A propósito da "diretiva Retorno"

15/06/2008
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Carta do Presidente da Bolívia, Evo Morales, por causa da política de imigração da UE

Até finais da segunda guerra mundial, a Europa foi um continente de imigrantes. Dezenas de milhões de Europeus partiram para as Américas para colonizar, escapar das fomes, das crises financeiras, das guerras ou dos totalitarismos europeus e da perseguição a minorias étnicas.

Hoje, estou seguindo com preocupação o processo da chamada "diretiva retorno". O texto, validado no passado 5 de junho pelos ministros do Interior dos 27 países da União Européia, tem que ser votado em 18 de junho no Parlamento europeu. Sinto que endurece de maneira drástica as condições de detenção e expulsão aos imigrantes indocumentados, qualquer seja seu tempo de permanência nos países europeus, sua situação trabalhista, seus laços familiares, sua vontade e seus êxitos de integração.

Aos países da América Latina e América do Norte chegaram os Europeus, massivamente, sem vistos nem condições impostas pelas autoridades. Foram sempre bem-vindos, e continuam sendo, em nossos países do continente americano, que absorveram então a miséria econômica européia e suas crises políticas. Vieram a nosso continente para explorar riquezas e transferi-las para a Europa, com um muito alto custo para as populações originais da América. Como no caso da nossa Montanha Rica de Potosí e sua fabulosas minas de prata que permitiram dar massa monetária ao continente europeu do século XVI até o XIX. As pessoas, os bens e os direitos dos imigrantes europeus sempre foram respeitados.

Hoje, a União Européia é o principal destino dos migrantes do mundo o qual é conseqüência de sua positiva imagem de espaço de prosperidade e de liberdades públicas. A imensa maioria dos imigrantes vem a UE para contribuir com esta prosperidade, e não para aproveitar-se dela.

Ocupam os empregos de obras públicas, construção, nos serviços as pessoa e hospitais, que não podem ou não querem ocupar os Europeus. Contribuem para o dinamismo demográfico do continente europeu, para manter a relação entre ativos e inativos que torna possível seus generosos sistemas de segurança social e dinamizam o mercado interno e a coesão social. Os migrantes oferecem uma solução aos problemas demográficos e financistas da UE.

Para nós, nossos imigrantes representam a ajuda ao desenvolvimento que os Europeus não nos dão – já que poucos países alcançam realmente o mínimo objetivo de 0,7% de seu PIB na ajuda ao desenvolvimento. América Latina recebeu, em 2006, 68.000 milhões de dólares de remessas, ou seja, mais que o total dos investimentos estrangeiros em nossos países. A nível mundial alcança a 300.000 milhões de dólares, que superam os 104.000 milhões outorgados por conceito de ajuda ao desenvolvimento. Meu próprio país, Bolívia, recebeu mais de 10% do PIB em remessas (1.100 milhões de dólares) ou um terço de nossas exportações anuais de gás natural.

Quer dizer que os fluxos de imigração são benéficos tanto para os Europeus e de maneira marginal para nós do Terceiro Mundo já que também perdemos a contingentes que somam milhões de nossa mão de obra qualificada, em que de uma maneira ou outra nossos Estados, embora pobres, investiram recursos humanos e financeiros.

Infelizmente, o projeto de "diretiva retorno" complica terrivelmente esta realidade. Se concebermos que cada Estado ou grupo de Estados pode definir suas políticas migratórias em toda soberania, não podemos aceitar que os direitos fundamentais das pessoas sejam denegados aos nossos compatriotas e irmãos latino-americanos. A "diretiva retorno" prevê a possibilidade de um encarceramento dos imigrantes indocumentados até 18 meses antes de sua expulsão – ou "afastamento", segundo o término da diretiva. 18 meses ! Sem julgamento nem justiça ! Tal como está hoje o projeto de texto da diretiva viola claramente os artigos 2, 3, 5, 6, 7, 8 e 9 da Declaração Universal dos Direitos humanos de 1948. Em particular o artigo 13 da Declaração reza:

“1. Toda pessoa tem direito a circular livremente e a escolher sua residência no território de um Estado.
2. Toda pessoa tem direito a sair de qualquer país, inclusive do próprio, e a retornar a seu país.”

E, o pior de tudo, existe a possibilidade de encarcerar a mães de família e menores de idade, sem tomar em conta sua situação familiar ou escolar, nestes centros de abrigos onde sabemos ocorrem depressões, greves de fome, suicídios. Como podemos aceitar sem reagir que sejam concentrados em campos compatriotas e irmãos latino-americanos indocumentados, dos quais a imensa maioria leva anos trabalhando e integrando-se? De que lado está hoje o dever de ingerência humanitária? Onde está a “liberdade de circular”, a proteção contra encarceramentos arbitrários?

Paralelamente, a União Européia trata de convencer à Comunidade Andina das Nações (Bolívia, Colômbia, Equador e Peru) de assinar um "Acordo de Associação" que inclui em seu terceiro pilar um Tratado de Livre Comércio, de mesma natureza e conteúdo que os que impõem os Estados Unidos. Estamos sob intensa pressão da Comissão Européia para aceitar condições de profunda liberalização para o comércio, os serviços financeiros, propriedade intelectual ou nossos serviços públicos. Além disso, a título da “proteção jurídica” somos pressionados pelo processo de nacionalização da água, do gás e das telecomunicações realizados no Dia Mundial dos Trabalhadores. Pergunto, nesse caso onde está a “segurança jurídica” para nossas mulheres, adolescentes, crianças e trabalhadores que procuram melhores horizontes na Europa?

Promover a liberdade de circulação de mercadorias e finanças, enquanto em frente vemos encarceramento sem julgamento para nossos irmãos que tentam circular livremente... Isso é negar os fundamentos da liberdade e dos direitos democráticos.

Sob estas condições, de aprovar-se esta "diretiva retorno", estaríamos na impossibilidade ética de aprofundar as negociações com a União Européia, e nos reservamos do direito de normatizar com os cidadãos europeus as mesmas obrigações de visto que impõem aos olivianos desde 1º de abril de 2007, segundo o princípio diplomático de reciprocidade. Não o temos exercido até agora, justamente por esperar bons sinais da UE.

O mundo, seus continentes, seus oceanos e seus pólos conhecem importantes dificuldades globais: o aquecimento global, a contaminação, o desaparecimento lento mas seguro de recursos energéticos e biodiversidade enquanto aumenta a fome e a pobreza em todos os países, fragilizando nossas sociedades. Fazer dos migrantes, que estejam documentados ou não, os bodes expiatórios destes problemas globais, não é uma solução. Não corresponde a nenhuma realidade. Os problemas de coesão social que sofre a Europa não são culpa dos imigrantes, mas é o resultado do modelo de desenvolvimento imposto pelo Norte, que destrói o planeta e desmembra as sociedades dos homens.

Em nome do povo da Bolívia, de todos os meus irmãos do continente e regiões do mundo como o Maghreb e os países da África, faço um apelo à consciência dos líderes e deputados europeus, dos povos, cidadãos e ativistas da Europa, para que não se aprove o texto da "diretiva retorno". Tal qual a conhecemos hoje, é uma diretiva da vergonha. Apelo também a União Européia a elaborar, nos próximos meses, uma política migratória respeituosa dos direitos humanos, que permita manter este dinamismo proveitoso para os dois continentes e que repare de uma vez por todas a tremenda dívida histórica, econômica e ecológica que têm os países da Europa com grande parte do Terceiro Mundo, que feche de uma vez as veias ainda abertas da América Latina. Não podem falhar hoje em suas “políticas de integração” como tem fracassado com sua suposta “missão civilizatória” do tempo das colônias.

Recebam todos os senhores, autoridades, europarlamentares, companheiras e companheiros saudações fraternais desde a Bolívia. E em particular nossa solidariedade a todos os “clandestinos”.


Evo Morales Ayma
Presidente da República da Bolívia
https://www.alainet.org/pt/articulo/128171
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