção. Fazia-se da religiosidade a porta aberta ao encontro do imanente com o transcendente, do natural com o sobrenatural, do humano com o divino. Como consolava-nos ter anjos de guarda!
Há ainda uma criança que me povoa. Continua alegre, amorosa, mergulhada
Há muitas crianças prematuramente envelhecidas pelo trabalho precoce, pela exploração sexual, pela indiferença dos adultos cujos corações de carne petrificaram-se, incapazes de encantamento, curiosidade e vertigem d’alma frente à imensidão do porvir. Engessados pela letargia da amargura, resistem a tirar os sapatos da sisudez, meter os pés na lama das alvíssaras, deixar que a enxurrada do imprevisto ensope roupas e pele, ressuscitando o sublime momento da infância.
- Frei Betto é escritor, autor de “Alfabetto – autobiografia escolar” (Ática), entre outros livros.
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