Conquista na fronteira faz 20 anos
- Opinión
Estamos próximo a fronteira com a Argentina, na pontinha extrema do oeste catarinense, Dionísio Cerqueira. Chove fininho e o ônibus que leva trabalhadores e estudantes da capital, Florianópolis, amanhece com o dia. Os olhos nublados de sono se arregalam tão logo o ônibus entra numa estradinha de terra que leva ao mais antigo assentamento do Movimento dos Sem Terra de Santa Catarina. A primeira imagem que se vê já denuncia a fartura de vida e produção. São as vacas leiteiras, gordas e bonitas, que pastam soltas no campo. Logo em seguida, já aparecem as primeiras casas, todas de material e bem coloridas. Seguem mais ou menos o mesmo estilo. Foram construídas por eles mesmos e simbolizam de forma muito sólida o que pode fazer a união. Em todas elas abundam as flores coloridas e as folhagens.
A segunda imagem, em meio à chuva que insiste em cair, é uma grande lona, armada ao lado do Centro de Saúde Che Guevara. Nelas estão afixadas as grandes bandeiras do MST, do Movimento de Mulheres Camponeses, cenas da vida cotidiana dos agricultores, bandeiras de outros movimentos camponeses e urbanos. Tudo ali tem a cor e a imagem das lutas dos trabalhadores. Num dos cantos da lona, uma carroça cheia de laranjas é o café da manhã dos visitantes que chegam às centenas. Nada impediria aquela gente guerreira de comemorar os 20 anos do assentamento.
No outro lado da lona o que assoma é mais um importante símbolo da organização camponesa: a Cooper União, cooperativa dos agricultores que gere todo o processo de produção, industrialização e distribuição de tudo o que é produzido ali naquele assentamento. Lá na lona, as gentes cantam, embaladas pelo violão, a chuva segue caindo, mas ninguém se importa. Quem vive da terra sabe que a chuva é benção, então, que venha, que molhe o chão e fertilize de vida este espaço de vida, luta e realização.
O começo
A luta pela terra
Num país em que a maioria das terras está sob o domínio de umas poucas mãos, no mais das vezes improdutivas, a tática encontrada pelo movimento foi a de ocupação. Terra ociosa, sem parir, não seria tolerada enquanto houvesse tanta gente sem-terra, querendo produzir. Assim, iniciaram-se as ocupações e a resistência camponesa. Foi com esta forma de luta que ali onde hoje está o assentamento Conquista na Fronteira chegaram 60 famílias, com seus cachorros, suas tralhas e essa férrea vontade de lutar, comum ao povo do MST. O lugar onde hoje se vê tanta beleza e organização nada mais era do que um potreiro. Uma ou outra vaca pastava pelo campo e o resto era uma imensidão de terra improdutiva.
Cada um dos acampados sabe bem pelo que passou para chegar onde hoje estão. Anos acampados debaixo das lonas pretas, doenças, fome, solidão. “Quando chegamos aqui, o povo da cidade nos via com maus olhos, mas fomos mostrando que queríamos trabalhar e produzir. Depois a gente foi entrando na vida política da cidade, no partido político, no sindicato, mostrando a nossa responsabilidade na transformação social. Hoje, passados 20 anos, somos parte desta comunidade e a cidade sabe que estamos aqui para produzir e viver em paz”, conta Irma Brunetto, uma das assentadas.
O assentamento
Hoje, vivem no assentamento Conquista na Fronteira 60 famílias que decidiram organizar a vida de um jeito diferente. Cada uma delas tem a sua casa, mas a terra é produzida de forma coletiva. A comunidade se organiza em comissões nas mais variadas áreas, estas comissões formam um Conselho Social e Político que é quem toca a vida cotidiana. O fórum máximo para deliberação é a Assembléia Geral. Além disso, as famílias se organizam em seis núcleos de base, cada um deles com 10 famílias, que é um jeito mais eficaz para garantir a organização de toda a comunidade. O assentamento tem sua própria escola com primeiro e segundo graus e o método de ensino é o que vem sendo praticado pelo movimento em todos os seus assentamentos, baseado
A comissão de saúde atua fortemente no campo da prevenção e desenvolve todo um trabalho com ervas medicinais. Existe ainda a comissão de esporte e lazer que garante a diversão sadia para todos os membros do assentamento. Futebol, bocha, brincadeiras, bailes, encontros, teatro, enfim, uma serie de atividades que permitem o desenvolvimento total do ser humano. Também existe uma comissão de animação e visitas para atender às demandas do mundo externo. Todos os dias chegam caravanas que vêm visitar esta experiência do MST, considerada uma das mais importantes do país. “São mais de seis mil visitas por ano, com gente de mais de 38 países”.
O processo de crescimento do trabalho do grupo deste assentamento teve três momentos bem demarcados. O primeiro deles foi o de impulsionar a agricultura de subsistência, a coisa mais importante era garantir alimento de qualidade a toda comunidade. Depois, com esse trabalho já consolidado, foi a hora de comercializar o excedente. Mais na frente veio a necessidade de industrializar a produção. E é isso que a comunidade faz através da cooperativa. Atualmente o assentamento Conquista na Fronteira tem 12 aviários, uma fábrica de ração, um frigorífico, 150 vacas na ordenha, produção de erva-mate e a criação de peixes em
E é essa forma de organizar a vida, bem diferente da que se encontra em outras comunidades do campo ou da cidade, que permite ao assentamento Conquista na Fronteira uma existência de fartura e paz. Para se ter uma idéia, desde que foi criado, há 20 anos, nunca houve uma ocorrência policial na comunidade. Problemas existem, é claro, mas estas famílias, unidas, sempre encontram os caminhos da solução. E fazem isso justamente porque estão organizadas de forma coletiva. O que vale para um, vale para todos. Cada pessoa no assentamento tem o seu papel na produção, seja no cultivo ou no trabalho na indústria. As crianças fazem o que tem de fazer, brincam e estudam. Os adolescentes estudam e já desempenham algumas tarefas na cadeia produtiva. E todos fazem festa, muita festa. Sempre há um violeiro, um gaiteiro, um cantor, e as tertúlias acontecem todo o final de semana.
O povo da cidade que viajou quilômetros e quilômetros para participar da comemoração dos 20 anos do assentamento percebe a diferença de se viver em comunidade, num regime coletivo e solidário. Tudo parece que tem outro sabor, inclusive a própria comida. Viram ainda, que um dos fatores que fazem o MST ser o que é, é que além de toda a festa e de toda a organização, esse povo está em processo de formação permanente. Por isso, durante os festejos, houve análise de conjuntura e discussão dos desafios que estão colocados para o movimento e para os camponeses nesta realidade. O MST é como uma grande escola, na qual as gentes estão aprendendo continuamente. Por isso, esse povo está sempre preparando para enfrentar aquilo que eles consideram o seu maior inimigo: o sistema capitalista. E por isso são profetas, vivendo hoje o que tantos de nós queremos para o amanhã.
E ali, no meio do barro vermelho de uma terra que foi conquistada na luta, a noite surpreendeu o povo da roça e da cidade, dançando, juntos, abraçados, depois de um dia inteiro de emoções proporcionadas pelos trabalhadores de todos os cantos do Estado que ali foram celebrar. Teatro, cirandas, cantorias, lágrimas, lembranças, sonhos, esperanças. No final, altaneira, se levantou a cruz dos acampados, símbolo maior da luta pela terra. Madeira fincada na terra conquistada, lembrança de um dia de celebração em que a aliança urbano/camponesa vai costurando novas relações e esperanças. O sol tímido que surgiu ao final da tarde parecia o olhar amoroso de um homem que foi semeador de tudo isso que ali as gentes viviam: Dom José Gomes, o bispo dos pobres. A ele, as gentes gritaram sua gratidão. “Dom José Gomes, presente!”
No ônibus que volta para a capital, a estudantada está quieta, não faz cantoria nem bagunça. Esgotados pelo dia intenso, eles dormem durante todo o longo percurso de volta. Lá no assentamento ficam as gentes camponesas, estas lutadoras, esperando que na cabecinha daqueles que se foram germine a semente da vida socialista, repartida, comungada. Porque, como já dizia aquele lindo poema de Quintana... “quem sabe,titio, quem sabe...”
- Elaine Tavares é jornalista
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