A crise na sub-região andina

17/03/2008
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A crise nas relações entre os governos da Colômbia e da Venezuela, da Colômbia e do Equador e, mais recentemente, da Colômbia e da Nicarágua nasceu, paradoxalmente, da utilização de uma política equivocada para resolver um problema doméstico: o tema do intercâmbio humanitário em particular e da confrontação com as guerrilhas em geral, durante os cinco anos de governo do presidente Álvaro Uribe Vélez.

Lembremos que Uribe conquistou a Presidência a partir do estrondoso fracasso da política de negociação do presidente Andrés Pastrana Arango (1998-2002), que outorgou status político às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, Farc, concedeu-lhes uma zona desmilitarizada (zona de despeje) de 42 mil km2 na região do Cagúan e lhes deu direito a uma negociação no meio do conflito. As Farc, sem senso de compromisso, continuaram seqüestrando, incrementaram a sua participação no gerenciamento de laboratórios de processamento de cloridrato de cocaína e entraram para o ramo de processamento da droga, aumentando o cultivo de coca etc.

Tudo isso os conduziu a um grande descrédito entre a população, que não entendia como podiam continuar seqüestrando e aproveitando a zona desmilitarizada para cometer delitos sem apresentar alternativas concretas na mesa de diálogo para avançar na negociação política do conflito armado que mantêm com o Estado colombiano há mais de 40 anos.

Aproveitando o descrédito, Uribe promete derrotar as Farc em quatro anos, promete ter mão dura, com a agravante de ele mesmo ser vítima das Farc, posto que seu pai, Alberto Uribe Serra, foi assassinado pelo grupo guerrilheiro na década de 1980. Uma boa parte de seu gabinete é formada por vítimas diretas das Farc: seu chanceler, Fernando Araújo Castro, foi seqüestrado e ficou nas mãos dos guerrilheiros por mais de cinco anos; sua ministra da Educação, Cecília Maria Vélez, sofreu o seqüestro de vários de seus familiares mais próximos; e outros de seus amigos mais íntimos também sofreram na própria pele os desmandos da guerrilha.

Chegando ao poder, Uribe arremete contra as Farc que, nos últimos meses do governo Pastrana, tinham sido incluídas na lista de organizações terroristas tanto pelo governo dos Estados Unidos como pela União Européia. Uribe aprofunda a condenação e tenta, durante encontro realizado na América Latina, que os Estados desta parte do mundo incluam as Farc no rol de organizações terroristas. Até agora, não obteve êxito. Todos os governos - possivelmente, com exceção do México sob o governo de Vicente Fox, que fechou um escritório das Farc na cidade do México - se negaram a aceitar esta reiterada solicitação de Uribe. Os governos da região se negaram, pois sempre consideraram que, independentemente destas organizações armadas cometerem atos terroristas e participarem de negócios do narcotráfico, continuam sendo expressões políticas com as quais, cedo ou tarde, o governo terá que se sentar à mesa do diálogo e da negociação política.

Esta postura política é que permitiu que governos da América Latina, em particular da Venezuela, do Equador e da Nicarágua, tenham se distanciado da política de Uribe no que diz respeito a este ponto. Hoje, sabemos que mantiveram uma fluida relação com as Farc, como resultado de seu papel no intercâmbio humanitário. As revelações do computador de Raul Reyes, morto recentemente pela ação de tropas colombianas, indicariam que, por causa do papel crescente da França, da Venezuela e do Equador, as relações de diálogo e as libertações unilaterais de seis seqüestrados se deram, entre outras razões, pelas fluidas relações entre os governos e as Farc, representadas por Raul Reyes.

Internacionalização de acordos humanitários

Durante os cinco anos do governo Uribe, a porta foi fechada várias vezes para a tentativa de uma negociação que conduzisse a um acordo humanitário e ao diálogo político para sair do conflito armado interno. Os principais assessores de Uribe negam, apesar de todas as evidências empíricas, a existência de um conflito interno. Evidência empírica como a existência, na Colômbia, de aproximadamente 4 milhões de pessoas desalojadas, principalmente das zonas rurais; de 5 mil assassinatos relacionados com a política durante os últimos dez anos; de 47 seqüestrados, políticos, militares e policiais, que as Farc mantiveram em cativeiro por mais de cinco anos, esperando negociação com o Estado colombiano em troca da libertação de uma centena de detentos do grupo; da sorte de outros 650 seqüestrados mantidos em cativeiro com o intuito de cobrar recompensas econômicas, das quais as Farc não querem falar. Mas o governo negociou com bandos armados da direita, os chamados grupos paramilitares ou de autodefesa. Para eles, estabeleceu uma zona desmilitarizada no norte do país, em Santafe de Ralito, que esteve ativa durante mais de oito meses.

As cifras do governo indicam que 31 mil paramilitares entregaram suas armas e se submeteram a um processo muito questionado na Colômbia por causa da elevada impunidade. Estas provas ácidas indicam que existe um conflito de vastas proporções. Entretanto, os gênios mais próximos a Uribe assinalam que na Colômbia não há conflito armado de natureza política, e sim ameaça terrorista. Por isso, se negaram a desmilitarizar uma área de dois municípios, Pradera e Florida, no departamento do Vale do Cauca, na costa colombiana do Oceano Pacífico, para que durante 45 dias, e sob vigilância da comunidade internacional, ocorressem os diálogos e as negociações necessárias para o intercâmbio de seqüestrados em mãos das guerrilhas por detentos das Farc em mãos do Estado.

Tanto Uribe como as Farc fizeram do intercâmbio humanitário uma queda-de-braço política. Para Uribe, permitir a desmilitarização durante alguns dias e a negociação para a libertação dos militares e policiais que se encontram nas mãos das Farc significa conceder status político ao grupo, o que faria o mito da ameaça terrorista cair em descrédito. Além disso, o exporia, perante a opinião pública colombiana, como um mandatário fraco que tem que negociar com terroristas. Para as Farc, se obtivessem uma zona desmilitarizada, ainda que por tempo limitado, enviariam a mensagem de que não estão derrotadas e que conseguiram dobrar Uribe, obrigando-o a negociar. Nesta lógica perversa, os seqüestrados morrem lentamente na selva onde vivem, privados de qualquer direito, amarrados, maltratados etc.

É sobre esta realidade que se levanta a intervenção de terceiros países. Não falemos de todos os subterfúgios utilizados por Uribe para se opor ao intercâmbio humanitário. Vamos nos referir apenas à fase final. Dada a pressão internacional da União Européia, de parlamentares norte-americanos, principalmente do Partido Democrata, de países da América Latina e da França, pela dupla nacionalidade da ex-candidata presidencial Ingrid Betancourt, e das Agências das Nações Unidas, o presidente Uribe decidiu, em 15 de agosto de 2007, nomear como facilitadores, na busca por um acordo humanitário, a senadora liberal Piedad Córdoba e o presidente da Venezuela, Hugo Chávez Frite.

Em 31 do mesmo mês, Uribe anuncia que autoriza Chávez a receber um delegado das Farc. Ao mesmo tempo, na Colômbia, Uribe decide, por solicitação do presidente da França, Nicolas Sarkozy, a libertação unilateral de Rodrigo Granda, chamado erroneamente de chanceler das Farc. O guerrilheiro havia sido seqüestrado por organismos do Estado colombiano em Caracas, em 13 de dezembro de 2004. Na ocasião, Uribe falou em razões de Estado para pô-lo em liberdade, fato que ocorreu em 5 de junho de 2007.

Abruptamente, em 21 de novembro de 2007, Uribe, unilateralmente, decidiu retirar da mediação tanto a senadora Piedad Córdoba como o presidente Hugo Chávez. Sua mediação só poderia ir até a libertação de Clara Rojas, de seu filho Emmanuel e de Consuelo González, ou seja, 31 de dezembro de 2007. O motivo foi a ligação de Piedad Córdoba ao comandante geral do Exército da Colômbia, Mario Montoya, e uma saudação de Chávez ao mesmo general. O intercâmbio humanitário havia se internacionalizado e trazido como conseqüência – uma vez que a Venezuela de fato aceitara as Farc como interlocutor válido – o reconhecimento do caráter político do grupo, o que ficou em evidência na reunião realizada em 11 de novembro de 2007, entre Chávez e Ivan Márquez, membro do secretariado das Farc.

As Farc entenderam rapidamente que o que Uribe lhes negava na Colômbia poderiam obter com os governos interessados no acordo humanitário. Governos que, além disso, poderiam lhes facilitar certas condições de alívio no combate militar que diariamente mantêm com as Forças Armadas da Colômbia. Status político e possibilidades de fazer pressão para obrigar o governo de Uribe a dialogar com eles.

Chávez, por sua vez, entendeu que parte de seus problemas internos poderia ser aliviada com uma grande operação política e mediadora relacionada à libertação dos primeiros seqüestrados. Delegação da mais alta esfera de nove países, incluindo o ex-presidente da Argentina, Néstor Kirchner, e até o diretor de cinema norte-americano, Oliver Stone. Uma grande operação política e um grande show de mediação em troca de outorgar, de fato, às Farc, o caráter de grupo insurgente de natureza política.

Isto já era inaceitável para Uribe e seus assessores. Não apenas destruía o mito da inexistência de um conflito armado interno, como abria portas às Farc para um trabalho internacional no mais alto gabarito. A ponto do presidente francês gravar um programa no qual se dirigiu a Manuel Marulanda Vélez, líder máximo deste grupo, para lhe dizer que deveria libertar Ingrid Betancourt. As Farc nunca tinham sonhado com isto. Estavam acuadas militarmente e, de alguma forma, golpeadas pelo Estado colombiano que lhes havia infligido algumas baixas de comandantes significativos, o que, de pronto, demonstra que, embora não estivessem derrotadas, as Farc estavam enfraquecidas no fundo de nossas selvas.

Aqui começa a escalada do conflito entre o governo colombiano e seus vizinhos. Chávez, que não é um bom exemplo de prudência ou de diplomacia, entra em atrito com Uribe. O embaixador da Venezuela é chamado para consultas em dezembro de 2007 e não retorna. O embaixador da Colômbia na Venezuela não é recebido e Chávez ameaça afetar o intercâmbio comercial que, em 2007, chegou a 5,2 bilhões de dólares. De fato, a Venezuela é o segundo maior sócio comercial da Colômbia depois dos Estados Unidos.

Em meio a esta situação, as Farc decidem pela libertação unilateral de um segundo grupo de reféns. São libertados, na quarta-feira, 27 de fevereiro, os ex-congressistas Gloria Polanco, Orlando Beltrán, Jorge Eduardo Géchem e Luís Eladio Pérez, que estiveram presos nos últimos seis anos. As Farc só reconhecem como interlocutores válidos a senadora Piedad Córdoba e o presidente da Venezuela, Hugo Chávez. É a eles que os reféns são entregues.

Intervenção militar no Equador

Tudo indica que o acordo humanitário continuava avançando, não apenas entre as Farc e Chávez, mas também com o presidente Rafael Correa, do Equador. As Farc entenderam que era mais rentável negociar com os governos da vizinhança do que com um governo surdo, refém de sua própria vaidade, alimentada pelos resultados das pesquisas que lhe dão opinião favorável entre os colombianos em uma percentagem próxima de 80%. Pressionado pela comunidade internacional que não entende a desumanidade das Farc, mas menos ainda a do governo - que deveria ser a expressão do interesse público e o protetor da vida - da honra e dos bens de todos os colombianos e, sobretudo, dos seqüestrados. Não cabe a menor dúvida de que, assim, o governo equatoriano também entrou no tema do intercâmbio humanitário e é provável que tenha facilitado a comunicação e a instalação de um acampamento perto de suas fronteiras, a partir do qual Raúl Reyes estabelecia uma agenda política e militar. No grupo de libertados estaria incluída Ingrid Betancourt, que se encontra gravemente doente.

É neste contexto que o governo de Uribe toma a decisão de fazer uma incursão militar no acampamento de Raúl Reyes, que estava localizado em território equatoriano, violando a soberania nacional desse país. Quanto a isso, hoje, não cabe a menor dúvida. Reyes foi morto em território equatoriano, onde havia um acampamento da já citada guerrilha. As Forças Armadas entraram mediante o uso da força, resultando na morte de Reyes e de outros 22 guerrilheiros. Mas o que ninguém questiona é que o comando colombiano tenha entrado e trazido o cadáver de Reyes e de outro guerrilheiro, deixando várias guerrilheiras feridas no local dos acontecimentos.

Uribe quer levar seu confronto com as Farc à arena internacional e, assim, põe em crise a própria economia e as relações de boa vizinhança. Aplicando a teoria de que na guerra contra o terrorismo tudo é válido, atropela o direito internacional e projeta uma imagem de conspiração internacional contra os interesses da Colômbia.

É óbvio que se deixarmos de lado o nacionalismo e o chauvinismo e fizermos um exame sereno da situação, deveremos concluir que a confrontação com nossos vizinhos é uma decisão política claramente equivocada. Refiro-me à negativa de Uribe de negociar um acordo humanitário, com a entrada de outros países, convidados inicialmente por ele mesmo. Tal fato nos levou a uma escalada na qual três países virtualmente romperam relações diplomáticas com o governo da Colômbia: Equador, Nicarágua e Venezuela.

Diante da crise política e diplomática, é necessário retomar o caminho do diálogo e da negociação, que não será fácil dado a prática de levar o confronto até seus limites de maneira pública. Será necessário insistir por uma saída negociada. Porém, ao mesmo tempo e ainda com a possível libertação de Ingrid Betancourt e de outros seqüestrados, é necessário insistir no acordo humanitário que, com as lições aprendidas, deveria ser feito em território colombiano, em uma área desmilitarizada por um determinado tempo e com a presença da comunidade internacional. É necessário retomar o caminho da negociação e evitar, ao máximo, as interferências forasteiras. O que dificulta esta saída é a teimosia de Uribe e os interesses que movem terceiros, dentre os quais, obviamente, os Estados Unidos.

Por ora, as sociedades civis da Colômbia, Equador e Venezuela devem, sem hesitação, expressar o repúdio à guerra e às ameaças militaristas. É preciso encontrar os cenários internacionais adequados para dirimir, pela via política, as contradições que surgiram nas últimas semanas.

Publicado em 07/3/2008.

Pedro Santana Rodríguez
Presidente da Corporación Viva la Ciudadanía

Tradução: Margaret Cohen

Fonte: Agencia IBASE

http://www.ibase.br/modules.php?name=Conteudo&pid=2255

https://www.alainet.org/pt/articulo/126483?language=en
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