A roda da fortuna

19/07/2011
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O que distingue a modernidade das épocas anteriores é a nossa capacidade de criar e destruir, destruir e criar, sempre em busca de algo novo e melhor. Já não há durabilidade. Objetos que, numa mesma família, acompanhavam gerações, passavam de avós a filhos, netos e bisnetos, já não existem. A era dos museus de antiguidades terminou. Já não haveria suficiente espaço para abrigar tantos modelos de carro que se sucedem em meses, ou gerações de computadores que surgem de um semestre ao outro.
 
 O processo de obsolescência não atinge apenas objetos. Influi também na cultura e no comportamento. Por que devo conservar e ser fiel, hoje, a princípios e valores que me norteavam ontem? Ontem me convinha sonhar com um mundo mais justo, engajar-me na mudança da realidade, manter uma atitude ética que diferia daqueles que me serviam de antimodelos e eram meus potenciais inimigos. Eu não queria ser como eles.
 
 Agora o mundo mudou, e eu com ele. Meu idealismo também se tornou obsoleto. Já não bafeja a minha vaidade, nem me traz vantagens. Findou o mundo em que havia heróis, protótipos, modelos a serem seguidos – Gandhi, Mandela, Che. Hoje os paradigmas são pessoas de sucesso no mercado, celebridades, essa gente bonita e rica que ostenta luxo, esbanja saúde e ocupa sorridente as páginas das revistas de variedades.
 
 Que vantagem levo ao arrastar para a pós-modernidade um mundo obsoleto que ninguém mais admira nem quer ouvir falar? O Muro de Berlim ruiu, os éticos não amealharam fortunas, os antigos valores soam agora como bregas, ultrapassados. Pobre de mim se insisto em me manter apegado a eles! São todos obsoletos.
 
 Vivemos agora no novo mundo em que tudo é continuamente deletável e descartável. Do meu computador ao carro, do estilo de vida à arte, tudo que é in hoje será out amanhã. Resta-me manter atento nesse esforço permanente de atualização. E não me cobrem coerência! Se minha própria aparência física sofre frequentes modificações por força de malhações e tratamentos estéticos, por que minha identidade deve permanecer imutável?
 
 Sim, ontem eu me alinhava ideologicamente à esquerda, assumia a causa dos oprimidos, engajava-me em manifestações de protesto, expressava a minha indignação frente a esse mundo injusto.
 
 Ora, ninguém é de ferro! Se ouso mudar minha aparência para manter-me eternamente jovem e sedutor, por que não haveria de também mudar minha postura ideológica, meus princípios e ideais de vida, de modo a não perder o bonde da contemporaneidade?
 
 Bem sei: a cabeça pensa onde os pés pisam. Conheço antigos companheiros – eles também obsoletos – que não tiveram a mesma sorte que eu e continuam a lidar, cotidianamente, com o calvário de pagar contas e aluguel, conservar o velho carro, habitar modestamente em domicílio que exige reparos. Entendo que ainda conservem valores obsoletos e sonhem com um outro mundo possível, embora sem o mesmo ímpeto de outrora para forjar o futuro com as próprias mãos.
 
 Comigo, felizmente, a vida foi generosa. Graças àqueles princípios obsoletos, alcei funções de poder, destaquei-me do vulgo, adquiri prestígio e visibilidade. Troquei de moradia, guarda-roupa e mulher. Passei a dispor de uma conta bancária que engorda mês a mês e me permite desfrutar de prazeres jamais sonhados anos atrás. Hoje sou amigo, e até parceiro, de muitos que ontem eram meus inimigos e alvos de minhas contundentes críticas.
 
 Isto é obvio: o mundo gira e a lusitana roda. Não posso correr agora o risco de despencar dos píncaros que alcancei após árdua escalada e retornar à vida anônima castigada por dívidas e dificuldades. Não sou capaz de me admitir passageiro de um ônibus e nem mesmo perder tempo com aqueles que são reféns de uma existência modesta. Não que os despreze. Longe de mim. Mas tenho demasiados interesses a preservar e não devo me arriscar.
 
 Se perco a minha posição social, se retorno ao mundo obsoleto, como haverei de manter meu confortável padrão de vida, o sítio, a casa de praia, as férias no exterior, a troca anual de carro? Como haverei de propiciar a filhos e netos o conforto que jamais tive na infância e na adolescência?
 
 A vida dá voltas, e é preciso, nesse mundo de acirrada competitividade, ter sempre à mão o Manual de Sobrevivência na Selva. Vivo entre leões e bem sei o quanto eles armam o bote e pretendem me abocanhar. Esforço-me para, na disputa feroz por um lugar ao sol, não me tornar, também eu, um ser descartável, deletável, obsoleto.
 
 Cultivo hoje a meridiana clareza de que só vale a pena sofrer riscos quando se vive uma vida medíocre, anódina, de gado no rebanho. Agora que alcancei a singularidade nesse mundo de anônimos, e me tornei uma pessoa diferenciada do vulgo, só me resta estar atento para não me tornar também um ser obsoleto.
 
 Não devo mais olhar para o passado, onde jazem esquecidos meus ex-heróis, nem para o futuro, como se ali houvesse um ideal histórico. Basta-me olhar para dentro de mim mesmo e saber explorar ao máximo o que tenho de melhor: a astúcia de minha inteligência, a força de minha vontade e o poder de traficar influências.
 
Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros. http://www.freibetto.org/    twitter:@freibetto
 
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