O retrocesso civilizatório proposto pela CCJ na câmara
- Análisis
A chegada de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) ao comando da Câmara dos Deputados foi muito mais do que uma medida de rebeldia de grupos reacionários do Parlamento, mas o primeiro exemplo de que estamos diante da ameaça de um retrocesso civilizatório que é defendido pelos referidos grupos.
Cunha deu vida a diversos processos superados no tempo, como a PEC da Bengala, que amplia o mandato de membros do Supremo Tribunal Federal, a PEC do patrimonialismo eleitoral, que defende o financiamento privado de campanhas, dá suporte ao reacionário Estatuto da Família, Projeto de Lei homofóbico defendido por determinados religiosos fundamentalistas e milenaristas, defende o fim do regime de partilha na exploração do Pré-sal e o retorno da política de concessões, o que favorecia o interesse do capital privado internacional, dentre outras medidas tipicamente reacionárias.
Pois esse movimento reacionário deu mais um passo esta semana, com a aprovação da PEC 171, que propõe a redução da idade da imputabilidade penal de 18 para 16 anos, pela Comissão de Constituição Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados. Na prática, no momento, não temos nenhuma mudança efetiva, pois o projeto deverá trilhar os caminhos do regimento do Congresso e, com absoluta certeza, caso tenha seja aprovado pela maioria, será derrubado por Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal por razões que apontaremos adiante.
Ocorre que a mensagem passada pelos congressistas à sociedade vai muito além do desconhecimento do nosso sistema jurídico, inclusive das regras de penalização de jovens por condutas ilegais. Trata-se de um retorno ao medievalismo, de um retrocesso civilizatório e de uma falta de preocupação com a recuperação dos menores infratores.
Prova disso é que dos 54 países que reduziram a idade de imputabilidade penal, nenhum observou redução da criminalidade, ao contrário. Aliás, dois países com uma Democracia consolidada, Alemanha e Espanha, voltaram atrás nesta decisão, diante da absoluta ineficácia.
Assim, enquanto o mundo debate a construção de instrumentos alternativos de combate à violência criminal, alguns parlamentares brasileiros inflam medidas medievais e ultrapassadas.
Sob o ponto de vista da antropologia, não existe uma definição exata sobre qual o momento que deu início àquilo que chamamos de civilização humana, mas há uma certeza de que este processo se deu com a afirmação de valores éticos e morais que permitiram o nosso convívio em sociedade, como o respeito aos mortos, por exemplo.
Pois esse crescimento civilizatório foi se consolidando ao longo dos anos, com a definição de uma série de direitos e garantias considerados como fundamentais, como o devido processo legal, consagrado ainda na Grã-Bretanha Medieval, por meio da Carta do Rei João Sem Terra. Posteriormente, as Declarações Francesa e Americana de Direitos Humanos consagraram um elenco de valores que passou a ser ampliado ao longo dos anos por meio das lutas políticas dos grupos oprimidos, ou por meio de Convenções Internacionais.
A consagração de direitos, valores e garantias é, portanto, uma etapa evolutiva do processo civilizatório, que demonstra a capacidade dos seres humanos de reconhecerem nos outros, semelhantes, iguais ou cidadãos e cidadãs, uma pessoa com os mesmos direitos, inclusive das mais comezinhas garantias de dignidade. Visão esta que hoje tem sido ampliada pelos juristas mais avançados às outras espécies.
Desta forma, quando retrocedemos na defesa de direitos, temos, indiscutivelmente, um retrocesso civilizatório, e a imagem assombrosa de corpos de seres humanos empilhados nos campos de concentração nazista, numa conduta que à época foi chancelada pelo Estado, são o exemplo mais gritante do massacre a qualquer valor ou dignidade.
O nazismo e o holocausto são os exemplos mais grotescos da barbárie, e mesmo após o fim desta página ofensiva à humanidade, somos bombardeados todos os dias por atos de violência praticada por aqueles que deveriam defender direitos. São exemplos claros a violência contra os negros nos Estados Unidos (ainda hoje exercitada), as várias chacinas tribais realizadas na África e impulsionadas por comerciantes de armas, pedras preciosas e drogas, os bombardeios à Gaza, ao Afeganistão e à Síria, dentre outros.
O mais grave desses exemplos é a presença negativa do Estado em várias dessas ações, assim como ocorreu nos exemplos nacionais de Eldorado dos Carajás, Carandiru, Candelária, ou nos vários crimes praticados pela ditadura.
Pois no momento em que o Brasil dá um passo adiante, ainda que tímido, na denúncia de violação de direitos humanos, com a publicação do Relatório da Comissão da Verdade em dezembro do ano passado, alguns Deputados dão a demonstração clara de que precisamos avançar ainda mais na nossa afirmação civilizatória.
Além do evidente retrocesso social, vedado por nosso ordenamento constitucional, a medida aprovada pela CCJ da Câmara parte de uma premissa mentirosa. Não é verdade que adolescentes menores de 18 anos não são punidos, no Brasil, por suas condutas infracionais. Jovens podem sim sofrer punições, inclusive com a segregação de liberdade, e desde os 12 anos de idade. O nosso ordenamento jurídico é um dos que permite o uso da segregação de liberdade para populações mais jovens.
Nesse sentido, a afirmação expressa da UNICEF em 2007:
“Diferentemente do que alguns jornais, revistas ou veículos de comunicação em geral tem divulgado, a idade de responsabilidade penal no Brasil não se encontra em desequilíbrio se comparada à maioria dos países do mundo. De uma lista de 54 países analisados, a maioria deles como discutido a seguir, adota a idade de responsabilidade penal absoluta aos 18 anos de idade, como é o caso brasileiro. No entanto, tem sido fonte de grande confusão conceitual o fato de que muitos países possuam uma legislação especifica de responsabilidade penal juvenil e que portanto, acolham a expressão penal para designar a responsabilidade especial que incide sobre os adolescentes abaixo dos 18 anos. Neste caso, países como Alemanha, Espanha e França possuem idades de início da responsabilidade penal juvenil aos 14, 12 e 13 anos. No caso brasileiro tem início a mesma responsabilidade aos 12 anos de idade”. [SIC]
Contudo, tais jovens deveriam ser submetidos a um processo socioeducativo, receber tratamento diferenciado em razão da idade e, principalmente, ficar segregados dos infratores adultos.
O regime punitivo do Estatuto da Criança e do Adolescente é, inclusive, mais rigoroso do que as regras da Lei de Execuções Penais. Nele não existe nem progressão nem detração, embora exista uma limitação temporal das penas reclusivas a três anos. Assim, se alguém é condenado por homicídio comum simples, art. 121 do Código Penal, sem nenhuma agravante, recebe pena de 6 anos. Com 1/6 da pena cumprida e bom comportamento, pode pedir progressão de regime. Chegando, dentro de um rito adequado, ao regime aberto em menos de 3 anos.
O Jovem condenado pelo ECA fica três anos na Fundação Casa segregado na sociedade, onde deveria receber o tratamento adequado para ressocialização, algo que não acontece na maior parte dos Estados, não há detração (desconto da pena por tempo de trabalho, por exemplo), muito menos progressão de regime. A pena de segregação de liberdade começa e determina desta forma no Estatuto da Criança e dos Adolescentes, algo que é questionável como política de ressocialização.
Portanto, o que os Parlamentares reacionários pretendem é acabar com a segregação prisional entre jovens e adultos, e aumentar o que chamamos de intercâmbio do crime. Não nenhuma preocupação com ressocialização, mas com mera condenação e punição, típica mentalidade atrasada, despreocupada com qualquer política criminal ou com o combate efetivo à violência.
Mas existem outras motivações a conduta desse grupo político para propor tamanho retrocesso. Primeiro, a violência é um grande negócio. Além da indústria de armas e da segurança privada, que são alimentadas marketing do crime realizado diariamente pela mídia, especialmente jornais televisivos, temos o crescente lobby para a privatização dos presídios, o que garante público e mão de obra barata para determinados setores da economia. Trata-se de uma ação de fracassou nos Estados Unidos, exatamente pelo conflito entre interesse público e privado e pela crescente corrupção administrativa e política, mas que ainda alimenta desejos de determinados governantes dos Estados e de muitos parlamentares.
Assim, a redução da idade de imputabilidade penal pode resultar num público maior para a lucrativa indústria da segregação de liberdade, ampliando o leque dos financiamentos privados de campanhas.
A segunda motivação da PEC 171 é o entendimento de que comunidades pobres, especialmente jovens, devem viver segregadas. Não pensem que são os traficantes de drogas da classe média alta que serão objeto da ação punitiva do Estado. Estes recebem tratamento diferenciado pela própria mídia, que chama tais criminosos abonados simplesmente de “jovens de classe média”. O alvo da ação dos parlamentares reacionários é exatamente o criminoso social, que uso o crime como estratégia de sobrevivência, como o “aviãozinho do tráfico de drogas”, o “vendedor de DVD pirata”, o assaltante de supermercado e outros infratores de menor potencial ofensivo, e que abarrotam os desumanos espaços onde ficam “internados”.
A absoluta exceção são os jovens infratores pratica crimes graves, como homicídios, mas estão submetidos às medidas socioeducativas previstas no ECA. Aos demais, cabe apenas a progressão na carreira do crime pela falta de oportunidades concretas ou morrer nas ações de grupos de extermínio. Se menos de 1% dos jovens infratores praticam crimes violentes, ou seja, são a absoluta exceção, mais de 25% das vítimas de crimes violentos no Brasil são jovens, sendo a grande maioria negros e pobres.
A defesa da PEC 171 encontra guarida exatamente no pensamento elitista e discriminatório, que condenou a reação democrática dos jovens de periferia à exclusão dos espaços de lazer, quando estes passaram a frequentar os shopping-centers das grandes cidades.
Além disso, se o referido projeto normativo possui motivações absolutamente condenáveis sob o ponto de vista ético, outro dado inequívoco é que a mesma é absolutamente inconstitucional!
A regra da imputabilidade penal está expressa no art. 228 da Constituição Federal, portanto, é um direito fundamental, assim como é o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225), e nenhum está no elenco dos arts. 5º, 6º e 7º. No âmbito de uma interpretação sistemática, método hermenêutico consagrado pelo Supremo Tribunal Federal, todos são direitos fundamentais.
Existe um grupo minoritário de pensadores que tenta limitar o nosso elenco de direito fundamentais ao art. 5º, mas esta metodologia meramente exegética não encontra mais guarida no nosso direito.
Pois a Constituição Federal define que os direitos e garantias fundamentais (direitos e garantias individuais, no texto da Carta Régia), são cláusulas pétreas, e insuscetíveis de mudança por meio de Emenda Constitucional (art. 60, § 4º, IV).
Assim, a PEC 171 é materialmente inconstitucional, pois viola cláusula pétrea e afeta outro princípio que comanda a nossa Norma Fundamental, que é a proibição do retrocesso social, ou da “evolução reacionário”, conceito jurídico utilizado pelo constitucionalista português Joaquim José Gomes Canotilho. Logo, o nosso regime constitucional veda qualquer ofensa a direito ou garantia fundamental.
No mesmo sentido um dos mais notáveis juristas do país e Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso:
“(…) o princípio da proibição de retrocesso decorre justamente do princípio do Estado Democrático e Social de Direito; do princípio da dignidade da pessoa humana; do princípio da máxima eficácia e efetividade das normas definidoras dos direitos fundamentais; do princípio da proteção da confiança e da própria noção do mínimo essencial.”
Ora, se a dignidade da pessoa humana é a regra, e fundamento do nosso regime jurídico (art. 1º, III, CF), a sua subversão é medida claramente inconstitucional, assunto que é do pleno conhecimento de qualquer jurista sério e, muito provavelmente, da maioria dos membros da CCJ da Câmara.
Então por que tais votação aconteceu, e aqui entro numa análise baseada em fatos recentes. Os parlamentares que apoiaram a PEC 171 fazem parte de um grupo seleto de políticos que possui imenso desprezo à nossa jovem Democracia, e que carregam no seu ânimo um ímpeto claramente golpista. Para este grupo, pisotear a Constituição é uma ação sem a menor relevância, pois alimentam a sua vida política insuflando preconceitos e valores reacionários. São exemplo do que há de pior na política brasileira, motivo pelo qual não é por acaso que o autor do Projeto de Emenda, “apresentado na década de noventa”, é o Ex-Deputado Federal Benedito Domingos, do Partido Progressista (DF) que, curiosamente, encerrou sua vida política após ter o mandato de Deputado Distrital cassado no âmbito escândalo do mensalão do DEM e da operação Caixa de Pandora.
- Sandro Ari Andrade de Miranda, advogado, mestre em ciências sociais.
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