Rumo a um novo Estado. Mas qual Estado?
28/01/2010
- Opinión
Debatedores do FSM discutem desafios, questões e obstáculos para se alterar o atual modelo político, econômico e social a partir da transformação das instituições liberais-burguesas
Que Estado se quer construir e como transformar o que temos hoje foi o tema central de discussão da mesa “Organização do Estado e do Poder Político”, realizada na manhã desta quinta-feira (28) na Usina do Gasômetro, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. O debate integra o seminário “FSM dez anos depois: desafios e propostas para um outro mundo possível”, que está sendo realizado entre os dias 25 e 29 de janeiro na capital gaúcha.
A primeira debatedora, Nancy Neamtan, da organização Chantier de l'Economie Sociale, do Canadá, começou sua fala celebrando o fato de que, de dez anos para cá, os movimentos que frequentam o Fórum Social Mundial partiram de uma postura de oposição ao modelo vigente para uma de proposição de alternativas. Segundo ela, hoje, existem novas formas de organizações, que cultivam os valores de solidariedade com o respeito ao ecossistema e ao planeta.
Mesmo assim, ela alertou para os inúmeros e complexos desafios pela frente, como o estabelecimento de novas formas de comércio e de condições de trabalho. Nesse sentido, Nancy apontou a economia solidária como um dos instrumentos para se transformar a sociedade a partir da democratização da economia.
Segundo ela, atualmente, até mesmo em países da Europa ou da América do Norte, onde as instituições democráticas são mais consolidadas, a participação popular na tomada de decisões está em declínio: “as pessoas estão tendo a impressão de que o voto não muda nada”, disse. Por isso, para Nancy, “é preciso redefinir o sentido de democracia”, ou seja, garantir que seu exercício seja mais participativo.
“É triste ver que em países onde as instituições democráticas funcionam bem, a desigualdade social vem aumentando. A fonte dessa realidade reside na concentração do poder econômico”, alertou ela, para quem o caminho para o socialismo deve vincular o exercício do poder político com o exercício do econômico. A economia solidária seria uma das formas de se alcançar esse objetivo. “Qualquer poder político será frágil se não tiver o poder econômico na sua base”, concluiu.
João Pedro Stédile, da coordenação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), introduziu sua exposição explicando que, desde a Comuna de Paris até a Queda do Muro de Berlim, existiram no mundo dois tipos de Estado: o burguês, que permitiu que a sociedade civil conquistasse importantes avanços, devido principalmente à atuação da classe trabalhadora, que por sua vez conquistou direitos; e o socialista da URSS e do leste europeu, que, para ele, “infelizmente, apesar de terem surgido a partir de revoltas populares, acabaram não executando a democracia popular. Foram estados centralizados, controladores da população”.
Ainda de acordo com Stédile, a partir dos anos 1990, no entanto, o próprio Estado burguês foi “sequestrado” pelo capitalismo financeiro e pelas transnacionais. “O Estado mudou de características, não é mais um Estado republicano”, disse.
Para ele, hoje, o Estado é o principal instrumento de acumulação de capital, através do pagamento de juros da dívida pública para bancos e empresas. “Ou seja, o voto não vale nada”. Como exemplo desse argumento, ele cita os Bancos Centrais de todo o mundo, que têm mais poder que o próprio poder político de cada país. “Ou seja, se há uma coisa que devemos reivindicar é eleger o presidente dos BCs. E estatizar todo o sistema financeiro”.
Segundo o coordenador do MST, outro elemento fundamental do novo Estado é a mudança no modo da burguesia reproduzir sua ideologia. Se antes isso era feito principalmente pelas escolas e igrejas, hoje é executado pelos meios de comunicação, especialmente a televisão. “Assim, devemos democratizar os meios de comunicação. Temos que acabar com a Globo. Nossa consigna tem que ser: 'Com a Globo, não há democracia'”.
Em vista dessa realidade, Stédile colocou um desafio para os movimentos populares: “entender a natureza deste novo Estado e seus elementos fundamentais para definirmos onde devemos acumular forças para contruir o Estado que queremos”.
O terceiro debatedor, o italiano Giampiero Rasimelli, do Observatório Euro-Latino-Americano de Democracia e Desenvolvimento Social (Euralat), defendeu a criação de um governo mundial, que funcionasse sustentado em instituições internacionais. Segundo ele, para essa proposta funcionar, é preciso “mais regionalismo”. Ou seja, a nível continental ou sub-continental. “O governo mundial deve ser o representante das diversas partes do planeta, mas com uma atuação diferente do que estamos acostumados”.
Na mesma lógica, Rasimelli afirmou que faz-se necessário também pensar no Estado nacional, que, de acordo com ele, deve ser a composição de todos os interesses regionais, que, por sua vez, mediariam a construção do governo mundial.
O indiano Prabir Purkayastha, da organização All India Peace and Solidarity Organization, introduziu sua fala afirmando que existe hoje no mundo dois tipos de crise: a econômica e a política “Talvez com a exceção da América Latina, no resto do mundo a esquerda não está avançando. Como podemos levar adiante um projeto pró-pessoas, vantajoso para todos? Como configurar o poder do Estado de forma diferente? Temos que redescobrir uma alternativa socialista. Que tipo de organização da economia e das instituições políticas queremos? A economia solidária pode ser parte da resposta”, disse.
Já a queniana Njoki Njoroge Njehu, das redes Daughters of Mumbi Global Resource Center e Africa Jubilee South, afirmou que o Estado hoje vigente não é capaz de responder às necessidades da população. Como exemplo, citou a falta de estrutura para se mitigar os efeitos do terremoto no Haiti.
Segundo ela, o que a esquerda deve desejar para seus próprios governos é a ação no nível da multilateralidade. “No caso do Haiti, vimos que as únicas entidades que os governos têm para responder às crises fazem parte do domínio militar. Só mandam soldados aos povos que estão sofrendo. Os militares, mesmo que estejam distribuindo água ou alimentos com uma mão, têm uma arma na outra. Com isso, que mensagem estamos enviando?”.
Ao final de sua exposição Njoki evocou a memória de Dennis Brutus, ativista anti-apartheid que morreu em 26 de dezembro de 2009. De acordo com ela, a campanha bem-sucedida estimulada por ele para que a África do Sul fosse expulsa das Olimpíadas, lhe representou uma lição: “cada um de nós podemos pegar um pedacinho da luta global. Mas estou falando de movimentos, de redes de pessoas. Temos que educar as pessoas para elas se organizarem”.
Último a falar, Pablo Solón, embaixador da Bolívia na ONU e membro da Aliança Social Continental, dividiu com a plateia a experiência de construção de um novo Estado que, segundo ele, o governo de Evo Morales está levando a cabo na Bolívia. De acordo com Solón, um Estado se constrói incluindo os excluídos do sistema. “Estamos fazendo com que a antiga república se transforme no atual Estado Plurinacional”.
No entanto, segundo ele, não se pode chegar no governo apenas para administrar o sistema. “Temos que recuperar nossos recursos naturais e empresas privatizadas. Sem isso, não é possível ocorrer nenhuma transformação de fundo”.
Solón afirmou também que o desafio da nova gestão de Evo Morales é industrializar o país, fazendo desse um processo redistributivo. “Afinal, o que é o Bem Viver? É compartilhar, não tentar estar melhor que o outro, porque há um limite para isso, inclusive estabelecido pela própria natureza”.
- Igor Ojeda de Porto Alegre (RS)
Fonte: Brasil de Fato http://www.brasildefato.com.br
https://www.alainet.org/pt/articulo/139188
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