Uma declaração dos Direitos Camponeses como garantia para a Soberania Alimentar

06/04/2015
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 mujeres en el campo cuba
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Artigo publicado em espanhol na Revista América Latina en Movimiento No. 502: Agricultura Campesina para la Soberanía Alimentaria 19/03/2015

A III Conferência Internacional da Via Campesina, realizada em Brasília, que aprovou a “Carta dos Direitos das Camponesas e dos Camponeses”, foi a mudança de etapa num processo que começou junto com o século XXI, com a expectativa de construir una Convenção Internacional dos Direitos Camponeses, sob a feroz ofensiva neoliberal que assolava o mundo inteiro.  A V Conferência, levada a cabo em Maputo, África, em 2008, ratificou o mesmo e avançou em definir os mecanismos para interagir na Organização das Nações Unidas (ONU).

 

Na luta pela Terra, nós das organizações camponesas, estamos sendo perseguidos e criminalizados, com centenas de dirigentes encarcerados e assassinados.  Nós resistimos à globalização neoliberal com ações de massa, pacíficas, mas contundentes, impedindo desalojamentos, realizando ocupações de terras improdutivas e de latifúndios, mobilizando as ruas, ocupando edifícios públicos para sermos ouvidos, sempre abertos ao diálogo para a construção de alternativas, entretanto com a certeza de que a terra não se negocia.  Do Banco Mundial, da FAO e da OMC divulgaram-se conclusões que pretendiam responsabilizar pela fome o “atraso tecnológico” e a ascensão dos camponeses e decretaram “O Fim do Campesinato”, como circunstância do “Fim da História” de Fukuyama.  A proposta do capital para a agricultura foi a revolução verde em sua versão transgênica.

 

Hoje, já com mais de três anos de discussão formal no âmbito do Conselho de Direitos Humanos da ONU se consolida o processo em direção a uma “Declaração dos direitos dos camponeses e outras pessoas que trabalham no meio rural”, com vista à consecução de uma Declaração nas Nações Unidas e construção de uma Convenção Internacional dos Direitos Camponeses, para ampliar e hierarquizar direitos existentes e consolidar novos direitos.  Um caminho que os povos indígenas e de forma similar as organizações das trabalhadoras e dos trabalhadores já percorreram.  Embora a caracterização teórica dos sujeitos às vezes pode se sobrepor a indígenas, trabalhadores ou camponeses, existem na atualidade inumeráveis situações que mantém vazios de jurisprudência em relação ao respeito dos direitos humanos segundo a cultura e a identidade.  O direito à terra, por exemplo, pode ser um aspecto determinante para o desenvolvimento da vida e de muitos outros direitos.  Assim, uma camponesa, que se sente parte/filha da terra e da natureza, ao ser despojada da mesma, perde parte do seu ser, além de seu lugar de estar, fica incompleta, com sua identidade ferida.  Tanto as observações gerais dos DESC (direitos económicos, sociais e culturais) como as recentes Diretrizes Voluntárias da Terra que aprovou a FAO, vão nesse sentido, contudo, ao serem somente orientações, os estados não estão obrigados a cumpri-las.  O poder judicial, geralmente ligado ao poder econômico, desconhece todos esses instrumentos.

 

Na atualidade, nós, camponesas e camponeses, estamos expostos a violações sistémicas de nossos direitos.  O capital financeiro da mão de empresas transnacionais desencadeou una grande ofensiva para subordinar os bens naturais, a terra e a agricultura, aos interesses da banca internacional, destruindo mercados locais, desalojando camponeses, arrasando milhões de hectares de bosques, provocando deslocamentos e migrações, gerando a maior crise alimentar da história da humanidade. A mercantilização dos alimentos e a concentração do setor agroalimentar permitem aos grupos corporativos manipular os preços e regular o abastecimento de alimentos nos mercados, ocasionando, em muitos casos, que esses interesses condicionem e pressionem os governos, lesionando seriamente as democracias.

 

Em 2012, o governo da Bolívia, sob a presidência de Evo Morales, que participou do inicio da CLOC Via Campesina, assumiu o desafio, apresentando o “Projeto de declaração dos direitos camponeses e de outras pessoas que trabalham nas zonas rurais” no Conselho de Direitos Humanos, conseguindo uma resolução que deu início a um processo formal e a criação de um “Grupo de Trabalho” (GT).

 

Em 2014, uma nova resolução do Conselho, patrocinada por 11 governos, entre eles os da Bolívia, Cuba, Equador, Argentina, Filipinas, África do Sul, ratificou a necessidade dessa declaração.  Em fevereiro de 2015, o GT apresentou um novo projeto.  No preâmbulo estabelece: “Reconhecendo a contribuição passada, presente e futura dos camponeses para a conservação e melhora da biodiversidade e para assegurar a soberania alimentar, fundamentais para o sucesso dos objetivos de desenvolvimento convencionados internacionalmente (...). Reconhecendo que, a fim de garantir a soberania alimentar das pessoas, é fundamental respeitar, proteger e promover os direitos reconhecidos nesta Declaração (...)”.

 

Em seus artigos, ratifica os direitos que já existem em outras declarações, como por exemplo, o direito à vida, ao trabalho digno, à saúde, e se explicitam novos direitos para os camponeses e obrigações dos estados a respeito.  Entre eles, o direito à terra, à propriedade coletiva, às sementes, aos meios de produção, ao acesso aos mercados e preços justos, à agua de consumo e de produção, ao uso e gestão dos bens naturais, e a não serem prejudicados por agrotóxicos e transgênicos.

 

O diretor da FAO, Graziano da Silva, também avaliou a necessidade de uma declaração dos Direitos Camponeses, mediante uma videoconferência em uma das reuniões de GT, nas quais explicou o papel estratégico da agricultura camponesa na luta contra a fome.

 

Na jornada, foram somando-se aliados importantes como a UITA (União Internacional de Trabalhadores Agrícolas), CITI (Conselho Internacional de Tratados Indígenas), WAMIP (Aliança Mundial de Povos Indígenas Móveis), WFFP (Fórum Mundial de Povos Pescadores), FIMARC (Federação Internacional de Adultos Rurais Católicos), junto a ONGs como FIAN, CETIM, CELS, que acompanham o processo.  Desta maneira já não é apenas uma proposta da Via Campesina, mas uma petição de uma grande rede de organizações populares de produtores de alimentos.

 

Embora haja resistência dos que defendem os interesses das corporações, o processo conta com o apoio do Grupo América Latina y el Caribe (GRULAC) e do G77 + China, assim que o debate daqui para a frente vai se centrar no conteúdo, já que se assumiu mais do que certa a necessidade da Declaração.

 

É por isso que concentraremos a pressão e negociação em elementos estratégicos como o direito à terra, a função social da terra, e a necessidade de profundas reformas agrárias como obrigações dos estados assim como a definição do tema da declaração, a necessidade de garantir a vida digna no campo, em termos de serviços, saúde, educação etc...

 

A atual crise geopolítica, na qual os Estados Unidos vai perdendo paulatinamente a hegemonia global, tem permitido um diálogo maior para a Governança Internacional, assim como a disputa de juízos e acordos com respeito às soluções para a crise alimentar e climática.  Todavia, para a Via Campesina, é claro que enquanto as instituições e as economias nacionais ou regionais estejam controladas em maior medida pela burguesia, o plano de ação de movimento popular continuará requerendo uma luta ativa e frontal contra as corporações e capital financeiro, sendo a principal ferramenta dos povos a ação direta, a organização e a luta de massas.  Esta Declaração será uma importante contribuição neste sentido, em um momento histórico da América Latina, onde é estratégica a defesa dos processos populares, democráticos e os direitos conquistados, e isso só é possível com o aprofundamento das transformações. (Tradução: Sergio Barboza - Coletivo Chasqui)

https://www.alainet.org/pt/articulo/168711?language=es
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