Voto distrital e o “mofo” da república velha
- Opinión
Um velho sonho dos partidos conservadores brasileiros volta ao cenário político, carregado de mofo, de forma pastosa, e conduzido por apaixonados pelo paroquialismo e pelo personalismo político como Eduardo Cunha, que é o “voto distrital”.
E aqui, não falo do voto distrital misto, adotado na Alemanha, mas do voto distrital puro, que restringe as possibilidades de participação e representação política, na medida em que favorece o poder dos chefes e coronéis locais.
Atualmente, o nosso sistema eleitoral conta com o modelo proporcional, que apesar dos seus defeitos, garante a participação de cada forma de expressão política no Congresso, através do atingimento de coeficientes eleitorais. Há defeitos? Sim! Mas o principal defeito ainda é a convivência com o precário sistema de listas abertas, uma herança nefasta do patrimonialismo político que só existe no Brasil e diminuta Finlândia. O problema é que o país nórdico não adota financiamento privado de campanhas, transformando o nosso sistema eleitoral num modelo exclusivo em termos de defeitos.
Nos sistemas distritais, o país é esquartejado em diversos pequenos fragmentos de poder onde os candidatos são eleitos em sistemas majoritários, tal qual uma eleição para Prefeito. É possível a construção de distritos pequenos, médios e grandes e, ao contrário do que ocorre nos sistemas proporcionais, quanto maior o distrito, maior é o exercício do poder econômico, portanto, piores são os efeitos do voto distrital. Assim, não é de estranhar que a turma de Eduardo Cunha (PMDB-RJ), incluindo os demotucanos, tenham preferido a cantilena do “distritão”.
Nos sistemas distritais a política perde a mediação ideológica dos partidos, e passa a ser regida pelos interesses privados de candidatos e de grupos políticos regionais, diminuindo a identidade política nacional e regional, e formando verdadeiros “currais eleitorais”.
Se alguém quiser saber como funciona uma eleição em distritos, recomendo assistir ao filme “Gangues de Nova York”, do brilhante Martin Scorsese, onde fica evidente um fato concreto, que foi o aprisionamento histórico de determinados núcleos do eleitorado americano por grupos como a máfia, gangues e outros assemelhados.
É por isso que todos os países que adotaram o sistema distrital puro hoje questionam a sua legitimidade, pois ao contrário de aproximar os eleitores dos candidatos, como argumentam os seus defensores, os distritos abriram espaço para o predomínio do poder econômico, para o personalismo de alguns candidatos, e para esmagamento dos anseios de representação do eleitorado.
Pior do que isto, o modelo distrital puro resultou em verdadeiras injustiças eleitorais, e na sub-representação política ou não representação de parcelas significativas da população. O exemplo do partido comunista inglês é gritante! Vinculado aos sindicatos e outras forças populares, o referido partido possui bases espalhadas nos centros industriais e na classe média urbana, obtendo um percentual histórico de 20% dos votos do colégio eleitoral global do país. Contudo, como os votos ou são concentrados em regiões com grande densidade populacional, ou espalhados em várias regiões, o partido nunca ultrapassa o número de 5% dos assentos na Câmara dos Comuns. Num regime proporcional, isto não ocorreria.
Mesmo o principal ícone do voto distrital, que são os Estados Unidos, sofrem com problemas evidentes causados pelo modelo, notadamente o bipartidarismo, outro vício dos sistemas distritais. A redução do número potencial de programas representados no Parlamento deve desqualificar o processo eleitoral, e reduzir a possibilidade de construção de alternativas. Provavelmente, se o Brasil tivesse um sistema dominado pelo voto distrital, ainda viveríamos da rivalidade entre o MDB e a ARENA – “partido que dizia sim à ditadura”, e, respectivamente, o que “dizia sim senhor” – enfraquecendo a nossa evolução democrática.
Por fim, e não menos importante, não podemos esquecer que o Brasil já teve, no seu passado histórico, sistema eleitoral com voto distrital, de 1824 a 1930, e que este foi um total fracasso, tendo como resultados a adoção de mecanismo como monopartidarismo (em razão do domínio do Partido Republicano, no pós 1891), a política das oligarquias e do “Café com Leite”, o “voto de cabresto” e os “currais eleitorais” da República Velha.
A República Velha, aliás, é exatamente o que se espera com a proposta da contrarreforma política que está sendo imposta à Câmara dos Deputados por Eduardo Cunha (PMDB-RJ), pela bancada ruralista, pelo segmento do fundamentalismo religioso, pelos herdeiros da ditadura militar, e pelos defensores do “poder econômico” nas eleições.
Todos esperam por um sistema que favoreça interesses patrimonialistas e paroquiais, com retorno do coronelismo dos chefes e oligarquias locais, pelo favorecimento das candidaturas com maior poderio econômico, pelo retorno dos currais do início do século XX, e pela derrubada de iniciativas políticas alternativas de base popular.
Em síntese, a proposta da contrarreforma política nada mais é do que um ato golpista almejado pelo que há de mais reacionário no Estado Brasileiro!
- Sandro Ari Andrade de Miranda, advogado, mestre em ciências sociais
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