As “pedaladas” de Sérgio Moro contra a constituição

27/04/2015
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
Juiz Sérgio Moro recebendo prêmio de Jornal Roberto Marinho, dirigente do Jornal “O Globo” sergio moro
-A +A

Desde a Declaração de Virgínia e da Revolução Americana, ambas em 1776, ainda no final do século XVIII, os conceitos de Estado de Direito e de Sociedade Democrática presumem a defesa de direitos humanos, ou, na terminologia mais aceita pela atual doutrina jurídica, a proteção dos direitos fundamentais.

 

Obviamente, a presença de um elenco destes direitos, normalmente inscritos na Carta Constitucional, não garantem uma Democracia plena, tanto que muitos regimes ditatoriais também chegaram a outorgar Constituições que formalmente protegiam uma série de direitos, mas nunca chegaram a respeitá-los no mundo real.

 

Um exemplo é Constituição do Brasil Império, de 1824, que previa a proteção tanto o direito à liberdade como do direito à igualdade. Mesmo assim, mais da metade da população era formada por escravos, num vergonhoso sistema racista imposto pela elite colonial dominante, regime este que somente perdeu existência formal em 1888, com a assinatura da Lei Áurea.

 

Além disso, apenas uma parcela ínfima da população, formada essencialmente por ricos latifundiários, tinha direito a votar no sistema eleitoral censitário outorgado por D. Pedro I. O “povo”, detentor da soberania, conforme lecionam tanto o Abade Sieyès como o inglês John Locke, estava completamente alijado do processo político, e num eventual risco aos interesses do monarca absolutista, este não precisava ter medo de utilizar o seu Poder Moderador.

 

As mulheres somente tiveram reconhecido o seu direito ao voto reconhecido na 3ª Constituição do país, em 1934, direito este que foi cassado para todos com a publicação da Carta de 1937, também outorgada.

 

As regras constitucionais impostas pelo Golpe Militar, em 1964 e 1967, também previam o direito à igualdade e à liberdade como garantias individuais. Mas estes nunca foram respeitados, tanto que o voto direto somente foi alcançado com a abertura política, especialmente na eleição presidencial de 1989, e um grande grupo da população foi preso e torturado nos porões do DOPS e do DOI/CODI sem direito a julgamento e, muito menos, ao contraditório.

 

Aliás, a maioria dos presos e torturados pelo regime ditatorial cometeram apenas o “crime de exercer as suas liberdades de expressão e de opinião”. Apenas os delatores infiltrados pelas forças armadas gozavam de privilégios especiais, e sobreviviam acobertados pela força das armas militares.

 

Muitas cidadãos e cidadãs que viveram sob a égide do controle exercido pelo Golpe Militar, com forte apoio das classes dominantes, notadamente dos meios de comunicação de massa, nunca tiveram acesso a informações, especialmente à imensa orgia de corrupção praticada pelos militares e por seus seguidores.

 

A prática da corrupção no Brasil encontrou seu ápice durante a Ditadura Militar e, em termos absolutos, encontrou semelhança em volume apenas durante a onda de privatizações da década de noventa. Nos dois casos, não observamos investigação, nem prisões, muito menos denúncias públicas pelos grandes meios de comunicação.

 

Muitos dos criminosos que operavam as torturas e homicídios praticados pelo regime militar ainda hoje vivem livres e recebem polpudas pensões de aposentadoria pagas pelo Estado, protegidos pela Lei de Anistia e por uma questionável decisão do Supremo que validou as regras que isentaram de pena a tortura, “crime contra a humanidade”, praticada pelos agentes das forças militares e das agências de segurança.

 

As mesmas pessoas que operavam os esquemas de corrupção dos governos militares ainda surgem como principais responsáveis por este tipo de crime, mesmo depois do final da ditadura. Paulo Roberto da Costa, por exemplo, “delator da Operação Lava-Jato”, e um dos novos ícones da mídia, tornou-se funcionário da Petrobrás em 1979, sem concurso público, e lá ficou até a prisão pela Polícia Federal, quando esta começou a realmente investigar os esquemas de corrupção, sem a trava do “Engavetador Geral da República”.

 

Contudo, na plena vigência da Constituição Democrática de 1988, a investigação e a produção de provas fundada em elementos de natureza técnica ou cientifica foram substituídas pela “prisão temporária arbitrária e seletiva”, e pelo incentivo à “deleção premiada”. Curiosamente, as mesmas medidas de condução processual adotadas pela ditadura militar.

 

O principal artífice desse processo absolutamente inconstitucional, e totalmente questionável de condução jurisdicional é o juiz da 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba, Sérgio Moro, que chegou a receber prêmio “Faz a Diferença”, como “Personalidade do Ano”, pago pelo Jornal “O Globo”, empresa cujo dirigentes foram apontados nas investigações do Swissleaks, um dos maiores esquemas de lavagem de dinheiro do planeta, e cuja sucursal gaúcha, a Rede Brasil Sul – RBS, é investigada pela prática de corrupção ativa na operação Zelotes da Polícia Federal.

 

É muito estranho o fato de um juiz que é pintado por determinados grupos da imprensa como baluarte na luta contra a corrupção seja premiado e aceite um prêmio pago por uma empresa que também é investigada por corrupção. Apenas três justificativas podem ser creditas a este fato: ou uma conduta seletiva nas suas práticas, ou apreço pelos holofotes, ou ambas.

 

Entretanto, mesmo que o juiz Moro fosse uma pessoa modesta, e trabalhasse com o recato e decoro recomendável ao ocupante do cargo, o seu maior problema reside exatamente na forma de condução processual, e no questionável sistema que utiliza para obtenção das suas “delações premiadas”.

 

A delação premiada não tem nenhum valor se não for comprovada por outros meios probatórios, sejam estes científicos, documentais ou testemunhais. Para obter provas testemunhais, num esforço incomum do Ministério Público Federal no Paraná para requisitar a detenção de possíveis responsáveis por “crimes de colarinho branco”, há uma verdadeira orgia de prisões temporárias e preventivas com fortes traços de coação jurídica.

 

Em todos os casos o roteiro é o mesmo. Primeiro a prisão é decretada e os dados são liberados para a imprensa fazer a cobertura, especialmente a Rede Globo, canal que teve acesso privilegiado a dados sigilosos durante toda a investigação, sem nenhuma investigação da Corregedoria da Justiça Federal. Depois da prisão, o investigado é “convidado” ou “induzido” a formalizar um acordo de deleção premiada. Formalizadas as delações e saciado o interesse do gestor do processo, os réus são soltos, ao ponto do principal acusador do Senador Mineiro Antônio Anastasia (PSDB) na Operação Lava-Jato, o Sr. Jayme Alves de Oliveira Filho, o “Careca”, ter sumido logos depois da liberação pelo juiz, não sendo mais encontrado pela Polícia Federal, numa das raras situações onde prevaleceu uma menos rigorosa do juiz responsável pelo processo e da Procuradoria da República Paranaense.

 

Ou seja, não são as provas que conduzem às prisões, mas o contrário, numa incrível coincidência com as práticas da ditadura militar, e numa inquestionável ofensa aos “direitos à presunção da inocência” e à “não produção da prova contra si mesmo ou de confessar-se culpado”. O primeiro é um direito fundamental expresso diretamente na Carta Constitucional de 1988. Já o segundo está consagrado como garantia no Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969), que também possui força constitucional (art. 5º, § 2º, CF/88).

 

Aliás, nesse sentido e de forma consolidada, o Supremo Tribunal Federal:

 

Precedentes. Posição hierárquica dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento positivo interno do Brasil: natureza constitucional ou caráter de supralegalidade? Entendimento do relator, Min. Celso de Mello, que atribui hierarquia constitucional às convenções internacionais em matéria de direitos humanos. (…) Hermenêutica e direitos humanos: a norma mais favorável como critério que deve reger a interpretação do Poder Judiciário. Os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar um princípio hermenêutico básico (tal como aquele proclamado no art. 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos), consistente em atribuir primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa humana, em ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica. O Poder Judiciário, nesse processo hermenêutico que prestigia o critério da norma mais favorável (que tanto pode ser aquela prevista no tratado internacional como a que se acha positivada no próprio direito interno do Estado), deverá extrair a máxima eficácia das declarações internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, como forma de viabilizar o acesso dos indivíduos e dos grupos sociais, notadamente os mais vulneráveis, a sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana, sob pena de a liberdade, a tolerância e o respeito à alteridade humana tornarem-se palavras vãs. Aplicação, ao caso, do art. 7º, n. 7, c/c o art. 29, ambos da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica): um caso típico de primazia da regra mais favorável à proteção efetiva do ser humano.” (HC 91.361 Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 23-9-2008, Segunda Turma, DJE de 6-2-2009.) (grifamos)

 

Desta forma, é evidente a presença de inconstitucionalidades na condução processual oferecida pelo juiz federal paranaense no processo da Operação Lava Jato, através da adoção de uma postura que possui assustadora similaridade com a ação dos torturadores da Inquisição e da Ditadura Militar Brasileira.

 

Ocorre que na Inquisição de Sérgio Moro não sabemos ainda quem ganha. O certo é que os maiores derrotados são a Democracia, a Constituição e os Direitos Fundamentais que protegem todos os cidadãos, e não apenas os investigados. Selecionar quem deve ter seus direitos protegidos não uma conduta admissível a qualquer jurista respeitável, mas uma ação típica de ditadores!

 

Sandro Ari Andrade de Miranda, advogado no Rio Grande do Sul, mestre em ciências sociais.

 

https://sustentabilidadeedemocracia.wordpress.com/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/169224
Subscrever America Latina en Movimiento - RSS