Feliz Natal

15/12/2006
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 Feliz Natal aos infelizes  cativos do desapreço ao próximo, da irremediável preguiça de amar, do zelo  excessivo ao próprio ego. E aos semeadores de alvíssaras, aos glutões de  premissas estéticas, aos fervorosos discípulos da ética.

 Feliz  Natal ao Brasil dos deserdados, às mulheres naufragadas em lágrimas, aos  escravos do infortúnio condenados à morte precoce. E aos premiados pela  loteria biológica, aos desmaquiadores de ilusões, aos inconsoláveis peregrinos  da vicissitude.

 Feliz Natal aos órfãos do mercado financeiro,  pilotos de vôos sem asas e sem chão, fiéis devotos da onipotência do mercado,  agora encerrados no impiedoso desabrigo de suas fortunas arruinadas. E também  aos lavradores da insensatez espelhada na linguagem transmutada em  arte.

 Feliz Natal às lagartas temerosas de abandonar casulos, ao  desborboletear de insignificâncias cultivadoras de ódios, aos exilados na  irracionalidade do despautério consensual. E aos dessedentados na saciedade do  infinito, no silêncio inefável, nas paixões condensadas em prestativa  amorosidade.

 Feliz Natal a quem escapa dos indomáveis  pressupostos da lógica consumista, dessufoca-se em celebrações imantadas de  deidade, livre do desconforto da troca compulsória de presentes prenhes de  ausências. E aos hospedeiros de prenúncios do leque infinito de possibilidades  da vida.

 Feliz Natal a quem não planta corvos nas janelas da  alma, nem embebe o coração de cicuta, e coleciona no espírito aquarelas do  arco-íris. E a todos que trafegam pelas vias interiores e não temem as curvas  abissais da oração.

 Feliz Natal aos devotos do silêncio  recostados em leitos de hortênsias a bordar, com os delicados fios dos  sentimentos, alfombras de ternura.  E a quem arranca das cordas da dor  melódicas esperanças.  

 Feliz Natal aos que trazem às costas  aljavas repletas de relâmpagos, aspiram o perfume da rosa-dos-ventos e  carregam no peito a saudade do futuro. Também a quem mergulha todas as manhãs  nas fontes da verdade e, no labirinto da vida, identifica a porta que os  sentidos não vêem e a razão não alcança.

 Feliz Natal aos  dançarinos embalados pelos próprios sonhos, ourives sapienciais das artimanhas  do desejo. E a quem ignora o alfabeto da vingança e jamais pisa na armadilha  do desamor.

 Feliz Natal a quem acorda todas as manhãs a criança  adormecida em si e, moleque, sai pelas esquinas a quebrar convenções que só  obrigam a quem carece de convicções. E aos artífices da alegria que, no calor  da dúvida, dão linha à manivela da fé.

 Feliz Natal a quem  recolhe cacos de mágoas pelas ruas para atirá-los no lixo do olvido, e se  guarda no recanto da sobriedade. E a quem se resguarda em câmaras secretas  para reaprender a gostar de si e, diante do espelho, descobre-se belo na face  do próximo.

 Feliz Natal a todos que pulam corda com a linha do  horizonte e riem à sobeja dos que apregoam o fim da história. E aos que  suprimem a letra erre do verbo armar.

 Feliz Natal aos poetas sem  poemas, aos músicos sem melodias, aos pintores sem cores, aos escritores sem  palavras. E a quem jamais encontrou a pessoa a quem declarar todo o amor que o  fecunda em gravidez inefável.

 Feliz Natal aos ébrios de  transcendência e aos filhos da misericórdia acobertados de compaixão. E a quem  não se deixa seduzir pelo perfume das alturas e nem escala os picos em que os  abutres chocam ovos.

 Feliz Natal a quem, no leito de núpcias,  promove despudorada liturgia eucarística, transubstancia o corpo em copo,  inunda-se do vinho embriagador da perda de si no outro. E a quem corrige o  equívoco do poeta e sabe que o amor não é eterno enquanto dura, mas dura  enquanto é terno.

 Feliz Natal aos que repartem Deus em fatias de  pão, bordam toalhas de cumplicidades, secam lágrimas no consolo da fé, criam  hipocampos em aquários de mistério.

 Feliz Natal a quem se  embebeda de chocolate na esbórnia pascal da lucidez crítica e não receia se  pronunciar onde a mentira costura bocas e enjaula consciências. E a quem voa  inebriado pelo eco de profundas nostalgias e decifra enigmas sem revelar  inconfidências; nu, abraça epifanias sob cachoeiras de magnólias.  

 Feliz Natal a todos que dão ouvidos à sinfonia cósmica e, nos  salões da Via Láctea, bailam com os astros ao ritmo de siderais incertezas.  Queira Deus que renasçam com o Menino que se aconchega em corações desenhados  na forma de presépios.

- Frei Betto é escritor, autor de “A  arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/131606
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