Os desafios do Fórum de Mídia Livre
11/06/2008
- Opinión
A luta pela recuperação da palavra crítica é latino-americana e internacional. Em janeiro de 2009, Belém do Pará estará sediando mais uma edição do Fórum Social Mundial. Podemos, de agora até o final do ano, trabalhar pelo fortalecimento dessa articulação e pela construção de uma agenda de debates que aponte para propostas concretas para a democratização da comunicação e da informação.
No dia 14 de maio deste ano, um grupo de mais de 750 intelectuais argentinos lançou uma carta aberta à sociedade alertando para o crescimento de um clima golpista no país, com participação ativa dos grandes meios de comunicação. Além disso, o documento advertiu os governos latino-americanos para uma batalha simbólica que não está sendo enfrentada. A manifestação dos intelectuais argentinos identifica bem um problema estratégico relacionado à atuação da mídia em toda a América Latina. O contexto político argentino fornece a moldura dessa advertência. Uma advertência que é pertinente à realidade política de toda a América Latina e que merece toda a nossa atenção. Os signatários do documento divulgado em Buenos Aires definiram do seguinte modo o contexto da crise política na Argentina, explicitada a partir da mobilização do setor ruralista contra o governo de Cristina Kirchner:
“Como em outras circunstâncias de nossa crônica contemporânea, hoje assistimos em nosso país a uma dura confrontação entre setores econômicos, políticos e ideológicos historicamente dominantes e um governo democrático que tenta implementar determinadas reformas na distribuição de renda e adotar estratégias de intervenção na economia. A oposição às retenções – compreensível objeto de litígio – deu lugar a alianças que chegaram a lançar a ameaça da fome para o resto da sociedade e lançaram questionamentos sobre o direito e o poder político constitucional do governo de Cristina Fernández para efetivar seus programas de ação, a quatro meses de sua eleição pela maioria da sociedade”.
O que essa realidade tem a ver conosco?
Tem a ver na medida que se refere a processos que nos são bastante familiares aqui no Brasil. Senão, vejamos as palavras seguintes do manifesto dos intelectuais argentinos sobre a natureza da ação da oposição ao governo de Cristina Kirchner:
“Instalou-se um clima de desconstituição que tem sido considerado com a categoria do golpismo. Não, talvez, no sentido mais clássico de incentivar alguma forma mais ou menos violenta de interrupção da ordem institucional. Mas não há dúvida de que muitos dos argumentos que se ouviram nestas semanas têm paralelos ostensivos com os que, no passado, justificaram esse tipo de intervenções e, sobretudo, um muito reconhecível desprezo pela legitimidade governamental”.
Essas palavras soam familiares. Elas falam da “barbárie política diária da mídia” e de uma “atmosfera política perigosa” alimentada pelos grandes meios de comunicação:
“Na atual confrontação em torno da política de retenções (impostos sobre produtos de exportação) desempenharam e desempenham um papel fundamental os meios massivos de comunicação mais concentrados, tanto audiovisuais como gráficos, de altíssimos níveis de audiência, que estruturam diariamente a realidade dos fatos, que geram ‘o sentido’ e as interpretações e definem ‘a verdade’ sobre atores sociais e políticos a partir de variáveis interessadas que excedem a busca de audiência. Meios que gestam a distorção do que ocorre, que difundem o preconceito e o racismo mais espontâneos, sem a responsabilidade por explicar, por informar adequadamente nem por refletir com ponderação as mesmas circunstâncias conflitivas e críticas sobre as quais operam”.
O documento prossegue:
“Esta prática de autêntica barbárie política diária, de desinformação e discriminação, consiste na gestação permanente de mensagens formadoras de uma consciência coletiva reacionária. Privatizam as consciências com um sentido comum cego, iletrado, impressionista, imediatista, parcial. Alimentam uma opinião pública de perfil anti-político, que desacredita a existência de um Estado democraticamente interventor na luta de interesses sociais. A reação dos grandes meios diante do Observatório da discriminação na rádio e na televisão mostra claramente um desprezo fundamental pelo debate público e pela efetiva liberdade de informação”.
Diante dessa prática de “barbárie política diária de desinformação e discriminação”, os intelectuais argentinos colocam como desafio para toda a América Latina, ou seja, para todos nós, “a recuperação da palavra crítica em todos os planos das práticas e no interior de uma cena social dominada pela retórica dos meios de comunicação e pela direita ideológica de mercado”. A recuperação de uma palavra crítica que “compreenda a dimensão dos conflitos nacionais e latino-americanos, que assinale as contradições centrais que estão em jogo, mas sobretudo que acredite ser imprescindível voltar a articular uma relação entre mundos intelectuais e sociais com a realidade política”.
Esse é um dos principais desafios que está colocado diante de nós que estamos construindo esse movimento de Mídia Livre no Brasil. Não se trata de uma luta que se encerra nas fronteiras nacionais. Não se trata também de um debate que se limita à reivindicação por critérios democráticos na distribuição de verbas públicas para o setor de comunicação. Há uma dimensão política nesta disputa que envolve um enfrentamento com fortes estruturas de poder político e econômico ligadas ao grande capital financeiro. É disso que se trata.
A luta pela recuperação da palavra crítica é uma luta latino-americana e internacional. É importante ter isso em mente no momento em que realizamos o primeiro Fórum de Mídia Livre no Brasil. Nossos problemas não são exclusividade nossa. Fazem parte de uma realidade internacional onde a chamada grande mídia não é um feudo dissociado de outras estruturas de poder. Como já disse Bernard Cassen, os proprietários dos grandes sistemas midiáticos são empresários transnacionais que, na imensa maioria dos casos, têm negócios diversificados em outros setores para além da mídia. Ou seja, eles estão conectados ao mercado global e são atores centrais do processo de globalização. Enquanto tal, conclui Cassen, esse sistema é um vetor ideológico estratégico da globalização do capital.
Cabe a nós, portanto, trabalhar pela construção de uma articulação latino-americana e internacional em torno da proposta de uma mídia livre. Temos uma grande oportunidade histórica para fazer essa luta avançar. Em janeiro de 2009, Belém do Pará estará sediando mais uma edição do Fórum Social Mundial. A agenda da mídia e da comunicação mais uma vez estará presente nos debates do FSM. Podemos, de agora até o final do ano, trabalhar pelo fortalecimento dessa articulação e pela construção de uma agenda de debates que aponte para propostas concretas para a democratização da comunicação e da informação. Esse é um dos principais desafios que está em nossas mãos.
- Joaquim Ernesto Palhares, Agência Carta Maior
Fonte: http://www.fndc.org.br/internas.php?p=noticias&cont_key=260321
No dia 14 de maio deste ano, um grupo de mais de 750 intelectuais argentinos lançou uma carta aberta à sociedade alertando para o crescimento de um clima golpista no país, com participação ativa dos grandes meios de comunicação. Além disso, o documento advertiu os governos latino-americanos para uma batalha simbólica que não está sendo enfrentada. A manifestação dos intelectuais argentinos identifica bem um problema estratégico relacionado à atuação da mídia em toda a América Latina. O contexto político argentino fornece a moldura dessa advertência. Uma advertência que é pertinente à realidade política de toda a América Latina e que merece toda a nossa atenção. Os signatários do documento divulgado em Buenos Aires definiram do seguinte modo o contexto da crise política na Argentina, explicitada a partir da mobilização do setor ruralista contra o governo de Cristina Kirchner:
“Como em outras circunstâncias de nossa crônica contemporânea, hoje assistimos em nosso país a uma dura confrontação entre setores econômicos, políticos e ideológicos historicamente dominantes e um governo democrático que tenta implementar determinadas reformas na distribuição de renda e adotar estratégias de intervenção na economia. A oposição às retenções – compreensível objeto de litígio – deu lugar a alianças que chegaram a lançar a ameaça da fome para o resto da sociedade e lançaram questionamentos sobre o direito e o poder político constitucional do governo de Cristina Fernández para efetivar seus programas de ação, a quatro meses de sua eleição pela maioria da sociedade”.
O que essa realidade tem a ver conosco?
Tem a ver na medida que se refere a processos que nos são bastante familiares aqui no Brasil. Senão, vejamos as palavras seguintes do manifesto dos intelectuais argentinos sobre a natureza da ação da oposição ao governo de Cristina Kirchner:
“Instalou-se um clima de desconstituição que tem sido considerado com a categoria do golpismo. Não, talvez, no sentido mais clássico de incentivar alguma forma mais ou menos violenta de interrupção da ordem institucional. Mas não há dúvida de que muitos dos argumentos que se ouviram nestas semanas têm paralelos ostensivos com os que, no passado, justificaram esse tipo de intervenções e, sobretudo, um muito reconhecível desprezo pela legitimidade governamental”.
Essas palavras soam familiares. Elas falam da “barbárie política diária da mídia” e de uma “atmosfera política perigosa” alimentada pelos grandes meios de comunicação:
“Na atual confrontação em torno da política de retenções (impostos sobre produtos de exportação) desempenharam e desempenham um papel fundamental os meios massivos de comunicação mais concentrados, tanto audiovisuais como gráficos, de altíssimos níveis de audiência, que estruturam diariamente a realidade dos fatos, que geram ‘o sentido’ e as interpretações e definem ‘a verdade’ sobre atores sociais e políticos a partir de variáveis interessadas que excedem a busca de audiência. Meios que gestam a distorção do que ocorre, que difundem o preconceito e o racismo mais espontâneos, sem a responsabilidade por explicar, por informar adequadamente nem por refletir com ponderação as mesmas circunstâncias conflitivas e críticas sobre as quais operam”.
O documento prossegue:
“Esta prática de autêntica barbárie política diária, de desinformação e discriminação, consiste na gestação permanente de mensagens formadoras de uma consciência coletiva reacionária. Privatizam as consciências com um sentido comum cego, iletrado, impressionista, imediatista, parcial. Alimentam uma opinião pública de perfil anti-político, que desacredita a existência de um Estado democraticamente interventor na luta de interesses sociais. A reação dos grandes meios diante do Observatório da discriminação na rádio e na televisão mostra claramente um desprezo fundamental pelo debate público e pela efetiva liberdade de informação”.
Diante dessa prática de “barbárie política diária de desinformação e discriminação”, os intelectuais argentinos colocam como desafio para toda a América Latina, ou seja, para todos nós, “a recuperação da palavra crítica em todos os planos das práticas e no interior de uma cena social dominada pela retórica dos meios de comunicação e pela direita ideológica de mercado”. A recuperação de uma palavra crítica que “compreenda a dimensão dos conflitos nacionais e latino-americanos, que assinale as contradições centrais que estão em jogo, mas sobretudo que acredite ser imprescindível voltar a articular uma relação entre mundos intelectuais e sociais com a realidade política”.
Esse é um dos principais desafios que está colocado diante de nós que estamos construindo esse movimento de Mídia Livre no Brasil. Não se trata de uma luta que se encerra nas fronteiras nacionais. Não se trata também de um debate que se limita à reivindicação por critérios democráticos na distribuição de verbas públicas para o setor de comunicação. Há uma dimensão política nesta disputa que envolve um enfrentamento com fortes estruturas de poder político e econômico ligadas ao grande capital financeiro. É disso que se trata.
A luta pela recuperação da palavra crítica é uma luta latino-americana e internacional. É importante ter isso em mente no momento em que realizamos o primeiro Fórum de Mídia Livre no Brasil. Nossos problemas não são exclusividade nossa. Fazem parte de uma realidade internacional onde a chamada grande mídia não é um feudo dissociado de outras estruturas de poder. Como já disse Bernard Cassen, os proprietários dos grandes sistemas midiáticos são empresários transnacionais que, na imensa maioria dos casos, têm negócios diversificados em outros setores para além da mídia. Ou seja, eles estão conectados ao mercado global e são atores centrais do processo de globalização. Enquanto tal, conclui Cassen, esse sistema é um vetor ideológico estratégico da globalização do capital.
Cabe a nós, portanto, trabalhar pela construção de uma articulação latino-americana e internacional em torno da proposta de uma mídia livre. Temos uma grande oportunidade histórica para fazer essa luta avançar. Em janeiro de 2009, Belém do Pará estará sediando mais uma edição do Fórum Social Mundial. A agenda da mídia e da comunicação mais uma vez estará presente nos debates do FSM. Podemos, de agora até o final do ano, trabalhar pelo fortalecimento dessa articulação e pela construção de uma agenda de debates que aponte para propostas concretas para a democratização da comunicação e da informação. Esse é um dos principais desafios que está em nossas mãos.
- Joaquim Ernesto Palhares, Agência Carta Maior
Fonte: http://www.fndc.org.br/internas.php?p=noticias&cont_key=260321
https://www.alainet.org/pt/articulo/128127
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