Seria o fim do Made in China?
04/03/2015
- Opinión
Em debates recentes no Congresso Americano, representantes dos Partidos Democrata e Republicano manifestaram sua preocupação com a magnitude do déficit comercial estadunidense com a China. Segundo a interpretação destes, parcela significativa da competitividade das manufaturas chinesas estaria fundamentada na política de desvalorização artificial da moeda local, o yuan.
Neste sentido, com o intuito de se recuperar a competitividade da indústria americana frente à asiática, tais congressistas têm ensaiado a proposição de medidas que busquem penalizar as supostas ‘manipulações cambiais desleais’ de alguns de seus parceiros comerciais.
Apesar da dificuldade de se identificar e mensurar as referidas manipulações desleais, e da inadequação das medidas estudadas frente às diretrizes da Organização Mundial de Comércio, o fato que mais chama a atenção é a leitura aparentemente reducionista do establishment político e até mesmo econômico estadunidense acerca dos fundamentos da competitividade da indústria chinesa.
Segundo esta leitura, de maneira análoga às interpretações feitas nos anos 1960 e 1980 dos movimentos de industrialização japonês e coreano, infere-se que grande parte do diferencial competitivo chinês e até mesmo asiático derivaria apenas dos baixos custos de produção, os quais estariam sustentados em salários baixos e câmbio artificialmente desvalorizado.
É ocioso dizer que estes dois elementos contribuem para o desempenho manufatureiro chinês, entretanto, se configuram com apenas um dos elementos – que já tiveram mais importância – dentro de uma estratégia mais ampla de política industrial.
Ao analisar a evolução da política industrial chinesa desde o último quartel do século passado, este artigo defende a tese de que a busca pela competitividade manufatureira local tem se deslocado gradativamente de um modelo baseado no Made in China para um modelo em célere gestação caracterizado pelo Owned by China – ‘Propriedade da China’.
Como resultado do primeiro modelo, elementos centralizados na estratégia de se acoplar às redes globais de produção via oferta de manufaturados de baixo valor agregado e baixo custo de produção viabilizaram três décadas de pujança econômica. Em paralelo, este modelo também viabilizou a construção de um parque produtivo capaz de atribuir à China a alcunha criada pelo historiador britânico Hobsbawn para se referir à Inglaterra pós Revolução Industrial: a de workshop of the world. São exatamente os desdobramentos deste modelo que até agora têm causado inquietações em diversos policy makers do mundo todo, inclusive naqueles de países periféricos.
No entanto, parece-me cada vez mais que com a emergência do modelo Ownedby China – referenciado indiretamente inclusive em documentos do Partido Comunista – os objetivos da política industrial chinesa têm se deslocado gradativamente do binômio baixos custos / montagem de produtos de terceiros para uma estratégia que viabilize não só a construção de players globais como a também a de marcas internacionais de propriedade de empresas chinesas.
É exatamente neste cenário que se pode entender o movimento recente de crescimento substancial do IDE chinês, em paralelo à consolidação crescente, em escala global, das empresas constituintes do National Team local (formado por mais de uma centena de empresas com escalas gigantescas), as quais são por excelência os agentes executores da política industrial local.
Como resultados apenas iniciais deste modelo baseado no Owned by China, segundo dados do World Investment Report da UNCTAD, em 2013 a China já ocupava o terceiro lugar entre os países que mais realizaram IDE, atrás apenas de EUA e Japão.
Ainda a título de ilustração, um dos desdobramentos desta ascensão pode ser notado quando se analisa o número de empresas chinesas entre as maiores do mundo nos rankings elaborados por publicações como Forbes. Segundo ranking de 2014 desta publicação, que leva em consideração uma ponderação de variáveis como valor de mercado em bolsa, receitas, lucros e ativos totais, as três primeiras colocadas eram chineses, assim como cinco das dez primeiras.
Adicionalmente, além de possuir 207 empresas entre as 2000 listadas – atrás apenas de EUA e Japão, com 564 e 225 respectivamente – apenas em 2014, 25 empresas chinesas integrarama lista pela primeira vez.
Vale lembrar que neste cenário em que as empresas chinesas expandem seus investimentos em busca da construção de capacitações produtivas, tecnológicas, financeiras e de marketing nos principais mercados globais, o papel desempenhado pelo Yuan é muito mais complexo do que aquele observado entre as décadas de 1980 e 2000 e criticado abertamente pelos policy makers internacionais.
Assim, ao mesmo tempo em que a manutenção de uma taxa competitiva é necessária para viabilizar as exportações de manufaturas Made in China, um movimento de valorização seguro e gradual do yuan no longo prazo – que já se iniciou desde 1995, quando se analisa a taxa real efetiva em relação ao dólar, e se acentuou a partir de meados dos anos 2000 – contribui para reduzir os preços dos ativos internacionais em moeda local e assim viabilizar as estratégias de investimento global previstas pelo PCC para o modelo Ownedby China.
No entanto, apesar do aparente sucesso desta estratégia de inserir empresas chinesas em elos mais nobres das cadeias globais de valor, potencializando assim seu processo de catching up e sua capacidade de apropriação de valor, ainda restam dúvidas quanto aos espaços passíveis de contestação por parte do capital chinês em um cenário de crise prolongada nas economias centrais e de recrudescimento da concentração e da concorrência entre os oligopólios globais já estabelecidos.
Em síntese, apesar de ainda não ter sido compreendido em sua totalidade, o modelo Owned by China está em rápida gestação e, como sugerem os debates recentes no Congresso Americano, em um cenário de uma possível semi-estagnação de longo prazo das economias centrais as reações à agressiva política industrial chinesa não parecem contar com a mesma complacência dos anos 2000.
- Antônio Carlos Diegues é doutor em Economia pelo IE-Unicamp e professor adjunto III do Departamento de Economia da Universidade Federal de São Carlos
03/03/2015
https://www.alainet.org/pt/articulo/167961
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