Chutando a escada:

Como a história e o pensamento econômico capitalista foram reescritos para justificar o neoliberalismo

25/06/2009
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Uma brevíssima introdução

Por Vinicius Valentin Raduan Miguel (Cientista Social pela Universidade Federal de Rondônia)

Ha-Joon Chang (1963-) é um economista e professor sul-coreano. Concluiu seu mestrado e doutorado na Universidade de Cambridge, onde trabalha atualmente como professor da disciplina Economia do Desenvolvimento no programa de pós-graduação na Faculdade de Economia. Já atuou como consultor de diversas organizações internacionais (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento em Nova York, Departamento de Assuntos Econômicos e sociais da ONU, Instituto de Pesquisa da ONU para o Desenvolvimento Social, Organização Internacional do Trabalho, Comissão Econômica para a America Latina e Caribe, entre outras) assim como em organizações não-governamentais (Oxfam, Third World Network).

Em 2003, recebeu o prêmio Gunnar Myrdal de melhor monografia. É autor e editor de mais de vinte livros, amplamente traduzidos. Para o português, infelizmente, temos apenas dois: “Chutando a escada – a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica” (São Paulo: Unesp, 2004) e “Maus samaritanos – O mito do livre-comércio e a história secreta do capitalismo” (Rio de Janeiro: Elsevier, 2009).

O trabalho do professor Chang ganha importância por contribuir teoricamente para o debate sobre o papel (histórico e presente) do Estado no desenvolvimento de uma nação. Seus escritos ganham vitalidade com a constatação de que nos meios acadêmicos, na imprensa (que se trata de um aparelho privado de construção e expansão de uma hegemonia; um partido político em latu sensu como afirma Gramsci) e na prática corrente da política institucional, a concepção predominante é de fazer coro às investidas neoliberais e repudiar, qualquer mínimo avanço de setores democráticos (e poucamente comprometidos com uma esquerda conseqüente).

Sempre temos poderosos setores orquestrados em defesa da suposta invisible hand, das forças obscuras (teologicamente compreensíveis, mas cientificamente improváveis) do laissez-faire e de uma abstrata autonomia de leis universais que pairam sobre o sistema econômico, sendo este, nunca, sequer tangencialmente, mencionado. É como se, acima de tudo, não houvesse uma organização social, quer seja, um sistema econômico baseado em um modo de produção historicamente situado, onde se dá a distribuição e acumulação de mercadorias, produtos e capital, apropriados distintamente por atores sociais, categorizados na filosofia política como classes sociais.

Vivemos em tempos em que aqueles que por muito tempo precisaram da força extra-econômica do Estado, seja como elemento de coação e transformação da sociedade, para a abertura de mercados (com a política das canhoneiras, todas as práticas imperialistas e colonialistas) e conquista de mão-de-obra e recursos materiais para sua produção, assim como de medidas protecionistas e do estímulo direto do aparato governamental, agora resolveram destruí-lo. Deste modo, a centralidade e comando nas decisões, antes confiada ao Estado, são transferidos ao Mercado.

A intervenção estatal, até então louvada, passa a ser apresentada como ranço do “socialismo” e ameaça à liberdade econômica e política. O capitalismo neoliberal, nesta nova roupagem, é apresentando como irmão siamês da democracia; democracia passa a ser sinônimo de livre-mercado contra a opressão estatizante.

Estes fatores são ignorados e, em tempos em que os grupos políticos hegemônicos buscam um novo posicionamento para, mais uma vez, se beneficiarem do Estado, pensar a atuação do poder público torna-se urgente.

Neste sentido, os argumentos de Ha-Joon Chang são válidos para desvendar os mitos do neoliberalismo, mitos tão persistentes no imaginário político brasileiro a defender um nanismo estatal no tocante às políticas sociais e um gigantismo para a ação de sentinela de interesses privados, em muito estimulado por organismos como Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e Organização Mundial do Comércio. Ao texto!

Chutando a escada: como a história e o pensamento econômico capitalista foram reescritos para justificar o neoliberalismo

- Ha-Joon Chang (Professor na Faculdade de Economia; Universidade de Cambridge, Reino Unido)

Traduzido sob autorização do autor (inglês/português) por Vinicius Valentin Raduan Miguel. Originalmente publicado em Chang, H. J. “Kicking Away the Ladder”. Post-autistic economics review. Issue no. 15, September 4, 2002, article 3. Artigo baseado no livro “Chutando a Escada”, originalmente publicado em 2002.Consulte o autor/tradutor para eventual reprodução.

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Há atualmente uma grande pressão para que os países em desenvolvimento adotem um conjunto de “boas políticas” e “boas instituições” – como liberalização do mercado e para investimentos estrangeiros e estritas leis de patentes – para promover o desenvolvimento econômico. Quando alguns países em desenvolvimento se mostram relutantes em aceitar tais políticas, os proponentes deste receituário geralmente acham difícil de entender esta estupidez do que entendem ser uma já tentada e testada receita para o desenvolvimento. Afinal, argumentam os países desenvolvidos, estas práticas e instituições já foram usadas no passado com sucesso. Sua crença nas próprias prescrições é tão absoluta que a seu ver, tais medidas deveriam ser impostas aos países em desenvolvimento através de fortes pressões bilaterais ou multilaterais, ainda que encontrem resistência.

Naturalmente, são acalorados debates sobre quando estas políticas recomendadas são ou não apropriadas para os países em desenvolvimento. Entretanto, mesmo muitos daqueles que são céticos quanto à aplicabilidade destas políticas e instituições aos países em desenvolvimento, curiosamente tomam por dadas estas práticas que recomendam, aceitando-as como parte de seu passado quando caminhavam para o desenvolvimento. Ao contrário da sabedoria convencional, os fatos históricos mostram que os países ricos não se desenvolveram tendo por base as políticas e instituições que, agora, prescrevem e, freqüentemente, forçam aos países em desenvolvimento. Infelizmente, este fato é pouco conhecido nos dias de hoje por conta da atuação de “historiadores oficiais” do capitalismo, historiadores que foram bem sucedidos no processo para reescrever sua própria história.

Praticamente todos os países atualmente ricos usaram de proteções tarifárias e subsídios para desenvolver suas indústrias. Interessantemente, Grã-Bretanha e Estados Unidos da América, dois países que atingiram o pináculo da economia mundial através do seu livre-mercado e política de livre comércio, são atualmente os com as mais agressivas práticas de subsídio e proteção do mercado interno.

Contrário ao mito popular, Grã-Bretanha foi um combativo usuário e em certos setores, o pioneiro, em ativismo de políticas que intencionavam promover suas indústrias. Tais políticas, ainda que limitadas em escopo, datam do século 14 (com Edward III) e século 15 (com Henry VII) em relação à manufatura de lã, a principal indústria da época. A Inglaterra então era um exportador de lã crua dos Países Baixos e Henry VII, por exemplo, tentou alterar estas relações. Henry VII passou a taxar as exportações enquanto, ao mesmo tempo, atraía trabalhadores qualificados dos Países Baixos.

Particularmente entre a reforma da política de comércio do Primeiro Ministro Robert Walpole em 1721 e a adoção do livre mercado por volta de 1860, a Grã-Bretanha usou de políticas extremamente dirigistas para o comércio e indústria, envolvendo medidas muito similares às de países como Coréia e Japão usadas posteriormente com os mesmos objetivos. Durante este período, a Inglaterra protegeu suas indústrias ainda mais intensamente do que a França, comumente apresentada com um contraponto de dirigismo estatal contra o sistema de livre-mercado. Tendo estes fatos em mente, Friedrich List, importante economista alemão no século 19, afirmou que a Grã-Bretanha, ao defender o livre-comércio aos países menos desenvolvidos como Alemanha e EUA, atuava “chutando a escada” que havia utilizado para atingir o topo.

Nos dias de hoje, pouco é sabido sobre a interação intelectual entre EUA e Alemanha que não acabou aí. A Escola Histórica alemã, representada por Wilhem Roscher, Bruno Hildebrand, Karl Knies, GUstav Scmoller e Werner Sombart, atraiu muitos economistas estadunidenses em fins do século 19. O santo padroeiro da escola neoclássica dos EUA, John Bates Clark, em cujo nome é dado o prestigioso premio para jovens economistas, foi para a Alemanha em 1873 onde estudou a Escola Histórica Alemã sob os cuidados de Roscher e Knies, embora tenha gradualmente se afastado dela. Richard Ely, um dos principais economistas estadunidenses no período, também estudo com Knies e influenciou a Escola Institucionalista Americana através de seu discípulo, John Commons. Ely foi um dos fundadores da Associação Estadunidense de Economia e o maior seminário público no encontro anual da associação é feito em seu nome, embora poucos dos membros presentes saibam quem Ely foi.

Entre a Guerra Civil e a Segunda Guerra Mundial, os EUA eram, literalmente a mais protegida economia no mundo. Neste contexto, é importante destacar que a Guerra Civil nos EUA foi travada em decorrência da questão tarifária, tanto quanto, se não mais, do que pela abolição da escravatura. Dois assuntos eram divisores entre o Norte e Sul: o Sul tinha mais a temer na trincheira das tarifas do que nas trincheiras da escravidão. Abraham Lincoln era um famoso protecionista que construiu sua carreira política sob o carismático político Henry Clay no Partido Whig, que advogava o “Sistema Estadunidense”, baseado no desenvolvimento infra-estrutural e protecionismo (então reconhecendo que o livre comércio era de interesse da Inglaterra). Um dos maiores assessores econômicos de Lincoln era Henry Carey, reconhecido por ser um economista protecionista e descrito como “o único economista estadunidense de importância” por ninguém menos que Marx e Engels em 1850 e agora quase desaparecido na história do pensamento econômico americano. Por outro lado, Lincoln pensava que os afro-americanos eram racialmente inferiores e que a emancipação dos escravos era uma proposta idealista sem perspectivas de implementação imediata – diz-se que ele teria aprovado a abolição como um passo estratégico para vencer a Guerra ao invés de que por algum traço de convicção moral.

Na proteção de suas indústrias, os estadunidenses foram contra os ensinamentos de proeminentes economistas como Adam Smith e Jean Baptiste Say, que viam o futuro dos EUA na agricultura. Entretanto, os estadunidenses sabiam exatamente qual era o jogo. Eles entenderam perfeitamente que a Inglaterra havia atingido o máximo de proteção e subsídios e que, portanto, eles precisavam fazer o mesmo se quisessem chegar em algum lugar. Criticando os britânicos em defesa do livre mercado, Ulysses Grant, um herói da Guerra Civil e Presidente dos EUA entre 1868-1876, respondeu grosseiramente que “em 200 anos, quando os EUA tiver obtido tudo que puder da proteção de seus mercados, aí sim adotaremos o livre mercado”. Quando seu país atingiu o topo, logo após a Segunda Guerra Mundial, começou o processo de “chutar a escada” com sua apologia ao livre comércio, constrangendo países menos desenvolvidos a adotá-lo.

O Reino Unido e os EUA são exemplos mais dramáticos, mas praticamente todo o restante dos países desenvolvidos de hoje usaram de tarifas, subsídios e outros meios de proteger suas indústrias nos estágios iniciais do seu desenvolvimento. Casos como a Alemanha, Japão e Coréia já são reconhecidos por estas medidas, mas mesmo a Suécia, que tardiamente veio a representar a “pequena economia aberta” para muitos economistas, usou taticamente de tarifas, subsídios, cartéis e apoio estatal para pesquisa e desenvolvimento para estimular setores chaves de seus segmentos industrias, especialmente o têxtil, metais e engenharia.

Houve algumas exceções, como a Holanda e a Suíça que mantiveram o livre mercado desde o fim do século 18. Entretanto, estes países já eram os mais tecnologicamente avançados no período e, por esta razão, não precisavam de muita proteção. Além disto, deve ser destacado que a Holanda empregou uma impressionante variedade de medidas intervencionistas até o século 17 com o objetivo de construir e assegurar sua supremacia marítima e comercial. Além do mais, a Suíça não tinha leis de patentes até 1907, indo em contradição direta com a ortodoxia de hoje, que defende direitos de propriedade intelectual. Mais interessante ainda é notar que a Holanda aboliu sua lei de patentes (de 1817) em 1869 alegando que patentes eram monopólios politicamente estabelecidos e inconsistentes com os princípios do livre mercado – uma posição que hoje chocaria muitos do economistas que advogam o laissez faire. Outra lei de patentes só foi reintroduzida tardiamente, em 1912.

A história é similar se olharmos para o desenvolvimento institucional. Nos primeiros estágios do seu desenvolvimento, os países hoje desenvolvidos não tinham sequer as ditas instituições “básicas” como funcionalismo público profissional, banco central ou lei de patentes (como já dito). Foi somente após a Lei Pendleton em 1883 que o governo federal dos EUA começou a recrutar empregados através de processos seletivos. O banco central, uma instituição tão querida aos economistas do livre mercado de hoje, sequer existia nos países mais ricos até o começo do século 20 – não apenas por causa da condenação dos economistas do livre mercado da época, que diziam ser um mecanismo que injustamente assegurava pagamentos de emprestadores imprudentes. O banco central dos EUA (Federal Reserve Board) foi estabelecido apenas em 1913 enquanto o italiano não tinha sequer o monopólio para emissão de cédulas até 1926. Muitos países permitiam o patenteamento de invenções estrangeiras até o fim do século 19. Como já mencionado, a Suíça e Holanda se recusavam a introduzir uma lei de patentes apesar da pressão internacional até 1907 e 1912, respectivamente, o que, conseqüentemente, permitia livremente o “roubo” de tecnologias estrangeiras. Os exemplos poderiam seguir adiante.

Uma conclusão importante que podemos extrair da história do desenvolvimento institucional é que foram anos para que os países atualmente ricos adotassem as medidas que sugerem. Instituições geralmente levam décadas, algumas vezes, gerações para se desenvolverem. Apenas para dar um exemplo, a necessidade de um banco central foi considerada em alguns círculos no século 17, mas o primeiro “verdadeiro” banco central, o Banco da Inglaterra, foi instituído apenas em 1844, cerca de dois séculos depois.

Outro ponto importante é que, nos primórdios, o nível do desenvolvimento institucional dos países hoje desenvolvidos, era muito inferior se comparado com o nível dos hoje países em desenvolvimento. Por exemplo, medido pelo (aceito como altamente imperfeito) nível de renda, o Reino Unido em 1820 era pouca coisa melhor que a Índia de hoje. E pior: não tinha muitas das instituições mais “básicas” que a Índia tem hoje. A Inglaterra não tinha, por exemplo, sufrágio universal (nem mesmo sufrágio universal masculino), um banco central, imposto sobre renda, responsabilidade pública, uma legislação generalizada de falência e mesmo mínima normatividade trabalhista (exceto por algumas reduzidas e nunca observadas leis regulando o trabalho infantil).

Se as políticas e instituições que hoje os países ricos estão recomendando para os países pobres não são as mesmas que eles mesmos usaram quando estavam em igual condição, o que está acontecendo? Nós só podemos concluir que os países ricos estão chutando a escada que os permitiu alcançar as posições que hoje ocupam. Não é coincidência que o desenvolvimento econômico se tornou mais difícil nas últimas duas décadas quando os países atualmente desenvolvidos começaram a pressionar os países em desenvolvimento para adotar o chamado “padrão global” de políticas e instituições.

Durante este período, a média de crescimento econômico per capita anual para os países em desenvolvimento reduzida à metade: de 3% nas duas décadas anteriores (1960-1980) para 1.5%. Em particular, a América Latina virtualmente parou de crescer enquanto a África Subsaariana e a maioria dos países do antigo bloco soviético têm experimentado uma queda na renda absoluta. Instabilidade econômica vem se acentuando notadamente como provam as dúzias de crises financeiras que temos testemunhado na última década sozinha. A desigualdade de renda também cresceu em muitos dos países em desenvolvimento, assim como a pobreza, que ao invés de se reduzir, tem se aumentado em número significante de países.

O que pode ser feito para mudar isto?

Primeiramente, os fatos históricos que evidenciam as experiências dos países desenvolvidos deveriam ser largamente divulgados. Não é apenas uma questão de aprender a “verdadeira história”, mas de permitir que os países em desenvolvimento possam tomar decisões amparadas em mais informações.

Posteriormente, as condicionantes impostas como requisitos para a assistência financeira bilateral ou multilateral precisam ser radicalmente alterados. Deve ser aceito que o receituário ortodoxo não está funcionando e que não pode haver “melhores práticas” a serem seguidas igualmente por todos.

Terceiro, as regras da Organização Mundial do Comércio deveriam ser reescritas de modo que os países em desenvolvimento possam mais ativamente usar tarifas e subsídios para seu próprio desenvolvimento industrial. Eles deveriam ser autorizados a adotarem leis menos estritas de patentes e propriedade intelectual. 

Quarto, devem ser encorajadas melhorias nas instituições, mas isto não pode ser aceito como sendo a imposição de um conjunto fixo e pré-determinado de instituições em todos os países (instituições hoje inspiradas no modelo anglo-americano, fato que não encontra bases no passado). Atenção especial deve ser tomada para não se exigir uma excessivamente rápida transformação institucional nos países em desenvolvimento, especialmente dado que (1) alguns destes países já têm estas instituições consideravelmente maduras quando comparadas com as dos países hoje desenvolvidos em seus estágios iniciais de crescimento e (2) que são altamente custosos o estabelecimento e manutenção de novas instituições.

Ao se permitir a adoção de políticas e instituições que são mais adequadas às suas reais condições, espera-se que os países em desenvolvimento terão a oportunidade de se desenvolverem mais rapidamente. Isto irá também beneficiar os países desenvolvidos em longo termo, uma vez que ampliará suas oportunidades de mercado e investimento. Esta questão, de que os países desenvolvidos não consigam enxergar estes fatos, é a tragédia do nosso tempo.

https://www.alainet.org/pt/articulo/134585
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