Carta a uma velha

23/04/2009
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Para Nina Garcia Alencar.

Querida  amiga Nina,

Por que a trato com familiaridade? Ora, agora você me  conhece intimamente: meu nome é Velhice. É bem verdade que muitas pessoas de  avançada idade se sentem constrangidas, até humilhadas, ao se aproximarem de  mim. Como se a Velhice fosse um mal a ser evitado.

Não se  conformam com a progressiva e irrefreável degradação do organismo: a audição  reduzida, as restrições alimentares, a mobilidade contida, o uso de bengala  etc. Por isso, até se recusam a pronunciar meu nome. Esquecem que, à  decadência do corpo, deveria corresponder a ascendência do espírito. Mas a  vida ensina que não se colhe o que não se plantou.

Já não  convém chamar uma pessoa de velha. Inventam-se eufemismos, como se a cobertura  do bolo modificasse o sabor do recheio: terceira idade, melhor idade,  dign/idade... Ora, se devemos encarar a realidade, sugiro ‘eterna idade’, já  que os velhos estão mais próximos dela.

 Aterrorizadas pela  certeza de que um dia serão velhas, e iludidas pela busca ilusória de  imortalidade, muitas pessoas, respaldadas pelos simulacros científicos que  prometem juventude perene, se esforçam ao máximo para evitar o encontro  comigo. Ingerem drágeas que prometem reduzir o desgaste das células, fazem  cirurgias plásticas, passam horas a malhar o corpo. E ainda se dão ao ridículo  de se fantasiarem de jovens, de adotar vocabulário de jovens, de frequentar  festas de jovens. Como é triste ver uma velha de 70 anos bancando a mocinha de  20! Peruca na cabeça vai bem, mas na alma...

Nina, sei o quanto a  sua vida valeu a pena: a família, a fé, as flores de seu acalanto, a sabedoria  de permanecer numa cidade do interior e não acompanhar os filhos no rumo das  metrópoles.

O que a faz longeva? O que lhe permite celebrar  saudáveis 95 anos sem ter recorrido a nenhum desses artifícios? A paz de  espírito. Você escolheu cultivar bens infinitos, aqueles que se guardam no  coração, e não bens finitos, que envaidecem sem jamais saciar a sede de  Absoluto. Você escolheu a amorosa maravilha da cotidianeidade, essas miudezas  que, como miçangas, colorem a linha da felicidade: a oração, a frequência à  igreja, o encontro com as amigas, o socorro aos pobres, o cuidado da casa e,  no crepúsculo da vida, dar-se ao direito de espiar o mundo pelas janelas dos  livros, dos jornais, da TV.

Sonho com o dia em que as mulheres  descobrirem que o auge da beleza reside em encontrar a mim, a Velhice. Essa  beleza emoldurada pelas rugas da intensidade de vida e pelos cabelos alvos,  fundada na sabedoria de espírito, na capacidade de relativizar tantas coisas  que os mais jovens encaram como absolutas. Beleza de quem já não recorre a  artifícios exteriores para enfeitar a vaidade; basta o sorriso luminoso, a  delicadeza dos gestos, o dom de recolher-se em silêncio ainda que, em volta,  todos disputem a palavra aos gritos.

Você bem sabe, Nina, que estar  comigo é experimentar algo que, cada vez mais, poucos conhecem: a serenidade.  Uma pessoa se torna serena quando se dá conta de que vive num palácio de  inúmeros aposentos – a vida –, mas já não sente o menor ímpeto de  percorrê-los, perdeu toda curiosidade em relação a eles. Basta-lhe um  aconchegante quartinho onde suas plantas recebam um pouco de  sol.

Nina, acolhe o meu afetuoso abraço de feliz idade! Curta  a minha companhia sem nenhuma ansiedade frente aos desígnios de Deus. Ele a  colherá desta vida, como um jardineiro à sua flor, no momento oportuno. Então,  sim, você descobrirá que, do outro lado, a vida é terna.

O carinho de  sua companheira,

Velhice.

- Frei Betto é escritor,  autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.

https://www.alainet.org/pt/articulo/133424
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