Comentários à Minuta Zero do documento base de negociação da Rio+20
Sustentando a insustentabilidade
31/01/2012
- Opinión
Considerações iniciais
Há de se destacar as enormes dificuldades para se construir um documento capaz de abarcar toda a complexidade que a questão ambiental requer, em parte devidas aos contraditórios interesses nela implicados. Justamente por isso devemos estar atentos criticamente ao senso comum que vem tomando conta desse debate onde a vagueza conceitual e a falta de rigor filosófico e/ou científico impera e, assim, contribui para sua perpetuação. O documento sob análise não foge a essa regra. Nesta contribuição da AGB analisamos os principais fundamentos subjacentes às noções que pretendem dar sustentação à “Minuta Zero do documento base de negociação da Rio+20, enviado pela Coordenação Nacional da Rio+20”. Antes de qualquer outra coisa felicitemos a iniciativa da Coordenação nacional da Rio+20 de tornar público esse documento permitindo sua ampla discussão. Esperamos sejam devidamente consideradas nas etapas posteriores todas as contribuições recolhidas, assim como sua mais ampla divulgação.
Introdução: Sobre natureza do documento
O documento em apreço está dividido em 5 partes através de 128 itens. Uma delas, a primeira, é o Preâmbulo/Definição (Itens 1 a 5), e 3 partes são dedicadas aos diferentes níveis políticos (II- Renovando compromissos políticos (Itens 6 a 24); IV- Quadro Institucional para o Desenvolvimento Sustentável (Itens 44 a 62) e V- Quadro de Ação e Acompanhamento (Itens 63 a 128)) o que é coerente com o caráter político-diplomático do documento. Nesse sentido chama a atenção o fato de uma única parte não ser explicitamente política, a parte III- Economia Verde no contexto do Desenvolvimento Sustentável e erradicação da pobreza (Itens 25 a 43). E mais atenção chama ainda o fato dessa única parte não explicitamente política vir acompanhada de um argumento de caráter moral de “erradicação da pobreza” que vem fazendo parte do novo léxico político e de uma nova governança global, conforme veremos mais adiante.
Sobre a economia - O documento está assentado no pressuposto de que a economia é algo auto-evidente e que não comporta múltiplas leituras, o que pode nos conduzir a caminhos muito diferentes dos explicitamente pretendidos. Só para indicar a primazia da dimensão econômica no documento, as referências explícitas a essa dimensão aparecem 55 vezes nas 19 páginas, contra apenas 7 referências ao ambiental e seus derivados e somente em 3 vezes aparece a explicitação da dimensão cultural, sendo que essas são exclusivas ao item 16, ou seja, em somente um item entre os 128 itens que compõem o documento aparece a referência à cultura. É, com certeza, uma desproporção inaceitável para um documento que trata da questão ambiental se não por outras razões, pelo fato da diversidade de paisagens, da diversidade biológica, da diversidade de conhecimentos forjados por múltiplos povos, etnias e nações com relação próxima à natureza ser um componente essencial do debate ambiental. Registre-se que, estranhamente, o documento somente uma vez se refere à natureza, e que esse único registro se dê no mesmo e único item em que há referências explícitas à dimensão cultural (Item 16). Se, de um lado, isso revela um aspecto fundamental de toda cultura, qual seja, a definição própria que cada uma delas faz do que seja natureza, sendo que algumas delas sequer têm uma palavra própria para o que na tradição ocidental seja natureza[1], demonstra também o caráter meramente retórico do item 16 no contexto geral do documento.
A primazia dada à economia não é natural e não tem a universalidade presumida pelo documento. Esse argumento ganha ainda mais consistência quando sabemos que por trás da idéia de economia, inclusive com seu adjetivo verde, está não diversas formas de economia, mas, sobretudo uma delas, a economia mercantil. Aqui onde parece residir a solução pode estar o problema, haja vista que é uma cultura determinada, a que emana do século XVIII na Europa Ocidental, sobretudo com a revolução (nas relações sociais e de poder) industrial em que essa economia mercantil começa a se generalizar enquanto economia capitalista. E essa cultura, enquanto um conjunto de valores e significações que comandam as práticas sociais, forja a economia (mercantil) como dimensão central da vida. Isso implica uma tensão entre a dimensão simbólica e a vida material de enormes conseqüências para a história da humanidade e do planeta. Essa tensão se dá em função da riqueza ser referida à dimensão quantitativa através do símbolo dos símbolos dessa sociedade que é o dinheiro. Somente nesse contexto cultural a idéia de crescimento ganha sentido (e suas noções correlatas como crescimento do PIB, entre outras), o que estabelece tensões com as dinâmicas socioambientais e, até mesmo, ecológicas seja pelos ritmos geobiofísicos diferenciados de reprodução dos ecossistemas que não são uniformes e ilimitados, mas condicionados pelos fluxos de matéria e de energia desigualmente distribuídos na geografia do planeta, e também culturais, haja vista os diferentes sentidos atribuídos à vida pelos diferentes povos, etnias e nações. Não olvidemos que a sociedade que emerge com essa cultura na Europa Ocidental no século XVIII, ao mesmo tempo em que revoluciona as relações sociais e de poder transforma também radicalmente as relações com a natureza haja vista a revolução energética que lhe é co-instituinte com a incorporação dos fósseis (inicialmente o carvão e, depois, o petróleo e o gás). Se energia, como nos ensinam, os físicos é a capacidade de realizar trabalho e trabalho, ainda segundo os físicos, é a capacidade de transformar a matéria, podemos dizer que as sociedades que até então dependiam do sol de cada dia para manejar a produção de fotossíntese e, assim produzir riqueza (alimentos incluídos), passam a utilizar o sol mineralizado há milhões de anos sob a forma de carvão, petróleo e gás e, assim, devolvem à atmosfera os gases que na história natural do planeta dela haviam sido retirados (o que viria contribuir para alterar o efeito estufa). Com a capacidade de manejar a energia concentrada da molécula de carbono e a aplicação do princípio da máquina a vapor aos novos meios de transporte com as ferrovias a navegação marítima fazendo com que os navios se independessem dos ventos, a transformação da matéria pode se fazer em qualquer lugar do mundo e o produto ser transportado a qualquer lugar do mundo, o que ensejou uma nova fase do sistema mundo que desde o século XVI está estruturado com base na colonialidade. Ou seja, embora tenhamos tido pouco a pouco o fim do colonialismo não tivemos o fim da colonialidade (Aníbal Quijano), haja vista uma nova fase do sistema mundo moderno-colonial ter se iniciado com a ampliação da exploração mineral e ampliação das áreas agrícolas destinadas ao comércio global, sobretudo nas áreas periféricas da América Latina, da África e da Ásia. Estabelece-se, desde então, uma nova geografia desigual dos proveitos e dos rejeitos, haja vista essas regiões passarem a destinar os melhores solos e as melhores minas não para satisfazer a necessidade de seus povos, mas para exportar para os países desenvolvidos. Enfim, uma cultura que dá primazia à economia e, sobretudo à economia mercantil, que expressa a riqueza em termos simbólicos quantitativos (dinheiro) passa a não ver limites aos seus objetivos quando consegue dominar uma forma de energia que parecia não ter limites e oferecer as condições materiais para a dominação da natureza. Não sem sentido, nesse “magma de significações imaginário” (Cornelius Castoriadis), a idéia de progresso e, mais tarde, a de desenvolvimento, se confundem com a idéia de “dominação da natureza”. Saltar da natureza para a cultura passava a ser sinônimo de desenvolvido e de progresso, sempre no interior desse magma de significações imaginário, e daí a primazia do urbano em relação ao rural, ou seja, a valorização de um ambiente fruto do talante humano, ao contrário do mundo rural onde a natureza ainda imporia suas condições às práticas culturais, sociais e econômicas.
Com isso o antropocentrismo se afirma haja vista a idéia de dominação da natureza só ter sentido se pensamos a espécie humana fora dela. Afinal, se o homem enquanto espécie é parte da natureza quem vai dominar o dominador? Com isso se consagra a separação homem e natureza que vai ser institucionalizada nas universidades de todo o mundo enquanto ciências humanas separadas das ciências naturais, como se fora natural. A dominação da natureza é parte desse projeto civilizatório que se funda numa pretensa universalidade da primazia do econômico sobre o social, sobre o cultural. E como tudo que é dominado, seja um povo, uma etnia, um grupo ou classe social e a própria natureza, conceitualmente significa que são negados nas suas virtualidades e potencialidades, haja vista só importar aquilo que é determinado pelo dominador. Não olvidemos que essa idéia de dominação da natureza é transportada para o plano das relações sociais e de poder, como pode ser visto no fato de se chamar de selvagem (da selva, portanto da natureza) aquele povo que deve ser civilizado; as justificativas racistas como se fora natural a superioridade de uma sobre a outra; as justificativas machistas que se pretendiam naturais diante do que chamou de “sexo frágil” locus da emoção e do instinto que, por isso, deveria estar sob o domínio da razão falocrática. Enfim, a separação de homem e natureza, base de todo o constructo epistêmico da ciência ocidental, é parte necessária do debate ambiental contemporâneo. A ciência e a técnica ocidentais que se querem universais são, na verdade, uma contribuição, sem dúvida relevante, do mundo ocidental ao conhecimento da humanidade, mas não pode se pretender a única forma de conhecimento válida, até porque ela está implicada nos problemas ambientais contemporâneos, como no caso do efeito estufa (revolução energética fossilista) e outros que arrolaremos mais adiante.
Tudo isso vem sendo incorporado acriticamente no que podemos chamar de senso comum científico. Quase sempre, esses argumentos e a análise aqui apresentada são desqualificadas como sendo questões de ordem filosófica e metafísica, como se não estivessem subjacentes às práticas científicas e, pela supervalorização dessa forma de conhecimento específico, com enormes implicações políticas na medida em que o “regime de verdade” (Michel Foucault) na segunda moderno-colonialidade[2] não se funda mais na religião, como na Idade Média européia, mas na ciência e na tecnologia. Diz-se, até, que a ciência e tecnologia fazem milagres, o que nos dá indícios do lugar religioso que elas passam a ocupar na nova sociedade.
Toda essa argumentação nos conduz a propor a prudência de substituir a presumida e auto-evidente idéia de “economia verde” por “desenvolvimento de práticas sustentáveis”, caso contrário, estaríamos consagrando uma noção cheia de ambigüidades, sem nenhuma consistência científica ou filosófica, que só serviria para legitimar a abertura de mercados que, sob a lógica mercantil e num sistema de valores que se mede em termos quantitativos e, portanto, sem limites, tende a alimentar a tensão com a diversidade ecológica e cultural do planeta e da humanidade. Assim, consagrar esse termo é não só imprudente como um equívoco científico e filosófico.
Sobre a erradicação da pobreza. A fome e a pobreza se tornaram temas de um novo léxico político, sobretudo desde a passagem de Robert Mcnamara pelo Banco Mundial[3]. O que nos chama a atenção nesse documento é a associação entre a erradicação da pobreza e a tal da “economia verde” e o “desenvolvimento sustentável”. Registre-se, aliás, que esse tema, como indicamos, é parte desse novo léxico político e, nesse sentido, não é específico desse documento. Todavia, é de se indagar a ênfase que essa idéia adquire ao que, ainda, se associa uma não devidamente argumentada “ajuda” privilegiada “aos países em desenvolvimento” para que alcancem o “desenvolvimento sustentável”. São 23 referências explícitas à idéia de “ajuda aos países em desenvolvimento” e 13 à idéia de “erradicação da pobreza”. Na medida em que se trata de uma mesma idéia desdobrada chama a atenção o fato de haver 36 referências ao longo das 19 páginas do documento. Com isso, uma idéia a princípio moralmente legítima acaba por deslocar o caráter do debate ambiental ao deixar implícita que são os pobres e os “países em desenvolvimento” os responsáveis pela crise ambiental contemporânea, como se o modelo de desenvolvimento impulsionado pelos países chamados de desenvolvidos não precisassem de ajuda para mudarem suas práticas que são mais impactantes e insustentáveis do que as dos países que aparecem no documento como sendo os únicos que precisam de ajuda. Basta observar a “pegada ecológica” de cada grupo de países e pelo consumo médio de recursos dos seus habitantes respectivos, como assinala o economista Ricardo Abramovay
“uma vez que o consumo de recursos dos norte-americanos é, em média, de 88 quilos diários por habitante e o dos africanos ao Sul do Sahara de apenas dez quilos diários (Friends of Earth et al, 2009), a generalização dos padrões de consumo que marcam os modos de vida dos mais ricos conduziria certamente a um grau de pressão sobre os ecossistemas incompatível com a manutenção dos serviços básicos que eles prestam à espécie humana”.
Embora possamos admitir o conceito de pobreza absoluta que, na verdade, seria a miséria (do que a fome é sua maior expressão), o conceito de pobreza é mais complexo e só pode ser analisado junto com o de riqueza, seu par necessário. Sendo assim, é não só o caráter simbólico da riqueza reduzido à sua dimensão quantitativa, conforme assinalamos no item anterior, mas também a idéia de realização pelo consumo de bens materiais instigados por um poderoso mecanismo de conformação das subjetividades através do marketing e da publicidade e pelo controle quase absoluto dos meios de comunicação de massa de caráter comercial. Daí resulta que mesmo o extraordinário avanço tecnológico que permite que hoje se produza com cada dólar ou euro com 30% menos de materiais que há 30 anos, nesse mesmo período, verificamos um aumento de 50% na demanda desses materiais. Como conclui Ricardo Abramovay, embora seja “claro que o progresso técnico e o avanço no sentido de produzir com cada vez menos materiais e energia [sejam] decisivos [...] é perigosamente ilusório imaginar que a redução da desigualdade pode ser compatível com a generalização dos padrões de consumo que hoje marca a vida destes 7% da população mundial responsáveis por metade das emissões de gases de efeito estufa” (Abramovay, 2010). Em suma, é o estilo de desenvolvimento que vem sendo estimulado desde os países que se colocam como modelo que carece de ajuda para que se alcance o almejado desenvolvimento sustentável. Ou, pelo menos, não se invoque a necessária política em direção a maior justiça social como condição para esta meta sem que se debata o sentido de riqueza que tem dominado. Assim, mais que erradicar a pobreza é de outro sentido de riqueza e da partilha da riqueza existente que se deve debater. Afinal, o desperdício tem convivido lado a lado com a carência e são dois lados de uma mesma relação. Nesse sentido propomos substituir no documento tudo que diga respeito à “erradicação da pobreza” por partilha da riqueza existente e abrir o debate sobre o sentido do modo de produção de riqueza que caracteriza esse desenvolvimento não sustentável fundado nos princípios acima analisados.
Sobre o destaque ao “setor privado” e às grandes empresas
Coerentemente com sua ênfase na economia o documento privilegia e destaca a importância do setor privado. Todavia, alertamos que é preciso ir além de um discurso jornalístico que, por sua própria natureza, tende a ser ligeiro dado ao modo como é produzido (para não nos referirmos aos possíveis interesses que por meio desses veículos se promovem), é preciso destacar também que a empresa privada, embora esteja sujeita às leis maiores dos estados a que está adstrita, tem conseguido manter o princípio do direito do proprietário, como o sigilo comercial, por exemplo, que impede a sociedade de ter acesso a priori às fórmulas químicas de seus produtos. Além disso, o conceito de externalidade deu ensejo a que as empresas destinassem seus dejetos sólidos, líquidos ou gasosos no ambiente externo, como se houvesse um lado externo ao planeta ao que a empresa e seu ambiente estão necessariamente implicados. Além disso, a empresa ainda mantém algo muito próximo de um poder absoluto medieval, como no caso das demissões de trabalhadores que, via de regra, não são consultados quando se decide fazer a reengenharia da empresa, sempre em busca do aumento da produtividade, da competitividade e, sobretudo do lucro, objetivo maior na sociedade fundada na produção mercantil de caráter capitalista. Não é pelo fato de a Guerra Fria ter terminado com o fim da URSS que se deve perder o caráter crítico necessário à busca de uma sociedade mais democrática, mais justa e ecologicamente responsável. A empresa privada, o chamado setor privado, precisa ser objeto de uma avaliação mais criteriosa a fim de abrir suas portas às práticas democráticas, caso contrário a sociedade continuará a debater os efeitos, como o efeito estufa, e não as causas dos dilemas ambientais contemporâneos. Assim, o setor privado não pode ser visto como isento de responsabilidades tanto com relação aos problemas de poluição, de depredação dos recursos naturais, da contaminação de rios, lagos e mares, da poluição das águas, da perda de diversidade biológica, do esgotamento dos recursos não-renováveis, onde além de outras razões cumpre um papel importante o caráter individual e privado da atividade, quase sempre não solidário com a localidade onde está inscrita. Muitas vezes a localidade não passa de um local para uma atividade que está ligada a redes globais de comércio sem que participe do lugar como tal.
Além disso, o setor privado e sua lógica levada ao setor público tem sido responsável pelo enorme aumento do desemprego, sobretudo dos jovens nos países chamados desenvolvidos, e pela flexibibilização dos direitos sociais e coletivos (seguro desemprego, seguridade social), como destacou o sociólogo italiano Domenico di Masi, quando afirmou que nos últimos 200 anos tivemos a luta dos pobres contra os ricos para garantir os direitos e, nos últimos 20 anos temos a luta dos ricos contra os pobres para acabar com os direitos. Esse fato tem gerado um contraponto auspicioso com uma série de iniciativas de economia solidária que não mereceu no documento nenhuma referência a esse que tem sido uma terreno de elevada criatividade social e ambiental. O apoio a essas formas de economia com valores fundados na solidariedade e na cooperação não lucrativa é um dos terrenos mais promissores de uma racionalidade ambiental onde a justiça social é contemplada.
Sendo assim, não tem sentido fazer loas ao setor privado, como o faz o item 19 do documento, sem que tenhamos aberto um sincero debate acerca das práticas que tal como uma caixa preta sob ela se escondem. Mais ainda com relação às grandes empresas, referidas nos itens 24 e 36, que têm conseguido fazer valer uma imagem de sua responsabilidade social e ambiental que, diga-se de passagem, estão quase sempre ligados ao setor de marketing e publicidade das empresas, e menos seu papel político de influência na determinação de políticas (que deveriam ser) públicas pondo em risco a democracia, onde a pessoa jurídica vem tendo um maior protagonismo político que os cidadãos e as comunidades. Nesse sentido, chama a atenção o fato do conceito de comunidade só ter sido invocado uma única vez[4] e, assim mesmo, para se referir às comunidades indígenas das montanhas (item 94) não tendo merecido o mesmo destaque que o “setor privado” e as “grandes empresas”.
Sobre o jogo das escalas e a questão das territorialidades
A análise do item anterior nos remete a questões de fundo de interesse do campo ambiental, ou seja, a questão das escalas e das territorialidades. Tornou-se lugar comum falar-se da relação local/global e, até muito recentemente, em menoscabo das escalas intermediárias regional e nacional. Na verdade, chegou-se a falar do fim das regiões e a condenar-se a escala nacional, sobretudo quando inspirava movimentos políticos de caráter nacionalista, sobretudo quando protagonizados desde a América Latina, a Ásia e a África, muito embora esse espírito nacional e mesmo nacionalista seja extremamente forte e alimentado entre os estadunidenses, os franceses e os ingleses para nos restringir a países onde, com freqüência, se fazem as maiores críticas aos nacionalismos quando emanados da periferia do sistema mundo. Enfim, parece que o nacionalismo só é válido quando invocado pelas grandes potências coloniais.
Registre-se que o debate no campo ambiental alimentou muito essa crítica à escala nacional assim como contribuiu para esvaziar o profundo sentido político das escalas local e regional, como se pode notar no slogan “agir localmente e pensar globalmente” tão largamente apregoado nessas lides, onde as comunidades eram convidadas a privilegiarem as ações à escala local, enquanto as grandes corporações não só pensavam como agiam em todas as escalas (global, nacional, regional e local) e, assim, contribuindo para a fragilização das comunidades locais.
Não se pode deixar de afirmar que as escalas não são somente cartográficas ou geográficas, embora o sejam. São também dimensões do jogo político onde os grupos sociais (comunidades, classes sociais, etnias, estados, empresas) se afirmam através delas. A ênfase na noção de globalização nas últimas décadas se deu pela afirmação das grandes corporações globais que se afirmavam por meio dessa escala. Não sem sentido, a afirmação desses protagonistas através dessa escala esvaziou a escala de poder nacional, aquela dos estados territoriais, em nome da flexibilização locacional e do privilégio dada à noção de rede por cima da noção de território. Assim, se o estado territorialmente soberano respondia aos cidadãos enquanto guardião de seus direitos, junto com a afirmação da escala global e dos grandes grupos empresariais que assim se afirmavam passamos a assistir ao esvaziamento dos movimentos sociais de caráter nacional que lutavam por direitos universais para os cidadãos como um todo no interior das suas fronteiras nacionais, como os direitos sociais e trabalhistas, sobretudo.
O conceito de cidadania abriga ambigüidades quando visto desde outras perspectivas, como a dos povos indígenas ou de algumas campesinidades com forte caráter comunitário, como as quilombolas, seringueiros, castanheiros, retireiros do Araguaia, dos caiçaras, dos faxinalenses, haja vista reduzir o cidadão ao indivíduo ignorando as individualidades que se conformam em consonância com o sentido de identidade comunitária como o das comunidades citadas, entre outras. Além disso, essas comunidades resignificaram o conceito de território retirando seu caráter exclusivo de base territorial do estado. Não há território sem territorialidades que se afirmam através de relações sociais e de poder através de processos de territorialização. Há, assim, uma tríade território-territorialidades-territorialização e não se pode compreender um sem o outro. Como dissera o geógrafo Milton Santos, o conceito de território tem espessura e não só extensão. É denso e comporta a relação de apropriação que os grupos sociais fazem da natureza através das relações sociais e de poder, sendo assim um conceito que abriga a sociedade através dos grupos sociais que a constituem em relação entre si e com a natureza. Pode ser sintetizado na fórmula território é igual à natureza e cultura através das relações de poder.
Os povos indígenas e as comunidades camponesas destacaram, assim, que um mesmo estado nacional abriga dentro de si (de seu território) distintas territorialidades e afirmaram a escalas locais e regional fazendo aparecer a questão colonial no interior dos estados que se consideravam (mono)nacionais ignorando as diversas nacionalidades que estão abrigadas no interior de uma mesma fronteira estatal. Enfim, fizeram aparecer o “colonialismo interno” que desqualifica o diferente como tendo folklore e não cultura ou tendo dialeto e sotaque e não uma língua propriamente dita. Sendo assim, revalorizaram o local e o regional na sua dimensão política densa e, em alguns casos, se apresentaram como protagonistas que também revalorizaram a escala de poder nacional, como os indígenas da Bolívia e do Equador instaurando novos conceitos no léxico político como o de estado plurinacional, inovando nesses mesmos países ao consagrarem a natureza como sujeito de direito e oferecendo, ainda, ao debate teórico-político sobre o devir das sociedades na relação com a natureza o conceito de buen vivir, o suma qamaña dos aymaras e o sumak kausay dos quéchuas, que abrem outras perspectivas ao desenvolvimento econômico e não simplesmente de desenvolvimento econômico, como parecia estar emparedado o debate até muito recentemente.
Além disso, esses grupos sociais estão em grande parte associados às regiões do planeta onde é grande a diversidade biológica e de água. Assim, mais do que incluídos, como o documento base para a Rio + 20 faz menção nos itens 2, 25, 49, 75, 98 e 107, precisam ser reconhecidos como tais na sua diferença estabelecendo um diálogo de saberes desses povos/comunidades com o conhecimento científico e filosófico convencional. Há que se respeitar e reconhecer, inclusive, o direito ao não-contato dos “povos livres” ou em isolamento voluntário, como vários da Amazônia e dos contrafortes andino-amazônicos.
Há vários estudos que registram a associação entre o desaparecimento de línguas e a perda da diversidade biológica. Assim, há que se fazer referência explícita no documento aos direitos desses povos e comunidades a seus territórios pela importância de seus conhecimentos sobre a flora, a fauna, as águas, as geleiras, as montanhas, rios e mares patrimônio comum da humanidade e direitos originários desses povos. A diversidade deve ser um princípio a ser seguido rigidamente por suas imbricações ecológicas e culturais. Devemos aqui acompanhar a arguta observação da antropóloga argentino-brasiliana Rita Segato quando nos lembra, com Levi-Strauss que, segundo ela
“dizia que a razão pela qual devemos ser pluralistas é que quanto mais comunidades existirem no planeta é melhor não somente por uma razão humanitária e de valores, mas porque se observarmos a história natural vamos saber que nunca foi possível dizer que espécie ia vingar no planeta. O darwinismo não falava da espécie mais apta, mas a espécie mais adaptada a questões climáticas e ambientais é que iria sobrevir. Não era a espécie mais capaz. Portanto, sempre foi imprevisível. Então, não sabemos quais das sociedades humanas serão adaptativas ao futuro imediato. Pode ser os Yanomami, pode ser um grupo que tenha poucas pessoas. Desse modo, temos que preservar todas elas porque em algumas delas pode estar o futuro da humanidade”.
Nesse sentido, é indispensável que o documento seja capaz de reconhecer, e dar conseqüência política e não somente retórica a esse reconhecimento, a essas significativas contribuições desses grupos sociais, assim como o documento deve deixar de fazer referência a setores, como o “setor privado” e as “grandes empresas”, que estão implicados diretamente na produção dos problemas ambientais, sobretudo as grandes corporações pelo caráter de ameaça permanente à democracia pelos super-poderes que exercem junto às instituições (que deveriam ser) multilaterais e para o que, diga-se de passagem, não receberam nenhuma delegação política. Talvez aqui devêssemos dar conseqüência teórica e conceitual a uma expressão do senso comum – Poder Econômico - que, tudo indica, esteja nos chamando a atenção para uma questão de fundo político, qual seja a de um poder que age apesar de não ter delegação para tal. Afinal, trata-se de um poder que está por todo lado e que, como tal, merece não só um tratamento analítico mais rigoroso como tentamos mais acima, como requer instituições públicas que sejam capazes de limitar sua ação. Consideremos que limitar é da própria essência da política. Polis, originariamente, em grego, significava limite, pois era o nome dado ao muro que separava a cidade do campo. E política é a arte de definir limites: tirania quando Um define os limites; oligarquia quando poucos o fazem e democracia quando o povo o faz.
Sobre a gestão racional e o uso racional
Na tradição da segunda moderno-colonialidade, pós-século XVIII, com o iluminismo, passamos a viver sob o risco de uma tirania iluminada que se quer fundada no saber técnico – tecnocracia -, muito forte no campo ambiental, mas não só nele. Somente aqueles que vivem fora do mundo científico acreditam que esse é o mundo das certezas. Ao contrário, todos aqueles que vivemos esse mundo sabemos que não só são vários os embates teóricos, as controvérsias e dilemas, aliás, como toda comunidade humana, como também é um campo que vive de cultivar a dúvida e não as certezas (quem tem certeza não pesquisa). A técnica não pode substituir a política e se a política não está dando conta, como tudo parece indicar[5] – o próprio documento zero da Rio + 20 reconhece “as barreiras sistêmicas” em seu item 13 – é necessário que a reinventemos. Sobre isso, o documento pouco avança e, mais grave ainda, reitera a importância de setores que mais têm a ver com o problema do que com a solução.
Expressões como “gestão sustentável” e “uso sustentável” se tornam, no documento, sinônimas de “gestão racional” e “uso racional” ainda que o significado do que seja sustentável, e também do que seja racional, permaneçam vagos, ou melhor, reduzidos a uma dimensão técnica dissociada das relações de poder. A racionalidade permanece prisioneira de uma determinada racionalidade, aquela que se impôs desde a segunda moderno-colonialidade sob hegemonia da Europa norte ocidental. Não se pensa que os diferentes grupos humanos, sejam eles quais forem, são formados por seres capazes de forjar distintas racionalidades e reduzir a razão a uma das razões existentes é colonialismo e desperdício de experiência humana, conforme a feliz expressão do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. Afinal, todo ser vivo, por sua própria natureza é incompleto e depende dos seus poros para respirar, ouvir, cheirar, olhar, alimentar, devolver à natureza seus dejetos. Essas aberturas/fechamentos indicam a incompletude do ser vivo e devemos desenvolver instituições capazes de reconhecer não só o outro, que é a natureza, como o outro, o diferente - ente que difere – que sendo da mesma espécie desenvolveu sua própria matriz de racionalidade. Quando se fala de “gestão ou de uso sustentável” e de “gestão ou de uso racional” não se está pensando em apoiar a diversidade de formas de gestão e uso que diferentes povos instituíram ao longo de sua aventura no planeta. Há no documento um olhar imperial que acriticamente se crê superior ao colocar a racionalidade científica sobre outras formas de conhecimento. Isso não seria grave caso considerasse as implicações do poder no saber e do saber no poder (Michel Foucault, Enrique Leff). Não, a ciência e a técnica aparecem no documento como se fossem atemporais e atópicas. A visão que impera do que seja capacitação em vários itens do documento (item 18, 22 e 121 entre outros) mostra que ela vem sempre de fora, mas não um de fora qualquer, mas um de fora que tem data de nascimento, local de residência e origem social: é um de fora que vem da Europa Ocidental, da segunda moderno-colonialidade com a hegemonia gestorial-burguesa fundada na razão técnica que vai capacitar, aqui sem dúvida, sinônimo de colonizar. Todas as vezes que a capacitação foi invocada no documento foi em nome de levar a tecnologia a alguém incapacitado visto dessa perspectiva de origem bem conhecida e, assim, numa perspectiva unidirecional. Não há diálogo de saberes. Assim, só os países “em desenvolvimento”, vão receber capacitação, embora não sejam eles os maiores responsáveis pela crise ambiental contemporânea.
Não se pode ignorar que depois da Rio 92 tivemos uma profunda transformação nas relações sociais e de poder por meio da tecnologia com a telefonia móvel se generalizando, com a biotecnologia (sementes terminator e zumbi), com a genômica, com a nanotecnologia, com a biologia sintética, com a robótica e já se anuncia a Convergência BANG – Bits, Átomo, Neurônios e Genes. Em 1996 tivemos a doença da vaca louca (Encefalopatía espongiforme bovina - EEB) (Reino Unido); ainda em 1996 o início do cultivo comercial de organismos geneticamente transformados laboratorialmente[6]; o risco da perda de controle da febre aftosa em 2001 na Europa, em particular no Reino Unido; em 2006, as nanopartículas passaram entrar no noticiário quando
“um produto de limpeza doméstico, chamado “Magic Nano”, que esteve curto tempo no mercado alemão, foi retirado de imediato quando quase 100 consumidores telefonaram aos centros de controle de envenenamento com suspeita de que o produto havia ocasionado problemas respiratórios e de outro tipo. A indústria insistiu que o produto não incorporava nanotecnologia, aproveitando claramente a ausência de uma definição condensada. Quando retiraram o produto, as empresas de nanotecnologia insistiram que o caso não tinha nada que ver com as nanopartículas. Mais recentemente, sete trabalhadoras na China, que foram expostas a um ingrediente plástico (um polímero) em uma pintura adesiva que continha nanopartículas, contraíram problemas respiratórios; duas delas morreram. Uma equipe de cientistas chineses examinou o tecido pulmonar das sete mulheres, encontrou nanopartículas alojadas nas células e concluiu, cautelosamente, que os sete casos poderiam provar a relação entre a exposição a largo prazo às nano partículas e o dano grave aos pulmões humanos (Y., Song, X. Li e X. Du, 2009)[7].
Ainda em 2007, conforme revelaria um informe especial comissionado pelo Painel de Alto Nível de Experts das Nações Unidas sobre Segurança Alimentaria Mundial, publicado em outubro de 2011, concluiu que a crise mundial dos preços dos alimentos que se fez evidente no final de 2007 foi exacerbada, em grande medida, pelo incremento meteórico na produção dos chamados biocombustíveis (ETC Group, 2011). Registremos, ainda, em 2010 os efeitos da perfuração de petróleo em águas profundas com o grave acidente no Golfo do México, que tende a ser cada vez mais comum diante das novas descobertas como o Pré-Sal na costa brasileira e na Faja del Orinoco, na Venezuela. Em 2011, o acidente em Fukushima, no Japão, expunha, mais uma vez, a falta de regulação independente seja da sociedade civil, seja das instituições (que deveriam ser) públicas.
Em todos os casos acima indicados o setor privado e as grandes corporações estão implicados. E, como destaca o ETC Group, “um ano depois da Rio 92, a ONU praticamente eliminou seu Centro para a Ciência e para o Desenvolvimento da Tecnologia (UNCSTD), removeu os remanescentes de Nova York para a UNCTAD em Genebra, e simultaneamente, erradicou seu Centro para as Corporações Transnacionais (UNCTC), terminando assim com a mínima capacidade global que em algum momento existiu para monitorar e assessorar sobre novas tecnologias e sobre a transferência de tecnologias desde o setor privado. Em outras palavras, enquanto as TIC - Tecnologías da Informação e o Conhecimento - e a biotecnologia abriram as portas à chamada “economia do conhecimento” a ONU se deu a si mesma uma lobotomia frontal” (ETC Grup, 2011: 01).
A Rio + 20 tem a obrigação de chamar à responsabilidade o setor público para que se fortaleça institucionalmente superando definitivamente esse verdadeiro pesadelo que tem sido capturar o público e o comum à lógica do poder econômico e do poder privado.
Sobre o caráter das instituições
Desafortunadamente permanece fora do debate, e o documento o expressa de maneira cabal, os fundamentos institucionais que dão suporte às práticas insustentáveis, como os princípios do liberalismo como a propriedade privada, a ênfase no indivíduo, a idéia de acumulação, lucro e crescimento. Na natureza, o crescimento dos seres vivos, por exemplo, não é ilimitado e sequer tem o mesmo ritmo.
Apesar de a expressão sustentável aparecer nas 19 páginas do documento 113 vezes, sendo que em 58 delas acompanhada pela palavra desenvolvimento, para afirmar a noção de “desenvolvimento sustentável”, ela se configura nos termos acima anunciados. Em várias vezes o documento faz referência aos três pilares do desenvolvimento sustentável - o social, o econômico e o ambiental - sendo que este terceiro termo é pleonástico na medida em que um pilar do desenvolvimento sustentável não pode ser o sustentável. Isso revela o quanto a noção de “desenvolvimento sustentável” vem descambando para um campo meramente retórico, o mesmo que se verifica com o epíteto verde. Afinal, já tivemos uma “revolução verde” na agricultura que está longe de qualquer consenso no campo ambiental. O documento, apesar de reconhecer a existência de “barreiras sistêmicas” (item 13), não incorpora a dimensão política como um dos pilares do “desenvolvimento sustentável”.
Isso é grave na medida em que todo o debate ambiental indica, como de diversas maneiras vem se manifestando nos movimentos sociais, a luta da humanidade para dar outros sentidos (sustentáveis) à relação com a natureza. Afinal, como já assinalamos a separação entre a sociedade e a natureza não é só uma questão de paradigma, embora também o seja, mas uma questão implicada no próprio cerne das relações sociais e de poder que se configuraram com a expulsão de homens e mulheres de suas comunidades em relação com a natureza (comunidades camponesas, inclusive da Europa e, sobretudo comunidades originárias da África, da Ásia e da América Latina e Caribe). Há, assim, no campo ambiental uma luta pela reapropriação social da natureza (Leff), haja que sendo a natureza deixada à mercê de uma lógica mercantil, tende para o ilimitado e coloca a humanidade e seu oikos em perigo. Em suma, não podemos deixar de incluir o componente político, como uma dimensão densa de qualquer debate em torno do ambiental. Afinal, o que o movimento ambientalista pôs na agenda política contemporânea é que há limites para a relação das sociedades com a natureza. E limites, já o vimos, é a essência da política. Não há, em todo o documento, nenhuma referência à democratização do acesso à terra e à água, o reconhecimento da importância da diversidade cultural e das múltitplas territorialidades existentes que carecem de reconhecimento formal (reforma agrária ecológica, por exemplo).
Estamos, pois, instados a inventarmos uma racionalidade ambiental, como vem propondo o pensador mexicano Enrique Leff, uma racionalidade multidimensional – epistêmica, social, cultural, econômica, técnica e ecológica. Uma racionalidade que não veja a natureza como obstáculo ou inimiga, mas pelo seu potencial positivo como a produtividade biológica primária; que explicite que o social deve ser visto como constituído pela cultura na sua diversidade que, em seu seio traz uma enorme variedade de conhecimentos que constitui patrimônio da humanidade, conhecimentos esses forjados criativamente nas mais diversas circunstâncias eco-geográficas; na dimensão técnica, sabendo que não há sociedade sem técnica, haja vista que a técnica sendo do campo do fazer realiza praticamente os sentidos da sociedade que a institui. Enfim, toda sociedade tem que realizar praticamente seus fins. Afinal, como nos ensinara o geógrafo Milton Santos, o objeto técnico se caracteriza por ser um objeto impregnado de intencionalidade. O debate ambiental é, assim, um debate técnico e político a uma só vez. Dissociar uma dimensão da outra é afirmar uma lógica que acredita numa razão técnica acima do mundo mundano que habitamos, onde uma determinada intenção se sobrepõe às outras (classismo burguês/gestorial e seu etnocentrismo de pretensão universalista).
Sobre “participação pública”
Em seu item 17 o documento base da Rio+20 reconhece
“que um dos pré-requisitos fundamentais para atingir o desenvolvimento sustentável é a ampla participação pública nos processos decisórios. O desenvolvimento sustentável requer que os grupos principais [Major Groups] – mulheres, crianças e jovens, povos indígenas, organizações não governamentais, autoridades locais, trabalhadores e sindicatos, comércio e indústria, comunidade científica e tecnológica, e agricultores – desempenhem papel significativo em todos os níveis. É importante permitir que todos os membros da sociedade civil estejam engajados com o desenvolvimento sustentável, incorporando seu conhecimento específico e prático às políticas locais e nacionais. Nesse sentido, também reconhecemos o papel dos parlamentos nacionais na promoção do desenvolvimento sustentável”,
embora, como bem destacou a antropóloga Iara Pietricovsky, do Inesc,
“o setor privado ainda é tratado no mesmo grupo das organizações não-governamentais (ONGs), comunidades indígenas, mulheres etc., nos chamados Major Groups – o que considero um grande equívoco. São organizações de naturezas diferentes, com demandas e poderes diferentes de definir os rumos da história da humanidade, e deveriam ser tratados separadamente. As ONGs do campo da cidadania ativa e movimentos sociais não têm relação com o setor corporativo e empresarial. Não defendemos as mesmas posições. Assim, somos diluídos no conceito abrangente de sociedade civil, o que não é correto. O setor produtivo privado já detém o capital e os mecanismos de influenciar o e mesmo definir a pauta política dos espaços de poder. Ao colocá-los na mesma posição que as ONGs e indígenas em uma disputa de sentidos, a parte fraca e minoritária perde”.
Apela-se para a noção de parceria, como no item 96 que fala de parceria público-privado. Registre-se que ao longo da década de 1990 todo um ideário político-ideológico se impôs fazendo com que, na verdade, o poder público se fragilizasse deixando de criar mecanismos próprios de controle em nome do interesse público e do bem comum, quando não abolindo os existentes. Não deixemos escapar o contexto ufanista anti-estatal que se seguiu à queda da União Soviética quando termos como interesse público e bem comum ficaram fora do léxico político neoliberal que passou a imperar justamente depois da Rio 92 o que, em parte, é responsável pela diluição dos compromissos ali estabelecidos.
Ora, o mais comum no campo ambiental é o conflito de intenções em termos das práticas e dos destinos a serem dados à natureza e é da natureza da política, sobretudo quando pensada em termos democráticos, dar conta dessa tensão criativa. Assim, precisamos construir uma cultura que aceite o dissenso como um valor legítimo. Uma sociedade democrática não é aquela que recusa o conflito, mas, ao contrário, é aquela que o vê como expressando visões distintas a respeito de uma mesma situação, sobretudo dos grupos sociais que não estão encontrando canais para se expressar no escopo de determinadas relações sociais e de poder. A liberdade de opinião só tem sentido se for para a opinião discordante. O direito de greve, por exemplo, foi uma forma democrática de assimilar o conflito, ainda que nos marcos de uma determinada sociedade liberal com seus limites próprios à democracia enquanto “regime do povo, pelo povo e para o povo” (Thomas Jefferson). Isso deveria ser explicitado no documento até porque o campo ambiental proporcionou que grupos sociais que se conformaram através de territorialidades com forte relação com a natureza, como os camponeses e os povos originários acima arrolados, pudessem se expressar politicamente e, quase sempre, se viram obrigados a expressá-los através de conflitos com movimentos sociais que forjaram, inclusive, novos direitos, como as Reservas Extrativistas como unidade territorial de conservação da natureza através da cultura dos povos e/ou grupos sociais (quem não se lembra dos “empates” dos seringueiros contra os empresários que desmatavam a floresta?).
A Conferência do Rio de Janeiro, que ora cumpre 20 anos, não pode ignorar o papel que esses grupos sociais jogaram para sua realização. O grande fato político inovador da chamada Rio 92, que inaugurou o ciclo social de conferências da ONU[8], foi não só ter colocado o debate além dos gabinetes oficiais da política estatal, como no grande Fórum Paralelo do Aterro do Flamengo que reuniu à época mais de 100 mil pessoas, o que já indicava a crise política das instituições estatais e seus fóruns diplomáticos, mas, sobretudo pelo deslocamento do horizonte de sentido político trazido pelos movimentos camponeses e, sobretudo indígenas. Afinal, se o estado com sua soberania territorial consagrada (Westfallia, 1648) se fez ali presente de maneira plena, com a presença de todos os chefes de estado de todos os países do mundo no Rio de Janeiro, o que por si só mostra o poder de convocação da causa ambiental, o ano de 1992 foi resignificado por esses movimentos que associaram 1992 ao ano de 1492, momento da bifurcação histórica de larga duração que então comemorava, 500 anos. O fato de essa reunião ter se realizado no Brasil se deve, em grande parte, ao significado que particularmente a Amazônia tem para o mundo, como se fora a grande e última reserva de natureza que a humanidade tem e que, com a reconfiguração do significado da natureza após os anos 1960 com o debate ambiental, passa a gozar de um novo significado não somente como reserva ilimitada de recursos, como alguns ainda teimam em ver a região ainda com base em uma racionalidade capitalista/gestorial produtivista. Muito embora, registre-se, a perspectiva ambiental que se desenvolvera desde finais dos anos 1960 visse a região a partir de uma perspectiva eurocêntrica, ou seja, como natureza sem gente, visão essa que estava mais preocupada com o papel da região no equilíbrio climático global e como reserva de diversidade biológica, fundamental para os novos campos da engenharia genética (ou quando a vida passou a ser vista como material genético tratado como engenharia). Todavia, o assassinato de Chico Mendes, em 22 de dezembro de 1988, haveria de mudar definitivamente a visão sobre a região, sobretudo por seu empenho na Aliança dos Povos da Floresta que reunia camponeses e povos indígenas que desde 1492 vivenciaram conflitos intensos. É de Chico Mendes a tese de que “não há defesa da floresta sem os povos da floresta”, introduzindo a cultura e o conhecimento desses povos definitivamente no debate acerca dos destinos a ser dado à natureza. A Amazônia não era mais um “vazio demográfico” idéia que, aliás, revela sua natureza colonial na medida em que despovoa a região e, assim, autoriza a ocupação pelos conquistadores/invasores. “Aqui tem gente”, eis o brado lançado pelos seringueiros quando fizeram sua primeira grande reunião nacional, em 1985 em Brasília, quando fundaram o Conselho Nacional dos Seringueiros, então um forte movimento social.
Enfim, mesmo depois de 500 anos de um sistema mundo que se instaurara contra os povos originários do continente que seria batizado pelos invasores como América, esses povos se faziam presentes na Rio 92 justamente para debater a crise ambiental contemporânea através de questões como água, vida (plantas e animais), fogo (energia/clima), terra e ar, questões sobre as quais esses povos detêm importante acervo de conhecimento. Não podemos desperdiçar a experiência e o conhecimento desses grupos sociais que, ademais, habitam as regiões do planeta mais ricas em biodiversidade e água.
Quando estamos diante da avaliação da Rio 92 não podemos deixar de fazer constar a enorme importância desses grupos sociais, e dar conseqüência política a isso. E não podemos deixar de enfatizar que 1492 inaugura um sistema mundo que, desde então até hoje, não se cansou de afirmar o comércio e o dinheiro, enfim, a economia, mundo esse que se acreditou sem limites, impondo sua visão de tempo como se fora natural desprezando outras temporalidades e suas territorialidades através da colonialidade do saber e do poder. Muitos dos governos que surgiram na contramão da política neoliberal, sobretudo na América Latina desde os finais da década de 1990, devem sua existência às condições políticas e morais criadas por esses movimentos. Apropriar-se dessa história para transformá-la numa pauta para afirmar o ambiente como economia é, no mínimo, desrespeito, e fazer tábua rasa dos novos horizontes de sentido que, desde então, emergiram/foram inventados. Afinal, mais do que modelos, que engessam a criatividade, esses movimentos propuseram novos horizontes de sentido para a vida, ou seja, novas possibilidades de horizontes que, sabemos, se afastam conforme caminhamos em sua direção. Abrem, todavia, caminhos. Nesse sentido, a Convenção 169 da OIT, a Conferência dos Direitos dos Povos Indígenas de 2007, assim como todas as deliberações da Rio 92 e das conferências do ciclo social da ONU que apontaram para novos direitos (habitat, mulheres, racismo), o buen vivir (suma qamaña, sumak kausay), o estado plurinacional, a natureza como portadora de direitos merecem ser devidamente valorizadas no documento.
Insistir numa economia mercantil, ainda que pintada de verde, numa crença no milagre da tecnologia dissociada dos fins que lhes dão vida, numa visão da política que ignora seu caráter necessariamente contraditório e, portanto, conflitivo, como faz o documento em apreço, não altera as estruturas das relações sociais de poder que dão sustentação ao insustentável mundo que habitamos.
Esse documento foi produzido a pedido da Diretoria da Associação dos Geógrafos Brasileiros.
- Carlos Walter Porto-Gonçalveses Professor do programa de Pós-graduação em geografia da UFF e ex-Presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros (gestão 1998-2000)
[1] Alguns filósofos, lingüistas e antropólogos se vêm instados a lançar mão do conceito de equivalente homeomórfico (Pannikar, Esterman) para dar conta de um diálogo entre culturas, haja vista a intraduzibilidade de certas idéias fora das culturas que as forjaram. É o caso da idéia de pachamama entre os quéchuas e os aymaras que não é traduzível, como erroneamente se faz, por natureza. O equivalente homeomórfico que tornaria possível dialogar desde a cultura ocidental com essa idéia andina é o de Physis tal e qual entendida pelos gregos, haja vista não haver separação entre natureza e cultura nesse conceito helênico onde, inclusive, os deuses habitavam esse mundo. A ciência moderna ainda guarda marcas dessa tradição grega quando nomeia a erosão do vento como erosão eólica, numa clara alusão a Eolo, deus grego do vento.
[2] Essa se inaugura com o iluminismo europeu sob hegemonia inglesa. A primeira moderno-colonialidade se instaurou sob hegemonia ibérica a partir da invasão do continente que viria a ser batizado pelos invasores como América.
[3] É eloqüente a afirmação de Robert McNamara: “Quando os privilegiados são poucos e os desesperadamente pobres são muitos, e quando a brecha entre dois grupos se aprofunda em vez de diminuir, é apenas uma questão de tempo até que seja preciso escolher entre os custos políticos de una reforma e os custos políticos de uma rebelião. Por esse motivo, a aplicação de políticas especificamente encaminhadas a reduzir a miséria dos 40% mais pobres da população dos países em desenvolvimento, é aconselhável não somente como questão de princípio senão também de prudência. A justiça social não é simplesmente um imperativo moral, é também um imperativo político. Mostrar indiferença a esta frustração social equivale a fomentar seu crescimento”. (McNamara (1972) apud Zibechi, 2010)
[4] A noção de comunidade, na verdade, aparece três vezes no documento, sendo duas vezes enquanto referência à noção difusa de “comunidade internacional”, onde o protagonismo é do estado e das empresas, e uma vez aludindo à comunidade científica.
[5] A recente crise vivida nos países com forte tradição nesses princípios, como os Estados Unidos e vários da Europa Ocidental, é não só uma crise de natureza econômica, mas uma crise de forte componente político em grande parte devido à captura de instituições públicas por uma lógica imposta pelo poder privado, sobretudo as grandes corporações do mundo bancário e suas finanças. O impasse político em torno do déficit público estadunidense expôs toda dissociação das instituições políticas do país dos dilemas mais sentidos na vida cotidiana, sobretudo dos mais pobres. A ênfase na escala global, já o vimos, esvaziou a escala nacional, locus do direito dos cidadãos, e legou uma escala local fragilizada, isolada, fragmentada ao sabor de instrumentalizações mercantis de sua riqueza (turismo rural, turismo ecológico). Aliás, a tragédia do furacão Katrina expôs ao mundo a extrema pobreza no país mais rico do mundo, inclusive o forte componente racial implicado nas relações sociais e de poder que produziram essa pobreza. A extrema dependência do financiamento pelas grandes corporações das campanhas políticas dos dois maiores partidos políticos do país ajuda a explicar o impasse político e a ameaça à democracia quando submetida ao “poder econômico”.
[6] Observemos, em nome do rigor conceitual, que não se trata de organismos geneticamente modificados simplesmente, como se vem dizendo acriticamente, na medida em que a modificação genética é uma característica presente na história milenar da agricultura camponesa e dos povos originários, mas sim de organismos modificados geneticamente em laboratório, novo locus industrial, as novas fábricas. Assim, o que verificamos é um deslocamento do locus de produção do conhecimento dos camponeses e dos povos originários para os grandes laboratórios ligados à grandes corporações e, assim, uma mudança nas relações de poder onde camponeses e povos originários vem sendo deslocados pelas grandes corporações e suas novas fábricas.
[7] Y., Song, X. Li e X. Du, 2009 - “Exposure to nanoparticles is related to pleural effusion, pulmonary fibrosis and granuloma,” European Respiratory Journal, 1 de septiembre de 2009, vol. 34 no. 3, pp. 559-567).
[8] Ciclo esse que, depois, teria, entre outras, a Conferência de Direitos Humanos de 1993, a Conferência Mundial sobre Mulheres de 1995, a Conferência Internacional sobre o Financiamento ao Desenvolvimento de 2002, a conferência de Durban de 2001 sobre racismo.
https://www.alainet.org/pt/articulo/155563
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