A militarização e suas cumplicidades
28/04/2008
- Opinión
O caráter militarista da Europa não se equipara ao dos EUA, apesar de que sua intenção de simular estilos hegemônicos em relações com o resto do mundo.
A União Européia é um dos blocos econômicos mais potentes do mundo, com grandes empresas transnacionais e políticas verdadeiramente expansionistas. A visibilidade adquirida ultimamente por muitas destas empresas, muitas com bases na América Latina, criaram uma falsa imagem de multipolaridade (sic), que se reforça com a idéia do vertiginoso e ameaçante crescimento chinês, sempre vinculada à idéia do “perigo amarelo”, tão presente no imaginário estadunidense, e que resvala para todo o resto do mundo.
Efetivamente, os Estados Unidos estão longe de ser a única potência econômica do mundo, mas seguem sendo a única com capacidade de determinar paradigmas gerais de comportamento, tanto no terreno da produção como no das regras do jogo em um sentido mais amplo.
Isso pode ser verificado, entre outras coisas, na procura por margens de manobra particulares por parte de cada bloco de poder que, não obstante, não rompem com as regras estabelecidas de acordo com a concepção organizativa e com os interesses da hegemonia estadunidense.
Não há nunca poder indisputável. O capitalismo é a competição levada a todos os terrenos e todos os níveis e, nesse sentido, a hegemonia tem que se ratificar e se redesenhar a cada momento. Faz isso convencendo, fascinando ou impondo um modo de organização social como universal (o american way of life, por exemplo, que até agora não tem um equivalente) por todos os meios possíveis: englobando territórios e monopolizando recursos; marcando políticas e pautas de vigência universal (encaminhadas pelo Fundo Monetário Internacional, Organização Mundial do Comércio, Organização dos Estados Americanos, Banco Mundial, OMS, etc); generalizando modos de vida, referenciais de beleza e feiúra, de êxito e de fracasso através da indústria cultural; impondo padrões tecnológicos e produtivos; controlando o uso do território e do espaço, dos movimentos e comunicações, da informação; definindo disciplinas, limites, ameaças, crimes e castigos.
A capacidade para manter a hegemonia não depende da força física, mas principalmente da simbólica, que se apóia e surge, sem dúvida nenhuma, das relações fortemente coercitivas mas supostamente livres sobre as que se assenta o capitalismo. Hoje em dia todo competidor, toda possível hegemonia, tem que poder jogar em um tabuleiro múltiplo.
Tomando a nítida expressão do Comando Conjunto dos Estados Unidos, tem que poder abarcar o espectro completo de geografias, de dimensões, de níveis, de espaços. Jogar simultaneamente em todos os continentes, nos oceanos e no espaço; nas macrodimensões sem descuidar das micro; na produção, extração, comercialização, construção de sentidos, na política, na ecologia, tecnologia, na disciplina e organização planetária e espacial do controle de todos os elementos indispensáveis para a reprodução presente e futura.
Nesta batalha há disputas e acompanhamentos. Acompanhamentos com margens de autonomia relativas que permitem não deixar de beneficiar-se do processo geral e manter dentro dele posições vantajosas embora não hegemônicas. Este é no momento o caso da União Européia e suas empresas.
A supremacia militar, que por certo supõe supremacia tecnológica e superioridade em capacidade totalizadora, é só uma das facetas que assume o poder hegemônico e está indissoluvelmente ligada ao poderio econômico e territorial. Sustenta-o e é seu suporte. Mas é uma das facetas mais representativas da medida em que a hegemonia tem sido capaz de disciplinar e controlar as relaciones mundiais.
Por essa razão, e pela brevidade do espaço, convém destacar alguns dados que nos podem indicar as dimensões relativas dos dois blocos de poder: o dos Estados Unidos e o da União Européia, e que nos indicam também a similitude em suas políticas e interesses.
Bases militares na Europa
Surpreendentemente, a Europa continua sendo o continente com maior número de instalações militares estadunidenses fora de seus próprios territórios. Muitas destes instalações ou bases foram colocadas depois da Segunda guerra mundial, obviamente, mas se mantêm até a atualidade sem que os respectivos governos tenham feito algo para evitar a situação. Quem está as colocando em questão crescentemente são os povos, não só os europeus, mas de todo o planeta. Entretanto, estas bases são um sinal muito claro de uma força (não só militar) completamente díspar.
Das 823 bases que o Departamento de Defesa reconhece fora dos Estados Unidos e seus territórios, 513 estão na Europa (DoD, 2008). Ocupam um território total de 1,043 km2, e têm um valor de 62,500 milhões de dólares. A maior parte destas bases se encontra na Alemanha e Itália, com 287 e 89 respectivamente, e o resto se reparte entre Reino Unido (57 bases), Portugal (21), Bélgica (18), Islândia (11), Holanda (10), Grécia (7), Espanha (5), Luxemburgo (3), Noruega (3) y Dinamarca (2, sem contar a da Groenlândia).
Se esta ocupação militar incomoda muitos cidadãos, os governos dos países involucrados desenvolveram um sistema cooperativo que presumivelmente lhes rende alguns benefícios. Não têm que se desgastar buscando eliminá-las, questão que implicaria níveis de armamentismo e de conflituosidade muito maiores do que os atuais e, ao mesmo tempo, sua permanência os converte em aliados da maior potência bélica do planeta, situação que em certo sentido lhes tem resultado mais favorável que a dos opositores.
Esta cumplicidade leva aos países europeus a adotar critérios e políticas completamente alinhadas ao Pentágono. É notável que quando o comparamos [o desenho da estratégia do Parlamento Europeu] com a estratégia de segurança nacional dos EUA, encontramos a mesma análise das ameaças: as armas de destruição em massa, o terrorismo e os chamados “Estados defeituosos”. (Pflüger, 2007).
Políticas expansionistas européias
O caráter militarista da União Européia não se equipara ao dos Estados Unidos, apesar de que, cada vez mais, se desenvolve mais sua intenção de simular estilos hegemônicos em suas relações com o resto do mundo. A África é o primeiro destinatário das políticas expansionistas européias, evidentemente, mas suas pretensões os lançam a áreas “descobertas” pela hegemonia ou pelos poderes regionais em outros continentes, ou ainda em lugares onde se podem colocar como complementares ou aliados, com possibilidades de benefício, ainda que não exclusivo e nem excludente.
No terreno dos orçamentos destinados ao setor militar, a distância entre Estados Unidos e o país seguinte da lista dos que mais gastam é abismal. Os Estados Unidos, sozinho, é responsável por 46 % dos gastos militares do mundo. Seguem: Reino Unido e França com 5 % do total mundial cada um e logo depois Japão e China, com 4 % cada um. Quinze países são responsáveis por 83 % dos gastos militares mundiais, mas os EUA gastam quase tanto como todos os outros países do mundo juntos. (Dados de SIPRI, 2008).
A diferença na envergadura bélica entre os blocos de poder tem um correspondente na envergadura econômica. As atividades dos Estados Unidos e suas empresas têm poucos equivalentes em outros lugares do mundo. No que se refere ao mercado de armas, como resultado da longa história da guerra fria, seu seguidor mais próximo é a Rússia.
Novamente, esta atividade está liderada pelos Estados Unidos como principal comerciante de armas no mundo, mas a brecha com relação ao resto é mais reduzida do que aquela existente nos gastos militares. Os principais exportadores de armas na atualidade, e há vários anos, são os Estados Unidos com 30 % do mercado, Rússia (25 %), Alemanha (10 %), França (8 %), Reino Unido (4%), Holanda (4%), Itália (2%), Suécia (2%), China (2%), Ucrânia (2%). Dez países, a maioria europeus, ocupam o 89 % do mercado mundial de armamentos (SIPRI, 2008), demostrando a proximidade ideológica e política dos que são ao mesmo tempo competidores, sócios e aliados na luta por garantir a perenidade do sistema.
O mundo se militarizou escandalosamente nos últimos anos, período este em que os povos têm se rebelado contra as políticas de exclusão, expulsão e esvaziamento. As vozes que exigem o fim das catástrofes ecológicas e sociais desencadeadas pelo capitalismo coincidem com uma revisão profunda da situação do mundo e da capacidade e mecanismos de disciplinamento realizada pelo maior think tank do planeta: o Comando Conjunto dos Estados Unidos de América. O resultado tem sido um aumento notável dos gastos militares, que cresceram 37% nos últimos 10 anos.
Só em 2006, os gastos militares alcançaram 1,204 bilhões de dólares (3.5 % más que em 2005) (SIPRI, 2008). Desse total, a União Européia gastou cerca de 16 %. Porcentagem não tão pequena apesar de sua diferença com os Estados Unidos, que indica quão falsa é a idéia do contrapeso que os capitais europeus fazem aos estadunidense.
Não há capitalismos amáveis, o capital não existe sem dominação e negação do outro. E o outro, lamentavelmente, são os povos do mundo que procuram viver com dignidade e decidir seus próprios destinos.
- Ana Esther Ceceña é socióloga mexicana, pesquisadora do tema militarização e imperialismo, coordenadora dos livros La tecnología como instrumento de poder - Ed. El Caballito, México - e Producción estratégica y hegemonía mundial, Siglo XXI, México.
Bibliografia
Department of Defense (DoD) 2008 Base structure report. Fiscal year 2007 baseline (A summary of DoD’s real property inventory).
Pflüger, Tobías 2007 La política militar de la Unión Europea. Entrevista con Sally Burch (http://alainet.org/active/17665 )
SIPRI 2008 Recent trends in military expenditure (http://www.sipri.org/contents/milap/milex/mex_trends.html
Fonte: Brasil de Fato
http://www.brasildefato.com.br
https://www.alainet.org/pt/articulo/127248
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