Política externa, política do Brasil
15/10/2014
- Opinión
Uma das afirmações mais conhecidas sobre a política externa em eleições é que o tema não é decisivo. Embora seja quase impossível discordar desta avaliação, a mesma é parcial, pois descola a agenda das relações internacionais do projeto de Estado e sociedade que um país deseja construir, e de seu caráter de política pública. A forma como uma nação define suas prioridades internas não pode ser separada daquela como atua no mundo, havendo forte interdependência entre elas: justiça social, modelos econômicos, identidade nacional, orgulho, autonomia e assertividade. Portanto, ao se votar em um determinado projeto de Estado não se pode ignorar que ele propõe uma visão interna, que impacta a política externa.
São componentes de um mesmo programa que resulta de diferentes opções para o Brasil. No segundo turno das eleições presidenciais, enquanto a candidata Dilma Rousseff (PT) defende a continuidade do projeto de Estado, interna e externa, o candidato Aécio Neves do PSDB propõe quebra. Apesar das diferenças internas entre os programas tentarem ser minimizadas pela oposição para não contestar políticas de sucesso do governo, no campo externo se busca o oposto: colocar em xeque a agenda, ajudando a compreender as pontas soltas das propostas domésticas, em particular na economia, cujas entrelinhas expressam modelos mais próximos ao neoliberalismo do que ao Estado social.
O debate sobre qual papel o Brasil pode e deve exercer no mundo não é inédito, possui raízes históricas e estruturais, resumidas em torno de interpretações contraditórias: força e fraqueza, autonomia ou alinhamento, primeiro ou terceiro mundo, Norte ou Sul. Com isso, a eleição de 2014 deve ser compreendida como mais uma inflexão nesta trajetória que busca o reposicionamento do País no equilíbrio de poder mundial, e que revela, como citado, não só uma visão de relações internacionais, mas de projeto de Estado.
Avaliando as agendas externas de Dilma e Aécio, existe uma diferença de conteúdo. Enquanto a proposta da candidata Dilma é pela manutenção de uma visão de Estado iniciada em 2003 com o ex-presidente Lula, a do candidato tucano defende outro caminho. Em um balanço da experiência diplomática recente observa-se forte ligação entre os programas internos e externos de empoderamento econômico e social que reforçam o poder brando brasileiro.
Hoje, o Brasil não é só o país do “futebol, samba e caipirinha”, mas o do “Fome Zero, Bolsa Família e Farmácia Popular”, base de projetos de cooperação técnica e que tem permitido ao país cumprir, diferente de muitas nações desenvolvidas, as Metas do Desenvolvimento do Milênio das Nações Unidas sobre pobreza, educação, saúde, direitos humanos e gênero. É uma política de identidade terceiro mundista, com orgulho de pertencer às periferias, parte do grupo de potências emergentes, os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul), com os quais se mantém alianças sólidas e complementares para defesa do multipolarismo e da reforma do multilateralismo: a criação do Banco dos BRICS é um destes marcos, que se choca com o imobilismo de outras instituições. Na América do Sul, a prioridade é pela integração regional via Mercosul, Unasul, Celac, associada a pautas políticas e econômicas, como parte de uma visão estratégica de autonomia. Ao Sul, laços com a África, Ásia e Oriente Médio, e ao Norte com os Estados Unidos, o Japão e a União Europeia, em uma tática de eixos combinados.
Por sua vez, o candidato Aécio Neves detém plano similar ao dos anos 1990, que pressupõe um realinhamento às potências tradicionais, como Estados Unidos e União Europeia, que subestima três realidades: a da crise destas potências, iniciada desde 2008 na economia, mas que se estende a dimensões sociais de desencanto, crescimento da violência e fundamentalismos; a pauta destes interlocutores; e a da ascensão de novas potências do Sul. Chama a atenção no programa de governo a quase ausência dos BRICS ou da ênfase em relações bilaterais com nações poderosas do Sul como a China. Mesmo nos Estados Unidos, estrategistas reconhecem a conformação de um “G2” global entre norte-americanos e chineses caracterizado pela complementação, competição e vulnerabilidade. No caso da integração sul-americana, chama a atenção o viés livre cambista, com foco nas dimensões financeiras e oportunidades de negócios, esvaziando programas em andamento.
Fala-se em isolamento do Brasil no mundo pela sua ideologização, mas em que medida? Na política ou na economia? Mas isso não ignora o mundo concreto? E o que ocorre neste mundo concreto? Várias coisas: o crescimento das exportações brasileiras nos países em desenvolvimento, que impulsionou setores como o agronegócio e a infraestrutura; a contribuição à estabilidade sul-americana a partir dos processos de integração; a dimensão estratégica da ação brasileira na ONU pela privacidade na era digital; a defesa dos direitos humanos e da via diplomática ao criticar intervenções que tem tido baixo sucesso na resolução de conflitos no Iraque, Afeganistão, Líbia ou Síria; e o alerta à comunidade internacional por ignorar outros casos de crise humanitária no continente africano. Por outro lado aumentam as acusações de um suposto imperialismo brasileiro (e chinês) nestes mesmos espaços. Mas elas não contradizem exatamente estas críticas, passando do extremo da percepção de uma nação fraca para uma poderosa?
De qual Brasil exatamente fala a oposição? Do que é reconhecido como potência pelos principais poderes internacionais do Norte e do Sul? Ou aquele que ela deseja estabelecer sob novos parâmetros com menor assertividade global?
O que se propõe é outra visão de política externa, como parte de outro projeto de Estado, despolitizada. Contudo, é fato que a política externa não definirá a eleição. Porém, como política pública, os seus rumos serão influenciados, como todas as dimensões econômicas, estratégicas, sociais e de poder do Brasil, pela escolha do eleitor por um ou outro programa partidário. Isso se reflete na forma como a política externa está colocada nestas agendas e de que maneira se percebe a sua interação com a sociedade. Como nação emergente, o Brasil vive sim uma encruzilhada em suas opções nas relações internacionais, que nem sempre é discutida em torno de fatos (mesmo os econômicos) ou do reconhecimento das diferentes forças sociais. Esta encruzilhada se estende de forma abrangente a todos os setores que tem impacto na construção do futuro.
É preciso deixar claro que a disputa não é entre a continuidade e a continuidade, e sim entre a continuidade e a descontinuidade. Isso não significa validar sem críticas ações do governo e do Estado, mas optar entre programas que são diferentes. A percepção da existência de dois projetos em choque refletiu-se nas divisões do mapa eleitoral no primeiro turno, e revela a escolha dos eleitores entre as propostas: de políticas sociais e econômicas de bem estar às neoliberais, de empoderamento das classes sociais e o debate democrático via conselhos nacionais (como o proposto Conselho Nacional de Política Externa) às estruturas tradicionais, o alto ao baixo perfil externo. Supor que todo eleitor ignore esta diversidade, ou atrelar o voto ao assistencialismo ou motivações ideológicas é subestimar a capacidade da população.
E aos que dizem definir seu voto apenas pelo cansaço com a política? A estes cabe apenas sugerir melhor avaliar o que está em jogo. Ou, ainda, pode-se sugerir que cada um assuma a opção pelos projetos em discussão ou por nenhum dos dois em caso dos brancos e nulos. Toda escolha é uma escolha ideológica entre modos de vida, baseada em nossas convicções, percepções e valores, mesmo para os que afirmam optar de forma isenta: afinal, “votar anti” alguma coisa é sim “votar a favor” de outra.
- Cristina Soreanu Pecequilo é Professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI).
16/10/2014
https://www.alainet.org/pt/articulo/164761
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