A hipocrisia da “liberdade de expressão” depois do ataque no Charlie Hebdo

14/01/2015
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O ataque contra o escritório editorial do Charlie Hebdo chocou o público, que ficou horrorizado com a morte violenta de 12 pessoas no centro de Paris. As imagens de vídeo de um atirador disparando e matando um policial já ferido, vistas por milhões, deram ao evento de quarta-feira uma atualidade extraordinária.
 
Na sequência imediata do ataque, o Estado e a mídia estão tentando explorar o medo e a confusão do público. Mais uma vez, a bancarrota política e o caráter reacionário do terrorismo são expostos. Ele serve aos interesses do Estado, que utiliza a oportunidade dada pelos terroristas para aumentar seu autoritarismo e militarismo.
 
Em 2003, quando o governo Bush invadiu o Iraque, a oposição popular na França foi tão grande que o governo do presidente Jacques Chirac foi obrigado a se opor à guerra, mesmo sob pressão política maciça dos Estados Unidos.
 
Agora, 12 anos depois, enquanto o presidente François Hollande tenta transformar a França no principal aliado dos Estados Unidos na “guerra ao terror”, o ataque reforça sua posição.
 
Nesta tentativa Hollande pode se apoiar na mídia, que em tais circunstâncias dirige toda a sua energia para a manipulação emocional e a desorientação política do público.
 
A mídia capitalista, que combina supressão de informação com meias-verdades e mentiras descaradas, desenvolve uma narrativa calculada para apelar aos instintos mais básicos do grande público, mas também aos seus sentimentos idealistas e democráticos.
 
Em toda a Europa e nos Estados Unidos, a alegação está sendo feita de que o ataque à revista Charlie Hebdo foi um assalto à liberdade de imprensa e ao direito inalienável dos jornalistas de se expressar em uma sociedade democrática sem correr o risco de perder a liberdade ou temer por suas vidas.
 
A morte dos cartunistas e editores do Charlie Hebdo está sendo proclamada como um assalto aos princípios da liberdade de expressão, que são supostamente tão queridos na Europa e nos Estados Unidos. O ataque ao Charlie Hebdo, assim, é apresentado como outro ultraje cometido pelos muçulmanos, que não podem tolerar as “liberdades” ocidentais.
 
Disso se conclui que a “guerra ao terror” — isto é, o ataque imperialista ao Oriente Médio, Ásia Central, África do Norte e Central — é uma necessidade inevitável.
 
Em meio a esta orgia de hipocrisia democrática, nenhuma referência é feita ao fato de os militares norte-americanos, no curso de suas guerras no Oriente Médio, serem os responsáveis pela morte de 15 jornalistas.
 
Na atual narrativa de “liberdade de expressão sob ataque”, não há espaço para qualquer menção ao ataque, com um míssil ar-terra, ao escritório da Al Jazeera em Bagdá, em 2003, que deixou três jornalistas mortos e quatro feridos.
 
Nada é escrito ou dito sobre o assassinato, em julho de 2007, de dois jornalistas da Reuters que trabalhavam em Bagdá, o fotógrafo Namir Noor-Eldeen e o motorista Saeed Chmagh.
 
Ambos foram deliberadamente atacados por um helicóptero Apache enquanto trabalhavam em Bagdá oriental.
 
Os públicos norte-americano e internacional puderam ver as imagens do assassinato a sangue frio dos dois jornalistas e de um grupo de iraquianos — filmado de um dos helicópteros — como resultado de um dos vazamentos do WikiLeaks do material secreto obtido do cabo norte-americano Bradley Chelsea Manning.
 
E como os Estados Unidos e a Europa agiram para proteger o exercício de liberdade de expressão do WikiLeaks? Julian Assange, o fundador e editor dos WikiLeaks, tem sido submetido a insistente perseguição. Importantes figuras políticas e midiáticas dos Estados Unidos e do Canadá o denunciaram como “terrorista” e exigiram sua prisão, com alguns pedindo até seu assassinato.
 
Assange está sendo perseguido em alegações fraudulentas de “estupro” criadas pelos serviços de inteligência norte-americano e sueco. Ele foi forçado a buscar esconderijo na embaixada do Equador em Londres, que está sob constante guarda da polícia britânica, que vai prendê-lo se Assange deixar o local. Quanto a Chelsea Manning, ele está na prisão, servindo uma pena de 35 anos por traição.
 
É assim que as grandes “democracias” capitalistas da América do Norte e da Europa demonstraram seu compromisso com a liberdade de expressão e a segurança dos jornalistas!
 
A narrativa desonesta e hipócrita criada pelo Estado e pela mídia requer que os cartunistas e jornalistas do Charlie Hebdo sejam tratados como mártires da liberdade de expressão e representantes de uma reverenciada tradição de jornalismo atrevido e iconoclasta.
 
Numa coluna publicada quarta-feira no Financial Times, o historiador liberal Simon Schama colocou o Charlie Hebdo na gloriosa tradição da irreverência jornalística que é “o sangue da liberdade”.
 
Ele relembrou os grandes satiristas europeus entre os séculos 16 e 19, que submeteram os grandes e poderosos a seu profundo desprezo. Dentre seus alvos, Schama lembrou, estiveram o brutal Duque de Alba, que nos anos 1500 mergulhou a luta dos holandeses por liberdade em sangue; o rei sol francês, Louis 14; o primeiro-ministro britânico William Pitt; e o príncipe de Gales.
 
“A sátira”, escreveu Schama, “se tornou o oxigênio da política, trazendo saudáveis gargalhadas de desprezo às cafeterias e tavernas, onde as caricaturas circulavam todo dia e toda semana”.
 
Schama coloca o Charlie Hebdo em uma tradição à qual ele não pertence. Todos os grandes satiristas aos quais Schama se refere eram representantes do Iluminismo democrático, que dirigiam seu desprezo contra os poderosos e corruptos defensores dos privilégios da aristocracia.
 
Em seu implacável e degradante retrato dos muçulmanos, o Charlie Hebdo goza os pobres e os impotentes.
 
Falar dura e honestamente sobre o caráter sórdido, cínico e degradante do Charlie Hebdo não significa concordar com as mortes de seu pessoal. Mas quando o slogan “Eu sou Charlie” é adotado e pesadamente promovido pela mídia como slogan para as manifestações, aqueles que não foram convencidos pela propaganda do Estado e da mídia ficam obrigados a responder: “Nós nos opomos ao ataque violento contra a revista, mas não somos — e não temos nada em comum — com o Charlie”.
 
Os marxistas não são estranhos à luta para superar a influência da religião sobre as massas. Mas eles conduzem a luta com o entendimento de que a fé religiosa é sustentada pelas condições de adversidade da vida e pelo desespero. A religião não deve ser ridicularizada, mas entendida e criticada, como Karl Marx entendeu e criticou:
 
“A angústia religiosa é… a expressão de angústia real e também um protesto contra a angústia real. A religião é o suspiro de uma criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, assim como é o espírito em condições inóspitas. É o ópio do povo”.
 
“Abolir a religião como a felicidade ilusória do povo é exigir sua felicidade real. A exigência por abandonar as ilusões sobre as condições atuais é a exigência por acabar com o estado de coisas que exige ilusões. A crítica da religião é, assim, o embrião da crítica de um vale de lágrimas, do qual a auréola é a religião”. [Contribution to Critique of Hegel’s Philosophy of Law, in Marx and Engels Collected Works, Volume 3 (New York, 1975), pp. 175-76]
 
É preciso apenas ler as palavras acima para ver o abismo intelectual e moral que separa o marxismo da sopa doentia de cinismo da ex-querda política que encontra expressão no Charlie Hebdo. Não há nada revelador, o que dizer edificante, na tentativa da revista de denegrir, de forma pueril e muitas vezes obscena, a religião muçulmana e suas tradições.
 
As caricaturas anti-islã que apareceram em tantas capas do Charlie Hebdo, cinicamente provocativas, facilitaram o crescimento dos movimentos chauvinistas de extrema-direita na França.
 
É absurdo alegar, como defesa editorial do Charlie Hebdo, que seus cartuns são todos “de brincadeira” e não têm consequências políticas.
 
La-Libre-Parole-antisemitische-Karikatur
 
Além do fato de que o governo francês busca desesperadamente apoio para sua agenda crescentemente militar na África e no Oriente Médio, a França é um país onde a influência da Frente Nacional neo-fascista está crescendo rapidamente.
 
Neste contexto político, o Charlie Hebdo facilitou o crescimento de uma forma politizada de sentimento anti-islâmico que tem uma inquietante semelhança com o politizado antissemitismo que emergiu no movimento de massas da França nos anos 1890.
 
No uso cruel e vulgar de caricaturas que promovem uma imagem sinistra e esteriotipada dos muçulmanos, Charlie Hebdo relembra as publicações racistas que tiveram um papel significativo na agitação antissemita que dominou a França durante o famoso Caso Dreyfus, que irrompeu em 1894 depois que um oficial judeu foi acusado e falsamente condenado por espionagem em nome da Alemanha.
 
Ao fortalecer o ódio popular contra os judeus, La Libre Parole, publicado pelo infame Edoard Adolfe Drumont, fez um uso altamente eficaz de cartuns que usavam temas antissemitas. As caricaturas serviram para inflamar a opinião pública, incitando multidões contra Dreyfus e seus defensores, como Emile Zola, o grande novelista e autor de J’Accuse.
 
O World Socialist Web Site, com base em seus antigos princípios políticos, se opõe e inequivocadamente condena o assalto terrorista contra Charlie Hebdo. Mas recusamos nos juntar àqueles que definem a revista como mártir da causa da democracia e da liberdade de expressão — e alertamos nossos leitores para a agenda reacionária que motiva esta campanha desonesta e hipócrita.
 
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David North é o presidente nacional do Partido da Igualdade Socialista nos Estados Unidos (SEP). Também é o presidente do Conselho Editorial Internacional do World Socialist Web Site.
 
14/jan/2015
 
https://www.alainet.org/pt/articulo/166797
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