Indo mais fundo numa nova arquitetura financeira
- Opinión
É sólido o argumento, apresentado por Theresa Tedesco,1 de que o sistema bancário canadense é o melhor guia para as reformas necessárias da banca estadunidense. Porém, restringe-se às fronteiras do sistema do capital. Defendo uma solução mais radical para o caos financeiro global.
1. O primeiro tema a relevar é que não haverá sistema de regulação efetivo e eficaz se não for cumpulsório para todos os agentes financeiros e instituições reguladoras, e se não for estruturado também a nível regional e global. Também não é tão importante quanta regulação introduzir nos sistemas financeiro e bancário, nacional e internacional, quanto o objetivo para cujo serviço esses sistemas foram desenhados. Se é para servir ao lucro privado, então na verdade nada vai mudar. Mas se é ao desenvolvimento social/humano numa base ecologicamente sustentável, então podemos dizer que um nova amanhecer e uma nova esperança se avizinham no horizonte.
2. As implicações disso, contudo, são também radicais. Uma profunda mudança nos estilos de vida é necessária no Norte Global. O objetivo é uma economia do suficiente: limitar o crescimento da produção material, desmercantilizar e liberar a produção e a troca de produtos imateriais! Nesta perspectiva, a recessão que se instalou nos EUA nos meses recentes seria benvinda, não estivesse ela punindo tão brutalmente aqueles que são mais vulneráveis – as famílias trabalhadoras, os desempregados, os migrantes. A desigualdade de renda e riqueza está refletida na desigualdade da distribuição dos custos da crise. Menos consumo de energia e de recursos naturais, menos consumo de bens supérfluos, modos de vida mais simples e frugais, redução radical do número de automóveis e de emissões de gases-estufa, menos produção de lixo, menos indústrias, mais seletivas, alimentos mais saudáveis distribuidos proporcionalmente à necessidade, ambientes urbanos e rurais mais saudáveis, estes são alguns dos objetivos que os sistemas bancários deveriam estar servindo.
3. Para o Sul Global, o crescimento econômico ainda é desejável, mas dentro dos limites colocados pela Natureza, pelos biomas e pelo direito das gerações futuras à uma vida digna e saudável. Contudo, tal crescimento deveria estar sujeito ao planejamento e à gestão democrática e participativa das comunidades e do Estado.
4. Uma nova arquitetura financeira exige o reconhecimento de que o dinheiro não mais deve ser concebido como uma mercadoria. O dinheiro deve servir a fins maiores: o de ser um símbolo do trabalho, saber e criatividade humanos, e o de ser um meio de troca que dá às pessoas o poder de compra que garante a satisfação de suas necessidades, e facilita a interação socioeconômica entre pessoas, comunidades e países. Noutras palavras, o dinheiro e os sistemas que regulam seus fluxos deveriam ser legalmente definidos como um serviço público. O motivo do lucro deveria ceder o lugar ao motivo de desenvolvimento social.
5. Isto envolve pelo menos três dimensões de um paradigma de desenvolvimento integral, fundado na solidariedade:
a) O Estado deveria possuir e gerir as principais instituições financeiras, aquelas capazes de tornar o dinheiro e as finanças um serviço à economia social, e o fundamento de políticas de investimento dirigidas para o desenvolvimento ao mesmo tempo socioeconômico e humano. Um país só pode controlar seu desenvolvimento se controla seu dinheiro e suas finanças (Keynes). O Estado seria responsável por gerir as finanças nacionais na perspectiva de superar as desigualdades e orquestrar harmonicamente a diversidade das práticas de desenvolvimento local-comunitário. Estaria em posição favorável para maximizar os ganhos do uso criativo do princípio da Proporcionalidade.
b) O Estado deveria reconhecer o direito das comunidade de criar e gerir seus próprios bancos e instituições financeiras (ver o caso da Venezuela), contanto que sirvam aos mesmos objetivos públicos e não ao lucro privado. A soberania financeira, então, pertenceria àqueles que são co-proprietários e gestores dessas instituições, justamente porque eles acumulam nelas a poupança do seu trabalho. Isto facilitaria e estimularia o desenvolvimento socioeconômico local, fazendo o melhor uso do princípio da Subsidiaridade.
c) Finalmente, o Estado deveria reconhecer o direito das comunidades de criar suas próprias moedas, com o fm de aumentar a produção local para as necessidades locais e de fazer circular a nova riqueza, tanto quanto possível, dentro da própria comunidade. Ampliar sua soberania sobre sua própria economia, finanças e moeda permitiria às comunidades dirigir o investimento para produtos com valor de uso, em vez de produtos que primam pelo valor de troca. A moeda, assim, servirá melhor às necessidades e aspirações das gentes, afastando-se da tentação do crescimento econômico ilimitado e da acumulação voraz de capital. Isto envolve, portanto, um novo paradigma e uma nova interpretação legal da propriedade dos bens produtivos e dos meios financeiros, longe da propriedade excludente e privada e a serviço do bem público, de todos e de cada cidadão em primeiro lugar.
6. Além disso, a nova arquitetura financeira deveria preocupar-se com a justa distribuição da renda e da riqueza na perspectiva de libertar o tempo de trabalho necessário das pessoas para finalidades mais sublimes que a mera sobrevivência material. Gestores públicos deveriam promover reformas fiscais e tributárias que reduzam as inequidades sociais. Fatores que estimulariam o desenvolvimento socioeconômico enquanto aumentariam os níveis de bem estar e felicidade para todos incluem a partilha dos ganhos da produtividade através da democratização da propriedade dos bens produtivos, o estabelecimento de uma estrutura progressiva de impostos e uma política fiscal justa e inteligente, e também o estabelecimento de uma remuneração básica cidadã.
7. Novos indicadores de desenvolvimento são uma necessidade urgente. O PIB serve a objetivos demasiado limitados e é enganador, quando o desenvolvimento integral, e não apenas o econômico, é levado em consideração. O FIB – índice de Felicidade Interna Bruta – é um dos métodos criativos de transcender o PIB. Tem o poder de reorientar o investimento e a atividade econômica no sentido dos seus objetivos legítimos de mais longo alcance: o desenvolvimento social e humano, o bem viver e a felicidade. Tomando o ser humano - enquanto um ser natural e social - como a referência e o objetivo do desenvolvimento econômico, este índice exige uma combinação de planejamento com a interação das forças de mercado, contanto que o mercado seja constituido por agentes econômicos mobilizados pela motivação pública-social.
- Marcos Arruda: Economista e educador do PACS – Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Rio de Janeiro), facilitador da Universidade Internacional da Paz (Unipaz) e do Programa Educação Gaia, e sócio do Instituto Transnacional (Amsterdam).
1 “The Great Solvent North”, artigo publicado em The National Post, Feb. 28, 2009.
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