Oráculos da verdade

21/05/2010
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O filósofo alemão Emmanuel Kant não anda muito em  moda. Sobretudo por ter adotado em suas obras uma linguagem hermética. Porém,  num de seus brilhantes textos – “O que é o Iluminismo?” – sublinha um fenômeno  que, na cultura televisual que hoje impera, se torna cada vez mais  generalizado: as pessoas renunciam a pensar por si mesmas. Preferem se colocar  sob proteção dos “oráculos da verdade”: a revista semanal, o telejornal, o  patrão, o chefe, o pároco ou o pastor.

Esses os guardiões da verdade que, bondosamente, velam  para não nos permitir incorrer em equívocos. Graças a seus alertas sabemos que  as mortes de terroristas nas prisões made in USA de Bagdá e Guantánamo  são apenas acidentes de percurso comparadas à morte de um preso comum,  disfarçado de político, num hospital de Cuba, em decorrência de prolongada  greve de fome.

São eles que nos tornam palatáveis os  bombardeios dos EUA no Iraque e no Afeganistão, dizimando aldeias com crianças  e mulheres, e nos fazem encarar com horror a pretensão de o Irã fazer uso  pacífico da energia nuclear, enquanto seu vizinho, Israel, ostenta a bomba  atômica.

São eles que nos induzem a repudiar o MST  em sua luta por reforma agrária, enquanto o latifúndio, em nome do  agronegócio, invade a Amazônia, desmata a floresta e utiliza mão de obra  escrava.

É isso que, na opinião de Kant, faz do  público Hausvieh, “gado doméstico”, arrebanhamento, de modo que todos  aceitem, resignadamente, permanecer confinados no curral, cientes do risco de  caminhar sozinho.

Kant aponta uma lista de oráculos da verdade: o mau  governante, o militar, o professor, o sacerdote etc. Todos clamam “Não  pensem!” “Obedeçam!” “Paguem!” “Creiam!” O filósofo francês Dany-Robert Dufour  sugere incluir o publicitário que, hoje, ordena ao rebanho de consumidores:  “Não pensem! Gastem!”

Tocqueville, autor de Da democracia na  América (1840), opina em seu famoso livro que o tipo de despotismo que as  nações democráticas deveriam temer é exatamente sua redução a “um rebanho de  animais tímidos e industriosos”, livres da “preocupação de pensar”.  

O velho Marx, que anda em moda por ter previsto as  crises cíclicas do capitalismo, assinalou que elas decorreriam da  superprodução, o que de fato ocorreu em 1929. Mas não foi o que vimos em 2008,  cujos reflexos perduram. A crise atual não derivou da maximização da  exploração do trabalhador, e sim da maximização da exploração dos  consumidores. “Consumo, logo existo”, eis o princípio da lógica  pós-moderna.

Para transformar o mundo num grande  mercado, as técnicas do marketing contaram com a valiosa contribuição de  Edward Bernays, duplo sobrinho estadunidense de Freud. Anna, irmã do criador  da psicanálise e mãe de Bernays, era casada com o irmão de Martha, mulher de  Freud. Os livros deste foram publicados pelo sobrinho nos EUA. Já em 1923, em  Crystallizing Public Opinion, Bernays argumenta que governos e  anunciantes são capazes de “arregimentar a mente (do público) como os  militares o fazem com o corpo”.

Como gado, o consumidor busca sua segurança na  identificação com o rebanho, capaz de homogeneizar seu comportamento, criando  padrões universais de hábitos de consumo através de uma propaganda libidinal  que nele imprime a sensação de ter o desejo correspondido pela mercadoria  adquirida. E quanto mais cedo se inicia esse adestramento ao consumismo, tanto  maior a maximização do lucro. O ideal é cada criança com um televisor no  próprio quarto.

Para se atingir esse objetivo é preciso incrementar  uma cultura do egoísmo como regra de vida. Não é por acaso que quase todas as  peças publicitárias se baseiam na exacerbação de um dos sete pecados capitais.  Todos eles, sem exceção, são tidos como virtudes nessa sociedade neoliberal  corroída pelo afã consumista.

A inveja é estimulada no anúncio da família que possui  um carro melhor que o de seu vizinho. A avareza é o mote das cadernetas de  poupança. A cobiça inspira as peças publicitárias, do último modelo de  telefone celular ao tênis de grife. O orgulho é sinal de sucesso dos  executivos assegurados por planos de saúde eterna. A preguiça fica por conta  das confortáveis sandálias que nos fazem relaxar ao sol.  

A luxúria é marca registrada dos jovens esbeltos e das  garotas esculturais que desfrutam vida saudável e feliz ao consumirem bebidas,  cigarros, roupas e cosméticos. Enfim, a gula envenena a alimentação infantil  na forma de chocolates, refrigerantes e biscoitos, induzindo a crer que  sabores são prenúncios de amores.

Na sociedade neoliberal, a liberdade se restringe à  variedade de escolhas consumistas; a democracia, em votar nos que dispõem de  recursos milionários para bancar a campanha eleitoral; a virtude, em pensar  primeiro em si mesmo e encarar o semelhante como concorrente. Esta a verdade  proclamada pelos oráculos do sistema.

- Frei Betto é escritor, autor de “Um homem chamado  Jesus” (Rocco), entre outros livros.
http://www.freibetto.org
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