“COP 16 fortalece a importância do mercado na preservação ambiental”

14/12/2010
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AQUECIMENTO GLOBAL Para a pesquisadora Silvia Ribeiro, conferência da ONU sobre o clima assiste a “um avanço enorme na mercantilização da natureza”
 
COMPARADA COM A Conferência das Partes da ONU sobre Mudança Climática (COP 15) realizada em dezembro de 2009 em Copenhague (Dinamarca), a COP 16, que acontece entre os dias 30 de novembro e 10 de dezembro em Cancún (México), está bastante esvaziada. Pior, depois das frustrações geradas pelo fracasso nas negociações para redução de carbono no ano passado, o encontro deste ano pode caminhar para trás. Em entrevista, a pesquisadora Silvia Ribeiro, do Grupo ETC do México e do Canadá, explica que as conversações da COP 16 avançam no conceito de privatização dos recursos naturais como a principal forma de impedir o aquecimento climático. É a ideia de que é preciso dar valor à “floresta em pé”, para que assim o mercado regule a preservação. Ribeiro acredita que tal modelo está orientado somente para o lucro e que as populações serão esquecidas. Na entrevista, a pesquisadora ainda comenta as negociações em Cancún, a importância e os limites dos encontros da ONU e a situação do Brasil no cenário de novas tecnologias e privatização ambiental.
 
Brasil de Fato – Nas negociações nos fóruns da ONU, particularmente aqueles sobre mudanças climáticas, os países costumam atuar em blocos já constituídos há anos. Na COP 16, há alguma mudança nesse cenário?
 
Silvia Ribeiro – O novo é que os países do norte têm novos aliados chamados de Basic, que são Brasil, África do Sul, Índia e China. Esses países atualmente são grandes emissores de gases de efeito estufa, mas historicamente não. Eles têm menor responsabilidade do que os países do norte sobre a crise climática, mas eles têm encontrado convergências.
 
Dizia-se que o Brasil mudou de posição para somar-se aos países da Alba. E também que havia uma tentativa de isolar a Bolívia na COP 16.
 
Há um trabalho muito grande, sobretudo dos EUA, de isolar a Bolívia. A classificam como o país mais radical, quando na realidade o que ela está fazendo é pedir o mínimo, levando adiante os acordos de Cochabamba, da Conferência dos Povos, de abril de 2010, onde havia 35 mil pessoas de 142 países. Já o Brasil sempre teve uma posição ambígua, porque é um país muito grande, tem muitas ambições, muitas desigualdades internas. Na semana passada [a entrevista foi concedida na segunda-feira, dia 6], após o Japão dizer que não assinaria um segundo período de compromissos do Protocolo de Kioto – o que é uma típica mensagem para polarizar todas as discussões –, o Brasil imediatamente disse que se o Japão não assina, eles também não assinariam. Então, o Brasil não mudou de posição. Esse é o jogo dos países mais emissores para não ter nenhum compromisso legalmente vinculante. O que não se quer é ir ao núcleo do assunto, ou seja, há que se reduzir as emissões e isso não vai se fazer através do mercado. E, hoje, os que estão dizendo que o Protocolo de Kioto não é bom foram os mesmos que o fizeram. Dizem que há que se criar outro, mas, na verdade, o que querem é criar um vazio do ponto de vista jurídico internacional. O protocolo é muito débil, mas é o único com obrigações legais existente. Atualmente, os países têm que informar em cada COP as medidas que tomaram para reduzir as emissões e eles sequer querem prestar contas, querem fazer somente acordos voluntários, em que cada um faz o que quer e no ano seguinte podem dizer, “ah, eu queria, mas não pude”. Por outro lado, querem aprovar pequenos acordos para introduzir novos elementos, como florestas e agricultura, no mercado de carbono, o que não apresentará nenhuma redução real das emissões.
 
Ano após ano, os espaços da ONU acontecem sem definições relevantes. Que validade a senhora vê ainda nesses fóruns?
 
O problema é que esse é o único instrumento internacional neste momento de relações entre os países e onde há a relação de um país, um voto. Aqui, a Bolívia pode vir com os acordos de Cochabamba e fazer valer essas decisões, porque aqui as definições se tomam por consenso. Ao contrário da Organização Mundial do Comércio ou do Banco Mundial, nos quais as decisões são tomadas segundo a quantidade de dinheiro que cada país põe ou pelos interesses comerciais que existem. Há um trabalho para debilitar a ONU, para que ela não possa ter nenhum papel. Claro que, a partir dos movimentos, nós temos que seguir trabalhando a organização local, de base, entre as organizações e sempre desde baixo, mas são trabalhos paralelos. A questão se divide entre o sistema capitalista representado por suas transnacionais – uma centena delas representa mais da metade da economia mundial – e os governos que legislam para que essas transnacionais possam mover-se tranquilamente.
 
Como senhora caracterizaria esse discurso comercial-ambiental que vem ganhando força na ONU?
 
Há um avanço enorme na mercantilização da natureza. Eles já não se detêm ao que se chama de recursos naturais, avançam sobre tudo que há na natureza. O que se está discutindo na COP 16 é como privatizar o ar, quem vai ter acesso ao ar limpo que é necessário para controlar o clima do planeta. O capitalismo sempre faz novos negócios a partir dos desastres que provoca e, quanto maior é o desastre, maior é o negócio. Acabamos de lançar um documento que se chama “Os novos donos da biomassa” e nele dizemos que a ideia geral agora é: não existe natureza, plantas, florestas, rios, espaços públicos, comunitários. Tudo que tem celulose é biomassa e tudo é biomassa, até nós, na verdade. E, nessa nova visão do mundo, toda biomassa pode ser uma nova fonte de combustível ou de outras coisas, através da engenharia genética extrema, também conhecida como biologia sintética. Com isso, se pode digerir a celulose de qualquer coisa que a tenha. Isso já se está desenvolvendo no Brasil. Para que se entenda um pouco a lógica: hoje, nós vivemos em uma civilização baseada no petróleo, não só para combustíveis, mas toda a agricultura está petrolizada, sejam nos agrotóxicos, nas embalagens, nos plásticos. E o petróleo é matéria orgânica, ou seja, carbono. São hidrocarbonetos que estiveram milhões de anos na terra, é uma energia condensada muito forte. Das cadeias de hidrocarbonetos fazem outros polímeros. Então, a ideia é usar os carboidratos – uma matéria orgânica, mas que não esteve milhões de anos na Terra –, fermentá-los com açúcares e, assim, produzir os polímeros que se formam através do petróleo. E já estão fazendo combustíveis e plástico, por exemplo, com milho. Não deixarão de usar petróleo, porque as petroleiras são enormes empresas, vão seguir usando até que não haja mais e, além disso, vão usar biomassa como nova fonte.
 
Assim, a demanda de biomassa será enorme no futuro e isso significa demandas enormes de terra e água. De onde vão tirar? Vão tirar de onde estão os camponeses e indígenas. No Brasil isso é muito claro. O país já é um retalho: em um lado milho, em outro eucalipto, em outro soja etc. Com a biologia sintética, você poderá ter variados tipos de plantação e depois decidir se vai usá-la para fazer celulose para papel, para fazer agrocombustível ou para fazer medicamentos. Isso parece ficção científica, mas não é, já estão fazendo no Brasil e nos Estados Unidos.
 
Daí surge o que vocês chamam de bioeconomia?
 
Esse exemplo que dei é um caso extremo da bioeconomia. Há três bases dela. Uma que tem a ver com as funções da natureza, mercantilizada e transformada em serviços ambientais. O mercado de carbono é o típico exemplo desse modelo, onde se pode vender o ar, as florestas, separado de toda a gestão de um povo. Há outra que é a biotecnologia, feita dos transgênicos, da indústria farmacêutica. Por fim, está a economia da biomassa que mencionei. O resultado é terrível, porque a biomassa do planeta não é suficiente para a ambição das transnacionais. Alguns institutos de pesquisa calcularam que 24% da biomassa renovável terrestre está mercantilizada. O resto está na natureza ou sendo usado por comunidades, integrando um ciclo que, ao final, volta para a natureza.
 
E quais seriam as consequências do mecanismo REDD (Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação) ser incorporado nos acordos aqui?
 
A tentativa é por as florestas dentro dos mercados de carbono, sobretudo no mercado financeiro, já que ele se baseia na venda e revenda de créditos de carbono. As florestas ainda não eram consideradas nesse mercado porque é difícil calcular a quantidade de carbono absorvido, já que elas absorvem e emitem carbono e isso varia entre diferentes vegetações, solos e manejos. Mas agora inventaram métodos terríveis para medir isso. Com a incorporação do REDD nos acordos da ONU, todos os bosques do mundo viram uma fonte de especulação em potencial. E isso é muito importante para um mercado financeiro em crise, pois se cria um mercado novo. Existem três modalidades distintas e complementares: o REDD, o REDD+ e o REDD++. O primeiro é basicamente a venda de serviços ambientais das florestas. É um incentivo para que os desmatadores deixem 10% do bosque em pé. O segundo é chamado de “manejo sustentável das florestas”. Dizem que se pode ganhar dinheiro vendendo esse serviço, mas em troca, não podem mais tocar na mata, então, na verdade é como tirá-las do território. E a terceira é, por exemplo, o maior projeto REDD do mundo, da Shell, que foi a Bornéu [ilha do sul asiático cujo território é administrado por Malásia, Indonésia e Brunei] para comprar 100 mil hectares de bosque, pagando cerca de 10 dólares pela tonelada de carbono sequestrado. Mercadoria que eles podem vender a 20 dólares na bolsa de valores. Então, além de ficar com o bosque e com o ar e de justificarem sua poluição com a compra de árvores que sequestram seu carbono, eles vão recuperar rapidamente o dinheiro investido vendendo os créditos na bolsa.
 
E o que há de terrível no método de calcular a quantidade de carbono absorvido?
 
Ele se baseia em um monitoramento por satélite, com sistema de imagens infravermelho. Foi com a tecnologia do infravermelho que acharam o Che Guevara na floresta e isso foi há décadas, agora estão muito mais avançados. Com isso, será possível controlar toda a movimentação da região, ter um controle total da vegetação, saber onde estão as plantas mais valiosas.
 
QUEM É: Uruguaia radicada no México, Silvia Ribeiro trabalha para a organização internacional Grupo de Ação sobre Erosão, Tecnologia e Concentração (ETC), que pesquisa a concentração coorporativa, novas tecnologias e os impactos que estas provocam.
 
- Vinicius Mansur e Viviane Rojas de Cancún (México)
Brasil de Fato – edição 406 - de 9 a 15 de dezembro de 2010
https://www.alainet.org/pt/articulo/146220?language=es
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