No cerne do ciclone: a crise da dívida na União Europeia (3/7)
O BCE, servo fiel dos interesses privados (III)
02/10/2011
- Opinión
Em julho-agosto de 2011, as bolsas foram novamente abaladas a nível internacional. A crise aprofundou-se na União Europeia, em particular em matéria de dívidas. O CADTM entrevistou Eric Toussaint a fim de descodificar os diferentes aspectos desta nova fase da crise[1].
CADTM: A 8 de agosto de 2011, o BCE começou a comprar os títulos dos países europeus que estavam com dificuldades. Qual é a tua opinião?
Eric Toussaint: Primeiro ponto muito importante: os meios de comunicação anunciaram que o BCE ia recomeçar a comprar títulos, sem referir que essas compras de títulos teriam lugar, como é habitual, unicamente no mercado secundário.
O BCE não compra títulos da dívida grega directamente ao governo grego, compra-os aos bancos no mercado secundário. É por isso que os bancos exprimiram contentamento a 8 de agosto de 2011.
Com efeito, entre março de 2011 e 8 de agosto de 2011, o BCE, segundo as suas próprias declarações, não comprou títulos no mercado secundário. Isto deixou os bancos descontentes, porque nesse período procuraram desfazer-se dos títulos gregos e doutros títulos dos Estados em dificuldade no mercado secundário a preços de saldo. A maior parte deles vendeu muito pouco, porque os preços eram demasiado baixos[2]. Por isso, fizeram pressão para que o BCE recomeçasse a comprar.
CADTM: O regresso do BCE ao mercado secundário leva à subida dos preços, não é?
Eric Toussaint: Sim, mas isso foi momentâneo e o mais importante é que o BCE compra nitidamente acima do preço de mercado e em quantidades muito grandes. Entre maio de 2010 e março de 2011, o BCE comprou 66 000 milhões de euros de títulos gregos aos banqueiros e outros especuladores. Entre 8 e 12 de agosto de 2011, ou seja em 5 dias, comprou 22 000 milhões de euros de títulos gregos, irlandeses, portugueses, espanhóis e italianos. Na semana seguinte voltou a comprar 14 000 milhões de euros. Não se conhece a parte exacta dos títulos gregos mas é evidente que o BCE comprou massivamente. O certo é que estas compras de títulos pelo BCE permitem aos especuladores continuar a especular e embolsar lucros consideráveis.
De facto, os bancos podem comprar títulos no mercado secundário ou mais discretamente no mercado paralelo que escapam completamente ao controlo, a preço de saldos (a 42,5% do seu valor nos dias seguintes a 8 de agosto e menos ainda umas semanas depois) e revendê-los ao BCE a 80%. O volume deste tipo de operações que os bancos podem efectuar é talvez marginal, é difícil ter uma ideia exacta. Seja como for, é muito rentável e não imagino que o BCE ou as autoridades dos mercados sejam capazes, ainda que o queiram, de o impedir.
É preciso salientar que as operações no mercado secundário são pouco reguladas. Mas acima de tudo, em margem do mercado secundário existe o mercado paralelo (em inglês, OTC – Over The Counter, mercado de balcão) que escapa ao controlo dos poderes públicos. Muito regularmente as vendas e compras de títulos da dívida realizam-se via o que se costuma chamar «vendas a descoberto», ou seja, um comprador, por exemplo um banco, pode adquirir títulos por dezenas de milhões de euros sem pagar os títulos em questão no momento da recepção.
Concretamente, o comprador promete pagar, adquire os títulos, revende-os em seguida e é com o produto dessa venda que irá pagar a conta; isto prova que o banco não compra para usufruir o bem, mas sim para o revender logo de seguida com o máximo proveito (chama-se isto de especulação).
Obviamente, se não conseguir revender os títulos a bom preço, ou se pura e simplesmente não os conseguir revender, terá dificuldades em pagar a conta. Isto pode provocar um crash, já que se trata de montantes astronómicos; estamos a falar de centenas de especuladores e cada qual intervém com montantes muito consideráveis. As transacções de títulos da dívida pública dos Estados em dificuldade totalizam dezenas, ou mesmo centenas, de milhares de milhão de euros no mercado liberalizado.
CADTM: Porque é que o BCE não compra directamente aos Estados que emitem os títulos em vez de passar pelos mercados secundários[3]?
Eric Toussaint: Porque os governos que o criaram querem reservar o monopólio do crédito para o sector privado, à margem dos poderes públicos. Os estatutos do BCE, assim como o Tratado de Lisboa, proíbem-no, à semelhança dos bancos centrais da União Europeia, de emprestar directamente aos Estados.
O BCE empresta aos bancos privados, que por sua vez, juntamente com outros especuladores, emprestam aos Estados.
Como já disse, os bancos franceses, alemães e de outros países revenderam massivamente títulos gregos em 2010 e no primeiro trimestre de 2011. O BCE foi o principal comprador e compra acima do preço de mercado secundário.
Como vêem, isto permite toda a sorte de manipulações por parte dos banqueiros e de outros especuladores, porque os títulos são ao portador e os mercados são liberalizados.
É óbvio que os bancos privados pressionam o BCE para que este compre títulos a preço mais elevado, dizendo que necessitam de se desfazer deles para sanear os seus balanços e evitar uma nova crise bancária de grande amplitude.
Os meses de julho e agosto foram propícios a estas chantagens e pressões, porque as bolsas registaram uma queda de 15% a 25%, consoante os casos, entre 8 de julho e 18 de agosto de 2011. Os preços das acções dos bancos credores da Grécia, em especial dos bancos franceses, caíram a pique.
O BCE entrou em pânico e cedeu às pressões dos banqueiros e dos especuladores, e desatou a comprar títulos. Esta intervenção do BCE salvou (provisoriamente?) a situação de uma série de grandes bancos, com particular destaque para os franceses. Mais uma vez, os poderes públicos acudiram em socorro do sector privado. Mas a atitude escandalosa do BCE não fica por aqui.
CADTM: Como assim?
Eric Toussaint: É muito simples. O BCE empresta aos bancos privados a taxas muito baixas – 1% de maio de 2009 a abril de 2011; 1,5% actualmente –, pedindo uma garantia aos bancos que recebem esse dinheiro. Ora, os bancos depositam títulos como garantia (designados no jargão financeiro “colaterais”) para os quais recebem, se forem títulos gregos, portugueses, irlandeses… um juro que varia entre 3,75% e 5% se forem títulos a menos de um ano (ver acima), e mais ainda se se tratar de títulos a 3, 5, 10 anos…
CADTM: O que isso tem de escandaloso?
Eric Toussaint: O escândalo é este: os bancos pedem emprestado a 1% ou 1,5% ao BCE, para emprestarem a certos Estados pelo menos a 3,75%. Depois de comprarem os títulos e de receberem a retribuição, dão uma golpada dupla: depositam os títulos como garantia, voltam a pedir emprestado a baixos juros ao BCE e emprestam esse dinheiro a curto prazo aos Estados a taxas de juro muito elevadas.
O BCE permite-lhes obter novamente lucros consideráveis.
Mas isto não fica por aqui. O BCE modificou a partir de 2009-2010 os seus critérios de segurança e aceita que os bancos depositem como garantia títulos de alto risco, o que evidentemente encoraja os bancos a emprestarem sem prudência, uma vez que têm a garantia, quer de revender os seus títulos ao BCE, quer de os depositar como garantia[4].
Obviamente, seria lógico pensar que o BCE deveria agir de outra forma e emprestar directamente aos Estados a 1% ou 1,5%, em vez de oferecer benesses aos banqueiros.
CADTM: Sim, mas será que o BCE tem realmente escolha, se os seus próprios estatutos e o Tratado de Lisboa lho proíbem?
Eric Toussaint: Já existem uma série de disposições do Tratado que não são respeitadas (o rácio dívida/PIB que não pode ultrapassar os 60%, o rácio défice público/PIB que não pode exceder os 3%); por conseguinte, seria preciso proceder em função das circunstâncias.
Além disso, é necessário revogar diversos tratados da UE, modificar radicalmente os estatutos do BCE e refundar a UE sobre outras bases[5]. Mas é claro que para isso seria necessário alterar radicalmente a relação de forças, com mobilizações de rua. (Traduzido por Rui Viana Pereira e revisto por Noémie Josse-Dos Santos.)
Final da terceira parte
[1]Este artigo está incluído numa série de sete artigos. Ver a primeira parte “A Grécia no centro da tormenta” http://www.cadtm.org/A-Grecia-no-ce..., a segunda parte “A feira de saldos dos títulos gregos” http://www.cadtm.org/A-feira-de-saldos-dos-titulos
[2] No Hellenic Republic Public Debt Bulletin, n° 62, junho 2011, p. 4, vê-se muito claramente que o mercado secundário secou completamente a partir de maio de 2010, porque o Banco Central Europeu começou a comprar os títulos.
[3] Em finais de 2009, antes de a crise grega estalar, as instituições financeiras francesas (principalmente os bancos) detinham 26% dos títulos gregos vendidos no estrangeiro; as alemãs detinham 15%; as italianas, 10%; as belgas, 9%; as holandesas, 8%; as luxemburguesas, 8%: as britânicas, 5%. Em suma, as instituições financeiras, com os bancos à frente, de 7 países da UE detinham nada menos que 81% dos títulos gregos vendidos no estrangeiro.
[4] Tentem, ao pedir um empréstimo a um banco, oferecer como prova de solvabilidade títulos de alto risco, e logo verão a resposta.
[5] Ver «Oito propostas urgentes para uma outra Europa» (em particular, a 8ª proposta sobre a questão da UE) http://www.cadtm.org/Oito-propostas-urgentes-para-uma.
https://www.alainet.org/pt/articulo/152952
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