E agora, Forum Social Mundial?

20/10/2011
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
-A +A
Passaram-se quase onze anos do primeiro Forum Social Mundial, de janeiro de 2001 em Porto Alegre. Iniciativa política vista como uma luz de esperança - nova e forte - num horizonte bloqueado, ele levou o diretor do jornal Le Monde Diplomatique, Ignace Ramonet, a dizer, em editorial desse mesmo mês: “O novo século começa em Porto Alegre”.
 
De lá para cá o FSM entrou na agenda - a cada ano, depois a cada dois anos – de muitas das organizações que lutam, pelo mundo afora, por uma sociedade igualitária, justa e pacífica. Dele nasceram muitos Foruns Sociais continentais, regionais, nacionais ou locais. As articulações que ele incrementou o transformaram em um processo continuo. Mas algumas organizações já participam menos dos Foruns Mundiais, outras até se afastaram. Por isso mesmo há sempre, de cinco anos para cá, durante esses Foruns, um ou dois seminários sobre seu futuro.
 
Cabe assim a questão proposta como título deste artigo: e agora, Forum Social Mundial? Para mim sua continuidade é fundamental, adaptando-se a conjunturas novas, num “caminho que se faz ao caminhar”, sem que se desvirtue ou se burocratize. Se isto for possivel, sua “caminhada” na verdade mal começou...
 
O quadro histórico do surgimento do FSM
 
Para justificar esta posição é imprescindível relembrar o momento em que o Forum Social Mundial surgiu. O mundo vivera em 1989 um acontecimento que alterou substancialmente os rumos da história[1]: a derrubada do “Muro de Berlim”, símbolo do golpe mortal dado pelo sistema capitalista no “socialismo real” da União Soviética. Livre das barreiras à sua expansão criadas até então pela força política – e militar - antagônica derrotada, esse sistema começou a impor em todo o planeta sua lógica, a do “mercado”, como mecanismo único para o funcionamento da economia. Era o que afirmava Thachter, a primeira Ministra britânica dos anos 80, com a palavra TINA - abreviatura da expressão em inglês “não há alternativa”. Com o nome de neoliberalismo, o capitalismo passou a comandar, com a força de um tsunami, uma nova etapa da integração dos povos da Terra, que se convencionou chamar de “globalização”.
 
Mas a lógica do mercado, movida pela busca irrefreável de dinheiro e de lucro, pelo consumismo insaciável do “ter” sempre mais e pela competição, começou  a criar novos problemas, como o da cada vez maior concentração da riqueza, em paises pobres como ricos. Depois de algum tempo surgiram os protestos dos que haviam superado a perplexidade causada pela queda do “Muro” e ainda sonhavam com a igualdade e a justiça. Eles começaram então a resistir aos principais instrumentos do sistema - a OMC[2], o FMI[3] e o Banco Mundial, e a contestar a cúpula de líderes dos paises poderosos que pretendiam governar o mundo – o G7, transformado em G8 quando incorporou o próprio ex-antagonista do sistema, a Russia. Mas se suas mobilizações se multiplicavam e cresciam, a repressão, para calar os descontentes, tambem aumentava.
 
Foi quando surgiu a proposta de um Forum Social Mundial, como um grande evento mundial que mostrasse que existiam, sim, alternativas à lógica capitalista do mercado. Nele os movimentos sociais apresentariam e discutiriam as alternativas que já estavam sendo vividas numa “globalização da solidariedade”, em substitução à do capital. Superariam assim o simples protesto e entrariam numa fase propositiva. Ou seja, poderiam afirmar que “outro mundo é possivel” - frase com que se lançou a mobilização rumo a Porto Alegre.
 
Essa proposta se conjugou naturalmente com uma operação de comunicação, frente a meios de comunicação inteiramente dominados pelo capitalismo em ascensão: decidiu-se que o Forum “Social” se realizaria exatamente nas mesmas datas do Forum “Economico” Mundial de Davos, na Suiça  – onde se encontravam periodicamente os novos donos do mundo.  Era uma forma de romper a centralidade de Davos no noticiário mundial, e chamar a atenção para uma alternativa ao modelo econômico dominante.
 
As organizações que, pelo mundo afora, construiam as alternativas foram então convidadas a esse novo Forum. A proposta revelou-se muito oportuna: para surpresa geral, reuniram-se no primeiro FSM mais de 20.000 pessoas, vindas de muitos paises, em vez das 2.500 previstas. Foi de fato um vento novo que reavivou o ambiente político. Tornou-se evidente que era preciso mais encontros daquele tipo. Os Foruns dos anos seguintes comprovaram o interesse que despertavam: chegou-se progressivamente a 150.000 participantes em 2005, que se somavam a quem se reunia a outros niveis. E o nascente movimento “anti-globalização” logo passou a ser chamado “altermundialismo”, por influência da frase mobilizadora do FSM.
 
Permanecem à frente do FSM, no entanto, alguns desafios que se colocavam desde seus inicios. Enumero tres, relacionados aos tres papéis que o tornam, em minha opinião, um insubstituivel instrumento  na luta pela superação dos problemas criados pela dominação do dinheiro: o da difusão de sua mensagem de esperança em todo o mundo; o da afirmação da sociedade civil como ator político autônomo; o da construção efetiva de uma nova cultura política.
 
Expansão e comunicação
 
O crescimento da luta contra o capitalismo ainda não diminuiu o seu ímpeto. A força com que sua lógica se apoderou da China – gigante demográfico hoje imerso em um duro capitalismo de estado - mostra a profundidade com que apunhalou a alternativa socialista. E é mínima a resistência social à penetração, em todo o planeta, do consumismo exacerbado – condição de geração de lucros pela máquina industrial produtivista, cujo crescimento avassalador cria uma ameaça cada vez maior à continuidade da vida na Terra, pelas suas consequências ambientais. As organizações e governos que defendem o capitalismo chegam a incorporar, em suas discussões e decisões, temas levantados nos Foruns Sociais. Mas o fazem para diminuir suas fragilidades e enfrentar melhor seus opositores.
 
A mensagem de esperança de que “outro mundo é possivel” chegou no entanto, ainda, em muito poucos lugares do mundo. Há regiões em que é literalmente desconhecida, como nos paises que viveram o “socialismo real”, onde ela seria particularmente útil. Em todos os continentes a grande maioria das pessoas tem uma versão insuficiente ou distorcida da natureza e dos objetivos do FSM.
 
Muitos meios alternativos – e o próprio uso da novidade das redes sociais - tentam romper as muralhas da comunicação. Mas quase nem conseguimos fazer saber que os Foruns estão se realizando. Poucos dos milhões de espectadores passivos ligados às TVs do futebol, manipulados pela competição capitalista, souberam que 70.000 pessoas de todo o mundo se encontraram no Senegal no inicio deste ano, para trocar experiências e articular ações rumo ao mundo novo. Desta vez este quadro foi talvez pior porque o FSM se realizou, pela primeira vez, em data diferente de Davos. Não foi no entanto muito diferente de anos anteriores. Muito modestamente começamos a utilizar a Internet, durante os Foruns, para ligar seus participantes a quem não pode se deslocar. Mas somos sempre, e ainda, uma voz diminuta, quase imperceptivel na massa das informações que invadem o mundo. Com a publicidade e os grandes meios de comunicação - e a propria Internet - bombardeando ininterruptamente as mentes e os corações com os acontecimentos e valores do mundo velho, as grandes maiorias nem imaginam que um mundo novo é possivel. Menos ainda o consideram, como nós, necessário e urgente.
 
Outro tipo de “expansão” do processo FSM é sempre necessário, para incorporar as novas temáticas que surgem. Mas esta expansão se faz quase naturalmente, graças ao formato do FSM. Suas atividades livremente auto-organizadas pelos seus participantes – o que constituiu um de seus atrativos - abre os horizontes. Foi assim com a luta pela paz em 2003 – levando à grande manifestação contra a guerra no Iraque; com a busca de nossas saidas para a crise econômica assim como para os problemas ambientais, e a proposta do “viver bem” frente à crise de civilização – no Forum de 2009 na Amazônia; ou mais recentemente, com o processo de “apoderamento” da terra, no Forum de 2011 no Senegal, em que as “revoluções pela democracia” nos paises árabes tiveram tambem grande impacto.
 
A sociedade civil como ator político
 
O segundo desafio a enfrentar é o da mudança radical quanto à maneira de ver a atuação politica da sociedade civil. As decisões quanto à natureza e o formato do FSM foram diretamente influenciadas por acontecimentos que o precederam: o movimento Zapatista, surgido em 1994 no México, e a mobilização anti-OMC de Seattle em 1999. O primeiro  criticou os modelos tradicionais de ação política, levando a que o FSM acentuasse sua autonomia em relação a partidos e governos e a formas tradicionais de atuação. O segundo tornou evidente a força política que a sociedade civil pode ter, com o que o FSM foi definido como um Forum da sociedade civil, que não dispunha até então de oportunidades de encontro a nivel mundial.  Ambos tambem levaram a que se valorizasse no FSM a organização horizontal em rede, em que se conta com a convicção das pessoas e não com disciplinas impostas.
 
Ora, essas orientações estão entre as inovações que despertaram muito interesse pelo Forum em seus inicios. Mas são elas que atualmente afastam muitas organizações, que prefeririam que ele se transformasse em um movimento social solidamente dirigido, ou atrelado a partidos e governos.
 
Muitos mantem ainda a ilusão de que é somente tomando o poder político que se  pode construir uma nova sociedade. As frustrações provocadas por governos eleitos com esse objetivo mas submetidos, para sobreviver, à lógica do “desenvolvimento” capitalista, ou neutralizados por oligarquias corruptas, ainda não os convenceram de que isso não basta.
 
Para outros a sociedade civil – caracteristicamente diversificada e heterogênea em sua composição e fragmentada em sua atuação – só terá força politica se estiver estruturada como uma pirâmide de poder hierarquizado, como o são os governos, os partidos, os exércitos, os movimentos, as igrejas. Assim, se o FSM não se mostra capaz de cumprir a missão – na verdade impossivel – de fazer a sociedade civil atuar como um corpo único – unitariamente, com se diz - em torno de alguns objetivos, ele é perda de tempo, de energia, de recursos.
 
Na verdade esse modo de ver reduz a sociedade civil a massa de manobra para apoiar governos, como nos regimes facistas, ou para derrubá-los, e ignora a imensidão do desafio da construção do “outro mundo possivel”. Para que ele seja efetivamente possivel é necessária uma enorme variedade de mudanças de todos os tipos e em todos os niveis, nas estruturas de governo, nas leis, nas mentes, nos comportamentos. É uma tarefa colossal que não pode ser realizada por decreto de cima para baixo, de um dia para outro, como se ao se assumir o poder político o poder econômico fosse domesticado e emergisse uma nova cultura, tudo automaticamente. Trata-se de um longo processo que exige os mais variados tipos e niveis de resistência, de iniciativa criadora e de atuação transformadora.
 
Ora, é dentro dessa perspectiva que surge a sociedade civil, como único ator político que pode realmente provocar uma mudança efetiva da realidade, exatamente por sua diversidade e heterogeniedade e até mesmo fragmentação. Agindo abaixo, acima, dentro e fora dos governos, só a ação de cidadãos organizados pode atingir todos os meandros em todas as rupturas que são necessárias. O que parece portanto sua fraqueza constitui de fato sua força. Vale a pena relembrar uma das propostas surgidas no processo Forum, através da publicação Turbulences: nenhum David terá uma funda tão certeira para desequilibrar o gigante de um só golpe. O que é preciso é multiplicar ao infinito enxames de abelhas que ataquem continuamente o monstro, por todos os lados.
 
A construção de uma nova cultura política
 
O terceiro desafio a enfrentar na continuidade do processo FSM é talvez o mais dificil: construir uma nova cultura política – realmente democrática, igualitária, respeitadora da diversidade – num mundo que praticamente só viveu sistemas hieraquizados e autoritários de governança e cuja historia nos é transmitida como a das vitorias e derrotas de seus lideres.
 
A mudança a realizar neste aspecto é muito profunda. Atinge todos os métodos de ação política. Em toda a parte o que vemos – até entre organizaçoes que participam dos Foruns, quando agem na sociedade – são disputas entre quem deveria se aliar, ou lutas por poder ou hegemonia. Nesta competição chega-se até a adotar o principio perverso de que os fins justificam os meios. É preciso rever inteiramente o modo como funcionam os partidos, um dos principais instrumentos da ação politica. É preciso questionar ensinamentos difundidos ao longo de todo o ultimo século entre os que lutavam contra o capitalismo.
 
Mas se esse é um tão grande desafio, a necessidade dessa mudança é talvez a intuição mais profunda do processo FSM. Sem dúvida é a mais ousada, ao afirmar que uma nova cultura politica é condição sine qua non para que nossa ação leve efetivamente à superação da lógica do capitalismo. Uma das mais fortes inspirações dessa intuição foi a fórmula inventada pelos Zapatistas: “comandar obedecendo”. Mas ela tem raizes tambem na contribuição de muitos pensadores e movimentos sociais anti-autoritarismo das últimas decadas.
 
Ela implica de um lado a aceitação do papel a ser dado à sociedade civil, a que me referi acima. De outro ela leva à adoção de regras organizativas inteiramente novas no mundo político. Os Foruns são, nesse sentido, um laboratorio de experimentação e aprendizado dessas regras – especialmente para os que os organizam.
 
Segundo tais regras o FSM não tem dirigentes nem porta-vozes, assim como não estrutura seus eventos segundo setores da atividade social ou com as tradicionais pirâmides de representatividade – do local ao mundial. Ele pretende ser somente um espaço aberto – ou uma “praça pública”, como costumo dizer - de encontro horizontal de todos que a ele venham, dando-se a todos a mesma importância, para que aprendam uns com os outros, identifiquem convergências, construam ações conjuntas, na confiança mutua. Alem  disso – e isto foi realmente uma grande novidade em relação a Foruns, Assembleias, Congressos e encontros em geral – ele não tem uma “Declaração Final” que pretenda traduzir um compromisso único de todos os seus participantes. Nem abre espaço para “moções”, como as que são aprovadas na desatenção e cansaço dos momentos finais das assembleias...   
 
De inicio não se tinha muita consciência de todas as potencialidades transformadoras dessas decisões – nem das resistências que provocariam, como a dos que viam o FSM como um novo movimento, ou o “movimento dos movimentos”, ou simplesmente o assimilavam ao altermundialismo. E que prefiririam que ele atuasse como Forum, em vez de esperar que as organizações participantes assumissem elas mesmas seus compromissos, na sua multiplicidade de lutas.
 
Mas, a partir da elaboração de uma Carta de Principios, redigida depois do primeiro Forum e a partir das suas lições, para assegurar que os próximos tivessem o mesmo sucesso, essas decisões foram se consolidando e se desdobrando, em torno do principio básico do respeito à diversidade. Um desses desdobramentos, a que já me referi, foi a decisão de programá-los com atividades auto-gestionadas pelos seus participantes, seguindo os mesmos Principios da Carta. Outra o fato dos organizadores dos Forums passarem a se autodenominar “facilitadores”, para evitar a criação de papeis de “direção”.
 
A dinâmica da sucessão de Foruns permitiu o surgimento de cada vez mais novas redes, associando autonomamente organizações com objetivos comuns que podem se unir respeitada sua diversidade – um tipo de união que não homogeneiza e não castra a capacidade de iniciativa. Libertas da obrigação de “convergir” em torno de um único programa de ação, ao fim de cada Forum, elas descobrem multiplas “convergências” e interesses comuns. E essas novas redes passam a ter uma vida própria que se consolida no chamado “processo” do FSM, caminho para construir uma sociedade civil articulada a nivel planetário.
 
A realidade das novas “redes” – autônomas entre si – ficou evidente com o que aconteceu no Forum Social Mundial de 2011, em Dakar. Os problemas enfrentados por seus organizadores o transformaram num autêntico caos, no primeiro dia da programação de atividades auto-gestionadas. As redes presentes assumiram no entanto a iniciativa e, de baixo para cima, tornaram possivel a realização do Forum, inclusive com mais de trinta assembléas finais de articulação para a ação. Quem foi a esse Forum sem estar integrado a nenhuma rede saiu perdendo. Mas no cômputo geral o sentimento final foi de que, apesar desse desgaste, era absolutamente necessário continuar o processo, com um novo FSM em 2013.  
 
Ora, os problemas enfrentados pelos seus organizadores decorreram exatamente do desrespeito a uma das regras básicas do formato do FSM: seu coletivo deveria ter tido uma composição aberta e diversificada, não poderia ser “comandado” por algumas poucas pessoas, suas decisões deveriam obedecer à regra do consenso – uma das experimentações mais ricas de todo o processo, que nos faz aprender a ouvir – e deveria funcionar como facilitador e não como dirigente.
 
O mesmo tipo de dificuldade – pelas mesmas razões - está sendo vivido por Foruns como o Europeu, que se iniciou em 2002 com grande força, já realizou seis edições mas hoje está quase tendendo à extinção. Ou é o que ocorre com Foruns nacionais ou locais “sequestrados” por forças políticas que buscam colocá-lo ao seu serviço. Ou seja, o processo FSM, como um autêntico bem comum da humanidade, definha quando privatizado.
 
À guisa de conclusão
 
A pesar do peso de todos esses desafios, o barco do FSM vem conhecendo uma dinâmica positiva em regiões estratégicas como a América do Norte e a dos paises árabes e continua a navegar – ela nave va. Uma nova e perigosa tendência aparece no entanto agora, paradoxalmente como resultado de proprio sucesso do processo Forum: redes nele nascidas, ao ganharem voo próprio, já não “precisam” de seus eventos para aprofundar e expandir suas articulações e lutas. E tendem a abandonar o barco, em meio à violência das ondas ainda provocadas pelo tsunami capitalista.
 
Tais perspectivas podem desanimar quem tem consciência do ainda longo caminho a percorrer, na aventura do Forum Social Mundial. Mas não podemos nos enganar a nós mesmos. Como eu disse no final do livro que escrevi sobre o FSM, em 2004: se as resistências à nova cultura política e às novas opções que estão sendo construídas com a contribuição do Fórum impedirem sua continuidade, teremos de nos adaptar a essa verdade simples: cada coisa tem seu tempo.
 
18 de julho de 2011
 

[1] Essa alteração de rumos até levou o economista norte-americano Fukuyama a escrever um muito difundido artigo sobre o que ele chamou de “Fim da historia”.  
[2] Organização Mundial do Comércio
[3] Fundo Monetário International
https://www.alainet.org/pt/articulo/153454?language=en
Subscrever America Latina en Movimiento - RSS