O casal espião

17/05/2012
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Enfim, conheci espiões ao vivo. Até ir ao México, em  março passado, espionagem consistia, para mim, no universo literário de John  Le Carré, Graham Greene e Ian Fleming, o criador de James Bond, agente 007. E  na leitura do clássico “A orquestra vermelha”, de Gilles Perrault, que narra a  atuação da rede de espionagem soviética na Europa Ocidental durante a Segunda  Guerra Mundial.

Gilberto e sua mulher, Alicia, ingressaram jovens no  Partido Comunista mexicano. Aos 17 anos, na década de 1960, o partido lhes  propôs serem agentes secretos da inteligência militar soviética nos EUA.  Casaram-se, foram treinados na  Rússia e, em seguida, se mudaram para  Washington. Ali, durante 20 anos, cumpriram a missão de descobrirem, país  afora, bases de mísseis.

Levavam uma vida aparentemente normal: cursaram a  universidade, fizeram doutorado, empregaram-se como professores, tiveram dois  filhos e viviam de seus salários. Muito eventualmente os russos forneciam  algum dinheiro para despesas com viagens – em geral, de carro, para  localizarem as bases. O receio dos soviéticos é que os americanos fizessem um  ataque de surpresa.

Na Rússia, Gilberto ganhou uma velha máquina de  escrever. Foi instruído a escrever em suas teclas apenas mensagens de muita  importância. Sem necessidade de datilografar com papel no rolo. Uma tecla, em  especial, só deveria ser apertada caso soubesse que os americanos haviam  decidido esquentar a guerra fria. Ele acredita que a máquina era uma espécie  de avó do computador, em condições de comunicar dados por radar ou  satélite.

Em Washington, não tinham contato com  nenhum russo. Em uma construção abandonada, repleta de sucata, apanhavam  periodicamente uma determinada pedra. Abriam-na em casa e recebiam as  instruções. No bojo da mesma pedra, enviavam suas mensagens. Todas em um  sistema de código muito parecido ao que inventei na prisão – descrito em meu  livro “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira”  (Rocco) - para remeter para fora denúncias embutidas em cartas que, lidas por  quem desconhecia a chave, pareciam tratar de assuntos  triviais.

As duas chaves utilizadas pelo casal  eram: “Uma maçã por dia evita médico por toda a vida” e “Ninguém pode ser  amigo de todos o tempo todo”. Na prisão, precisei passar para fora a mensagem  “Jeová assassinado pela repressão de Brasília em Guaraí”. Militares do  Distrito Federal haviam fuzilado, no interior de Goiás, o militante Jeová de  Assis Gomes, que hoje figura entre os desaparecidos.

Se eu escrevesse a mensagem, certamente não passaria  pela censura da prisão. Utilizei o sistema de chave numérica, no caso 5-8-4, e  enviei este parágrafo na carta: “Deus bíblico é chamado Jeová, que pune o  assassino e salva o assassinado, pois é assim pela mão divina, livre de  repressão, que os Profetas, se vivos hoje, fariam de sua missão em Brasília a  nova Babilônia infiel, em verdade hoje ameaçada pelo uivo faminto do  guaraí”.

Ao grifar este parágrafo da carta na  sequência vocabular 5-8-4, o leitor identificou: “Deus bíblico é chamado  Jeová, que pune o assassino e salva o assassinado,  pois é assim pela mão divina, livre de repressão,  que os profetas, se vivos hoje, fariam de sua missão em  Brasília a nova Babilônia infiel em verdade hoje  ameaçada pelo uivo faminto do guaraí.”

Um  dia, preso pelo FBI, o casal soube que há sete anos era seguido. Em uma das  viagens, por dezenas de agentes: um em uma moto, outro no caminhão, um  terceiro dirigindo um carro esporte... O revezamento de veículos e motoristas  o impedia de perceber o monitoramento do FBI.

Gilberto e Alicia escaparam de longos anos de prisão  porque o advogado que apareceu para defendê-los, amigo do casal, ameaçou  denunciar o FBI à corregedoria por transgredir, ao persegui-los, leis de  vários estados. Propôs um acordo, logo aceito: Gilberto e Alicia, acompanhados  dos filhos, e apenas com as roupas do corpo, foram deportados para o México no  dia seguinte à prisão. O casal desconfia de que o advogado fazia parte da rede  de espionagem soviética.

Hoje, a família vive em Cuernavaca e o casal dá aulas  na universidade. Instei-os a publicarem sua história. Alicia não está  convencida de que seja o momento.

- Frei Betto é escritor, autor do romance policial  “Hotel Brasil – o mistério das cabeças degoladas” (Rocco), entre outros  livros.
www.freibetto.org <http://www.freibetto.org>  Twitter:@freibetto.
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