O capitalismo contra a Mãe Terra

23/03/2010
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Indígenas frente à crise do modelo capitalista, organizações de povos originários apresentam a proposta do “Viver Bem” ao Fórum Permanente sobre Questões Indígenas da ONU

“Durante 500 anos, tentaram nos fazer desaparecer. Não só fi sicamente, pois tentaram matar nossa língua, música, comida, cultura. Trabalhamos na clandestinidade, preservando ossos saberes, porque sabíamos que um dia iríamos voltar ao caminho do equilíbrio, o Pachakuti (...) Nos dividiram com bandeiras, hinos. Mas nós sabemos que um dia não existirão fronteiras (...) Queremos voltar a ser rebeldes outra vez, mas rebeldes com sabedoria. Estamos nesse caminho, estamos em pleno processo”.
 
Com essas palavras, o ministro de Relações Exteriores da Bolívia, David Choquehuanca, abriu a reunião preparatória do Fórum Permanente sobre Questões Indígenas da Organização das Nações Unidas (ONU): o UNPFII, na sigla em inglês.
 
De acordo com o documento final lançado pelas organizações indígenas, o encontro, realizado nos dias 19 e 20 de março, aconteceu em Chuki Apu Marka, como era conhecida La Paz, uma das capitais da Bolívia, país que, devido à atuação do presidente Evo Morales, tornou-se a principal referência internacional da luta indígena em defesa do meio ambiente. Durante a Conferência da ONU sobre o aquecimento global, realizado em Copenhague (Dinamarca), em dezembro do ano passado, Morales – que já havia sido escolhido por organizações indígenas para apresentar ao órgão “Os dez mandamentos para salvar a Madre Tierra” – convocou a Conferência Mundial dos Povos sobre Mudanças Climáticas para a cidade boliviana de Cochabamba, entre os dias 20 e 22 de abril, propôs a realização de um referendo mundial para definir as políticas que enfrentarão o aquecimento global e, fazendo alusão a Fidel Castro, cobrou os países industrializados a pagarem a dívida ecológica em vez de cobrarem a dívida externa dos países em desenvolvimento.
 
O capitalismo contra a Mãe Terra A reunião preparatória
 
O UNPFII é um organismo assessor do Conselho Econômico e Social da ONU, efetivado em 2002 “para incidir e sensibilizar na compreensão e cumprimento dos direitos individuais e coletivos dos povos indígenas do mundo”, de acordo com sua página na internet. Composto por oito membros de governos e oito membros nomeados por organizações indígenas, o fórum se reúne uma vez por ano, mas realiza reuniões preparatórias nas quais são colhidas informações que subsidiarão o encontro anual.
 
A reunião em La Paz escutou as organizações indígenas da América Latina, que propuseram a inclusão de seus conhecimentos ancestrais nas estratégias para enfrentar a crise econômica. De acordo com a presidente do UNPFII, Victoria Tauli-Corpuz, o desafio é “como viver bem em territórios que são ricos – não só em recursos, mas em cultura –, mas estão na miséria”.
 
Segundo ela, “antes, nossos governos consideravam os costumes indígenas obstáculos ao desenvolvimento (...) A quinua, por exemplo, antes era comida de pobre; agora, querem se apropriar dela e enriquecer. Descobriram seu valor nutricional (...) É nosso dever proteger nossa sabedoria e não permitir que o mundo rico faça disso uma mercadoria”. Na opinião de Victoria, é preciso aumentar a pressão nos fóruns da ONU e a cobrança sobre os governos, além de influenciar também as corporações.
 
Projetos prejudiciais
 
Presidente da Coordenadora Andina das Organizações Indígenas (Caoi), o peruano Miguel Palacín concorda com as medidas a serem tomadas, mas vê como muito difíceis as condições para tal. “Algumas empresas vivem de criar hidrelétricas, de monocultivos, de mineração etc. Na América do Sul, isso está acompanhado da IIRSA [Iniciativa de Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana], através da qual os governos e empresas estão comprometidos com esses projetos que vão dividir comunidades com estradas e que terão um grande impacto ambiental. Não sei o que fazer no Equador, onde o presidente faz parte desse processo de mudança do continente, mas há muita briga com os indígenas. No Peru, há uma perseguição contra companheiros exilados. Na Colômbia, a militarização é tremenda”,explica.
 
O documento emitido pelas organizações indígenas ao final do encontro afirma que seus povos “são as principais vítimas das políticas de desenvolvimento coloniais e capitalistas”, e que “as práticas dos invasores de ontem são as mesmas das empresas transnacionais de hoje”.
 
O texto adverte, ainda, que as instituições multilaterais ensaiaram diversos conceitos de desenvolvimento – desenvolvimento sustentável, étnico-desenvolvimento, autodesenvolvimento, desenvolvimento humano, desenvolvimento com identidade etc. –, mas a pobreza no território indígena se aprofunda.
 
De acordo com as organizações indígenas, “o capitalismo engendrou, através de suas políticas, as crises energética, alimentícia, climática, hídrica e financeira, com a finalidade de reacomodar-se para continuar saqueando os recursos da Pachamama [Mãe Terra]”. Por isso, “as soluções defendidas pelo próprio sistema tendem a estender e perpetuar os efeitos negativos sobre nossos povos e territórios”.
 
ONU: avanços e limitações
 
Para as organizações indígenas, espaço nas Nações Unidas foi obtido com bastante luta e é responsável por muitas conquistas, mas esbarra na não implementação de seus acordos
 
Durante a coletiva de imprensa concedida pelos membros do Fórum Permanente sobre Questões Indígenas da ONU (UNPFII) em sua reunião na Bolívia, o Brasil de Fato indagou à presidente do organismo, Victoria Tauli-Corpuz, sobre os avanços concretos obtidos por este em seus oito anos de atuação.
 
Como resposta, ela afirmou que foram emitidas notas enérgicas contra o massacre em Bágua, no Peru, contra a situação dos índios no Chile e contra os agrocombustíveis. Victoria destacou ainda a criação da Universidade Indígena Intercultural, em convênio com 30 universidades latino-americanas, e a missão realizada na região do Chaco boliviano, onde alguns indígenas Guarani foram libertados do trabalho escravo e a titulação de terras em favor deles foi acelerada. “Falamos com autoridades, despertamos a consciência boliviana para esses trabalhos forçados, desenvolvemos programas com a comunidade Guarani, tivemos reuniões com pecuaristas, latifundiários, que agora sabem desse problema e estão dispostos a fazer cursos de capacitação”, relatou.
 
Articulação
 
Segundo ela, “o fórum trabalhou muito nos temas de saúde, meio ambiente, educação e direitos humanos, mas poucas recomendações foram implementadas. Por isso, vamos cobrar dos governos em Nova York [sede da ONU]”, completou.
 
Tarsila Rivera, quéchua do Peru e coordenadora do Enlace Continental das Mulheres Indígenas da América do Sul, considera os espaços conseguidos na ONU um avanço, uma vez que eles “não foram um presente, mas uma briga que começou na década de 1970, com os nossos avós”, e servem como um mecanismo de pressão. “Não podemos dizer que é ruim, que não serve. Há uma composição paritária, em que dizemos o que está acontecendo, e o fórum pede informação aos governos para que digam o que estão fazendo”, argumenta.
 
Além disso, Rivera ressalta como ponto positivo as possibilidades de articulação surgidas com a criação do UNPFII. “A partir dele, criamos muitas organizações de mulheres indígenas nacionais e internacionais, como a Fimi [Federação Internacional de Mulheres Indígenas]. Também nos inteiramos da 3ª Conferência Mundial Contra o Racismo e a Discriminação, tema visto como um problema dos afrodescendentes.
 
Aí entendemos que havia um racismo estrutural, que não se reflete só na discriminação racial, mas na inexistência de políticas públicas que nos inclua”, exemplifica.
 
Limites
 
Contudo, Rivera expõe os limites do organismo: “As mulheres indígenas emplacaram mais de 100 recomendações no fórum nos últimos oito anos, nas áreas da educação, participação política, atendimento à saúde, reconhecimento das nossas medicinas tradicionais etc. Mas algumas coisas não se implementam pela questão do orçamento, como as Metas do Milênio. Não é só assinar”.
 
Segundo o presidente da Coordenadora Andina das Organizações Indígenas (Caoi), Miguel Palacín, é preciso aprofundar a diplomacia indígena, mas ele também reivindica maior legitimidade a suas organizações. “A ONU é uma instância dos estados. Nós levamos a agenda, mas quem toma as decisões são eles. Queremos que nossos acordos sejam adotados sem nenhum condicionamento. Essa instância deve avançar e proteger os povos indígenas, não as multinacionais. É muito complicado isto, não? É sujeito de direitos uma multinacional que depreda a natureza, mas quando pedimos que a Mãe Terra seja sujeito de direitos, não aceitam”.
 
Alguns pontos do documento fi nal do encontro do UNPFII:
 
-          Declaramos líder espiritual e político dos povos indígenas de Abya Yala [continente americano] o irmão Evo Morales, como defensor do Viver Bem e dos Direitos da Mãe Terra.
 
-          Pleno respeito e aplicação da Declaração das Nações Unidas para os Direitos dos Povos Indígenas (DNUDPI) e do convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
 
-          A DNUDPI deve ser elevada ao status de lei em cada um dos estados de Abya Yala [continente americano] para garantir sua aplicação efetiva, seguindo o bom exemplo do Estado Plurinacional da Bolívia.
 
-          Declaramos a intangibilidade das cabeceiras de rios, ecossistemas frágeis e vales produtivos, como freio à incursão das empresas transnacionais dedicadas a atividades extrativas.
 
-          A Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, que vem sendo redigida pela Organização dos Estados Americanos (OEA), deve incorporar os direitos da Mãe Terra e da vida, o que tem sido negado pelo Grupo de Trabalho encarregado de elaborar esse documento.
 
-          Elaborar políticas públicas interculturais e participativas sustentadas no Viver Bem.
 
-          Criar o Instituto de Pesquisa do Viver Bem para compilar, sistematizar e difundir o pensamento indígena de harmonia com a Mãe Terra.
 
-          Rechaçamos a transferência da responsabilidade aos países em desenvolvimento pela redução de emissões de poluentes.
 
-          Nos marcos do Convênio 169 da OIT e da DNUDPI, os estados, bancos internacionais e empresas transnacionais não podem de maneira unilateral desenvolver megaprojetos como a IIRSA [Iniciativa de Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana], o REDD [Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação] e outros.
 
-          Sancionar as empresas e estados que continuam violando os direitos humanos, coletivos e ambientais, constituindo uma Corte Internacional de Justiça Climática.
 
-          Realizar a Minga [em quéchua, signifi ca “ação coletiva, comunitária”] Global pela Mãe Terra em 12 de outubro de 2010.
 
-          Aderir à convocação da Conferência Mundial dos Povos sobre a Mudança Climática e os Direitos da Mãe Terra (20 a 22 de abril em Cochabamba, Bolívia).
 
-          Solidariedade aos povos do Haiti e Chile, vítimas de devastadores terremotos.
 
 
https://www.alainet.org/pt/articulo/140251?language=es
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