MST, profecia que incomoda

12/10/2009
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No dia 28 de setembro de 2009, integrantes do MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - ocuparam a Fazenda Capim, que abrange os municípios de Iaras, Lençóis Paulista e Borebi, região central do estado de São Paulo. A área faz parte do chamado Núcleo Monções, um complexo acima de 30 mil hectares divididos em várias fazendas e que pertencem à União. A fazenda Capim, com mais de 2,7 mil hectares, foi grilada pela transnacional Sucocítrico CUTRALE, uma das maiores empresas produtora de suco de laranja do mundo. O MST destruiu dois hectares de laranjeiras[1] para neles plantar alimentos básicos como feijão e milho. A ação teve como objetivo chamar a atenção para o fato de uma terra pública ter sido grilada por uma grande empresa e assim pressionar o Poder Judiciário a decidir, já que, há anos, o INCRA[2] entrou com ação para ser imitido na posse destas terras que são da União.
 
As primeiras ocupações na região aconteceram há 14 anos. Algumas fazendas foram arrecadadas e hoje são assentamentos, como o de Zumbi dos Palmares. A maioria das terras, porém, ainda está nas mãos de grandes grupos econômicos. A CUTRALE instalou-se lá há poucos anos. Sabia que as terras eram griladas, mas esperava, porém, que houvesse regularização fundiária a seu favor.
 
A mídia - latifúndio da comunicação - que ao invés de informar, desinforma - esbravejou contra o MST condenando-o. Após uns dez minutos de imagens e depoimentos acusando o MST, o Jornal Nacional da TV GLOBO, em dez segundos, fez referência a uma nota do MST. Isso se chama, em globalês, ouvir o outro lado. Alguns senadores (as), deputados(as) e outros tantos "ilustres" representantes do agronegócio (grande negócio que gera morte para parte do povo brasileiro e vultosos lucros para uma minoria) e do status quo capitalista vociferaram contra os Sem Terra na “defesa das laranjas da Cutrale”, desculpa esfarrapada para construir uma cortina de fumaça diante das justas reivindicações do MST. Vandalismo? Violência? Terrorismo? Arruaça? Atentado à democracia? (Que tipo de democracia?) As expressões acima foram bombardeadas contra o MST, mas é necessário perguntar: Quem, de fato, pratica violência social há séculos neste país? Quem atenta contra a democracia? O MST ou CUTRALE? Diga o que tu fazes e com quem andas, que direi quem tu és.
 
A ação do MST e o ódio cuspido pelos poderosos acordaram em mim profecias bíblicas dos profetas Elias, Amós, Miqueias e do galileu de Nazaré.
 
Antes de passar a palavra aos profetas da Bíblia, permito-me perguntar: Quantos de nós já se dispôs a fazer a experiência de viver sob lonas e gravetos – em condições similares aos bichos no meio do mato, ou em condições piores do que nas favelas? Quem de nós já viveu à beira das estradas, em lugares ermos e remotos, sujeito a ataques noturnos repentinos? Quantos já permaneceram num acampamento do MST por mais do que um dia, observando o que comem (e, sobretudo, o que deixam de comer), o que lhes falta, como são suas condições de vida? Quantos já viram o desespero das mães procurando, aos gritos, pelos filhos enquanto o acampamento arde em fogo às 3 da madrugada, atacado por jagunços?
 
Sentindo-me na pele dos Sem Terra, convido você para visitar algumas profecias bíblicas de Elias, Amós, Miqueias e Jesus de Nazaré, na esperança de que possam iluminar nossas consciências e aquecer nossos corações para discernirmos bem e comprometermos de fato com a causa dos pobres que, com fé libertadora, lutam pela terra sem males.
 
Em meados do século XIX a.C., o profeta Elias ferveu o sangue de indignação quando ouviu e viu que o rei Acab, a primeira dama Jezabel e latifundiários estavam reforçando a latifundiarização da terra prometida pelo Deus da vida ao povo Sem Terra, filhos/as de Abraão e Sara. A terra para o povo da Bíblia é herança de Deus, deve ser passada de pai para filho para usufruto; jamais ser considerada uma mercadoria. “Javé me livre de vender a herança de meus pais” (I Rs 21,3), respondeu Nabot, um pequeno agricultor, ao receber uma proposta indecorosa do rei que desejava comprar seu sítio para anexá-lo ao grande latifúndio que já tinha acumulado. O rei Acab se irritou com a resistência de Nabot. Zezabel, rainha adepta do ídolo Baal, manipulou a religião e a justiça para roubar a terra do sitiante. Caluniou, criminalizou e demonizou Nabot que, com o beneplácito do poder judiciário, foi condenado à pena de morte na forma de apedrejamento. Morte que mata aos poucos. Hoje, o “apedrejamento” aos empobrecidos acontece por meio de calúnias, humilhações e, muitas vezes, com o veredicto da justiça. Mais de 6 milhões de indígenas e outros 6 milhões de negros já foram Nabot no Brasil.
 
Mas, a opressão dos pobres e o sangue dos mártires suscitam profetas. O profeta Elias, ao ouvir que o rei Acab estava invadindo o pequeno sítio de Nabot, após o ter matado, em alto e bom som, profetizou: “Você matou, e ainda por cima está roubando? Por isso, assim diz Javé (Deus solidário e libertador): No mesmo lugar em que os cães lamberam o sangue de Nabot, lamberão também o seu. Farei cair sobre você a desgraça” (I Rs 21,19.21). Acab desencadeou uma grande perseguição ao profeta Elias, que fugiu, mas refez sua opção pelo Deus da vida e continuou a luta ao descobrir que não estava sozinho na luta. Outros 7 mil profetas conspiravam com ele e ao lado dele. Elias inspirou Eliseu, que inspirou Jesus de Nazaré, que inspira milhões de pessoas cristãs pelo mundo afora,. Acab teve morte parecida com a do general Garrastazu Médici, que morreu com 27 quilos carcomido por um câncer.
 
Por volta de 760 a.C., o profeta Amós, camponês sem-terra, insurge contra a injustiça social. Em Am 4,1-3, do coração de Amós brada: “OUVI esta palavra, vacas de Basã, que estais sobre monte de Samaria, que oprimis os fracos, que esmagais os excluídos, que dizeis aos vossos senhores: “Trazei-nos o que beber!”. O Senhor Javé jurou, pela sua santidade: sim, dias virão sobre vós, em que vos carregarão com ganchos e a vossos descendentes com arpões (de pesca).
 
A expressão “vacas de Basã” adquire um sentido mais verdadeiro dentro da cultura bíblica se o termo “vacas” não for utilizado em relação a mulheres, mas a homens, aqueles que quiseram ser como os touros de Basã, que pela sua força se tornaram “vacas”, com conotação depreciativa.
 
Na profecia de Amós está uma crítica veemente e contundente aos agentes e mecanismos de exploração e opressão dos camponeses empobrecidos sob o (dês)governo expansionista do rei Jeroboão II e sob as condições de um incremento de relações de empréstimos e dívidas entre pessoas do próprio povo no século VIII a.C.. Amós tem consciência de que o problema fundamental da injustiça reinante na sociedade não é fruto somente de fraquezas pessoais, mas tem como causa motriz estruturas sócio-econômico-político-cultural e religiosas que engrenam uma máquina de moer pessoas.
 
Camponês de origem, o profeta Miqueias captou os sussurros do Deus da vida em fins do século VIII a.C., quando o território de seu povo estava sendo devastado pelos assírios imperialistas. Para Miqueias, a cobiça e as injustiças sociais deixam Deus possuído por uma ira santa. “São vocês os inimigos do meu povo: de quem está sem o manto (como os Sem Terra de hoje), vocês exigem a veste; vocês expulsam da felicidade de seus lares as mulheres do meu povo (como milhares de meninas que são empurradas para a prostituição infanto-juvenil), e tiram dos filhos a liberdade que eu lhes tinha dado para sempre (como a juventude que, jogada nas garras do narcotráfico, está sendo dizimada pela guerra civil não declarada.). (Miq 2,8-9).
 
Após libertar das garras dos faraós no Egito e marchar 40 aos pelo deserto, o povo oprimido da Bíblia conquista a terra prometida que estava em mãos de grileiros cananeus, os territórios foram sorteados fraternalmente, para que cada família tivesse o seu lote. Fizeram reforma agrária. Mas após alguns séculos, os enriquecidos, pouco a pouco, vão invadindo cada vez mais campos e territórios. Assim, multidões de sem-terra são jogados na miséria, impossibilitados de ter a sua parte na terra do povo de Deus.
 
Vindo da roça, Miqueias, ao chegar à capital Jerusalém, se defronta com os enriquecidos e com políticos e religiosos profissionais e os acusa de roubar casas e campos para se tornarem latifundiários. “Ai daqueles que, deitados na cama, ficam planejando a injustiça e tramando o mal! É só o dia amanhecer, já o executam, porque têm o poder em suas mãos. Cobiçam campos, e os roubam.” (Miq 2,1-2).
 
Miqueias mostra que a riqueza deles se baseia na miséria de muitos e tem como alicerce a carne e o sangue do povo. “Essa gente tem mãos habilidosas para praticar o mal: o príncipe exige, o juiz se deixa comprar, o grande mostra a sua ambição. E assim distorcem tudo. O melhor deles é como espinheiro, o mais correto deles parece uma cerca de espinhos! O dia anunciado pela sentinela, o dia do castigo chegou: agora é a ruína deles.” (Miq 7,3-4).
 
O galileu de Nazaré se tornou Cristo, filho de Deus. Como camponês, deve ter feito muitos calos nas mãos, na enxada e na carpintaria, ao lado do seu pai José. Os evangelhos fazem questão de dizer que Jesus nasceu em Belém, (em hebraico, “casa do pão” para todos), cidade pequena do interior. “És tu Belém a menor entre todas as cidades, mas é de ti que virá o salvador”, diz o evangelho de Mateus. (Mt 2,6).
 
Enfim, os tempos são outros, mas uma engrenagem de moer vidas está em pleno funcionamento. Intuo que as profecias de Elias, Amós, Miqueias e de Jesus de Nazaré estão vivas no ensinamento e na prática revolucionária do MST, hoje. Por isso o MST é profecia que incomoda. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça! Não é justo deixar a CUTRALE plantando mais de 1 milhão de pés de laranja para exportação, enquanto milhões de Sem Terra são humilhados nos campos e nas favelas das grandes cidades.
 
EM TEMPO: O MST não tem a força dos enriquecidos: o capital; não tem a força do Estado: armas e poder para fazer as leis e interpretá-las segundo seus interesses. Mas o MST tem a força e a luz divina, tem a paixão por uma utopia que não se apaga: ver libertados os filhos e filhas da mãe terra que geme e clama para ser partilhada e não pode mais continuar sendo seqüestrada em poucas mãos gananciosas. A família que é o MST sabe que deve amar os pobres se colocando ao lado deles para com eles lutar contra as opressões e por direitos humanos, em especial os direitos para uma existência mínima como se alimentar e morar. Sabe também que para amar os opressores precisa retirar deles as armas da opressão. A grilagem de terra, feita pela CUTRALE e por tantas outras empresas e latifundiários, é arma mortífera que precisa ser superada. Logo, lutar por reforma agrária e pelo fim do latifúndio é amar o próximo que é a classe trabalhadora camponesa.
 
O Brasil foi um dos últimos países do mundo a abolir a escravidão. Seremos o último país a fazer a reforma agrária? O MST é hoje o negro amarrado no tronco, que a turma que se deleita com os prazeres capitalistas chicoteia com prazer e volúpia. O MST é Canudos redivivo e atomizado em pleno século XXI. O MST incomoda a tantos: ele, ao contrário de quem está contaminado pelo vírus da idolatria do mercado, ousa desafiar as convenções: ele é o membro rebelde de nossa sociedade que transgride o tabu e destrói o totem. Portanto, em termos psicanalíticos podemos dizer: os “soldados” do latifúndio para restituir a ordem capitalista/ patriarcal e para aplacar a inveja reprimida, tem que punir o MST, que é “o outro”.
 
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Frei Gilvander Moreira
Mestre em Exegese Bíblica, professor de Teologia Bíblica, assessor da CPT, CEBI, SAB, CEBs e Via ampesina; e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.brwww.gilvander.org.br


[1] Três mil pés de laranjas. A CUTRALE plantou em latifúndio grilado mais de 1 milhão de pés de laranja.
[2] Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.
https://www.alainet.org/pt/articulo/136978
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