Celso Amorim: o chanceler otimista
- Análisis
O ex-ministro de relações exteriores, Celso Luiz Nunes Amorim. Foto: Felipe Barra
O ex-ministro de relações exteriores fala com exclusividade ao Brasil de Fato sobre a política externa “altiva e ativa” do Brasil, o papel da imprensa e as denúncias da suposta ideologização dos temas internacionais pelo Estado brasileiro.
Do dia 1o de janeiro de 2003 a 1o de janeiro de 2011, Celso Luiz Nunes Amorim foi umas das principais vozes, o rosto e a presença brasileira fora do território tupiniquim. Sob seu comando, a política externa brasileira seguiu um caminho claro e ousado: ser ativa e altiva.
“Ativa porque o Brasil não ia temer tomar ações e iniciativas, e altiva porque nós não íamos nos submeter a agendas traçadas por outrem se nós não concordássemos”, explicou nessa entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, em seu apartamento no Rio de Janeiro.
A ousadia de Amorim pode ser justificada por conta de seu otimismo. No seu mais recente livro, ele aponta que sempre acreditou que “o exercício da diplomacia implica uma atitude deliberadamente otimista, ainda quando a probabilidade de êxito possa parecer relativamente baixa. Com frequência, trata-se de fazer uma 'aposta' na solução negociada, ainda que ela possa envolver algum grau de risco”.
No livro “Teerã, Ramalá e Doha – Memórias da política externa altiva e ativa”, lançado pela Editora Benvirá este ano, o ex-chanceler e ex-ministro da Defesa conta três passagens marcantes da atual diplomacia brasileira e os avanços e dificuldades do país nessa área.
Confira abaixo a entrevista:
Brasil de Fato - No livro, o senhor cita mais de uma vez que é um otimista. O que esse otimismo pode atrapalhar ou ajudar um chanceler?
Celso Amorim - Eu sou otimista, mas não deixo de ter uma dose de realismo. Você não pode ser ingênuo. Quando eu disse isso, eu quis dizer que em todas as decisões políticas tem-se uma certa dose de aposta, você nunca tem certeza, nunca é um cálculo como no final da partida de xadrez, em que você conta as casinhas e vê se vai conseguir fazer o xeque-mate. Entram variáveis diferentes e eu acho que quando existe uma hipótese mais razoável, que é a mais otimista, você deve apostar nela, porque se você apostar contra ela, é certo que não vai ocorrer.
Tanto no caso da Declaração de Teerã [acordo mediado por Brasil e Turquia, sobre o programa nuclear iraniano, em 2010], quanto no caso da Rodada de Doha [negociações da Organização Mundial do Comércio sobre a liberalização do comércio mundial], eu achava que havia uma razoável probabilidade de conseguir o que estávamos buscando e apostei nelas, e não acho que tenha errado totalmente, porque o que está acontecendo atualmente com a negociação dos EUA [no último dia 5 de abril foi assinado um acordo] e o Irã em matéria do programa nuclear iraniano não deixa de ir na esteira daquilo que a gente negociou.
Em relação à Rodada de Doha, que é um assunto que tem muito mais variáveis, hoje nós assistimos novamente uma tentativa de concluir a rodada. Na época do auge da negociação, em 2008, não só eu, mas o comissário europeu Peter Mandelson, com quem eu discordava muito, nós apostamos, junto com o [ex-diretor geral da OMC] Pascal Lamy, de que talvez seria possível concluir, e tentamos até o final, mas não conseguimos. Porém, bem ou mal, ficou um pacote arranjado para quando voltar a ter vontade política, se tentar concluir. Não sei se vai ser possível ou não. Hoje em dia, tenho sobre isso um pensamento mais reservado, porque com várias outras negociações ocorrendo, pode ser que os esforços se dirijam a outro caminho.
Na passagem sobre a Declaração de Teerã o senhor cita uma frase que era como se os Estados Unidos “não aceitassem o sim como resposta”. Qual o senhor acha que foi a dificuldade das grande potências terem aceitado o acordo de Teerã à época?
A política externa norte-americana é muito condicionada pela política interna e por circunstâncias variadas, como o relacionamento deles com a Rússia e a China, e alguns temores exagerados de que Israel poderia fazer. Havia também a preocupação de que o Irã estivesse enganando o Brasil e a Turquia. Só que o que diz o presidente Obama hoje, em relação aos críticos do acordo que eles estão fazendo, é a mesma coisa que nós dizíamos: é um acordo baseado na boa fé, mas também é baseado na possibilidade de verificação. Os três itens principais eram a quantidade de Urânio, o fato de ser colocado fora do Irã e o de ser imediatamente. Eu não sou físico, mas não há nada mais físico do que quantidade, lugar e tempo. O pior que poderia acontecer era o Irã voltar atrás e a ONU aplicar as sanções.
Em algumas passagens do livro, o senhor critica uma postura paternalista do presidente Obama frente ao Brasil, principalmente em oposição a objetividade do presidente Bush…
Não que eu ache a política externa norte-americana paternalista, mas eu comparo as duas atitudes. O Bush, embora ideologicamente estivesse muito mais afastado do Lula que o Obama, tinha uma atitude muito direta, de quem está negociando: “é é, não é não é”. O Obama eu tinha a impressão de ter aquilo de bater no ombro e dizer “olha esse cara é ótimo”, era uma maneira de não nos levar a sério na negociação. Essa é uma impressão subjetiva minha, não houve nenhum momento em que ele agiu de fato dessa maneira, mas certamente ele deu menos atenção a temas do nosso interesse.
Houve um episódio no Haiti, logo depois do terremoto, que os EUA tomaram o aeroporto e começaram a criar dificuldades para os aviões brasileiros descerem. Nós tínhamos tropas lá, e eu liguei para a [Secretária de Estado norte-americana no Governo Bush] Condoleezza Rice pessoalmente e essa questão se resolveu na hora. Eu sentia nela mais interesse na minha opinião e na opinião do Brasil do que eu sentia na [Secretária de Estado de Obama] Hillary Clinton.
Em vários momentos do livro o senhor também critica a postura da imprensa brasileira sobre a cobertura da política externa. O senhor acha que a mídia tem uma postura mais subserviente a Washington?
Eu também não posso generalizar, algumas vezes, a nossa atuação foi muito elogiada por alguns jornalistas. Mas há uma tendência de dizer “não vamos nos meter”. Por exemplo, logo depois da invasão de Gaza eu fui a vários países do Oriente Médio, claro que eu não tinha a pretensão de que o Brasil viesse a mediar sozinho alguma coisa, mas juntar a nossa voz com a de outros países. Eu via que em todos os locais valorizavam a nossa presença, inclusive Israel. Se quisermos simplificar muito, seria o tal do “complexo de vira lata” de que tanto falam. E eu acho que existe um certo conforto da dependência. Como um filho adolescente que está ficando adulto, mas ele sabe que se sair de casa ele vai ter que enfrentar a vida, em casa ele fica restrito, ele não pode fazer certas coisas, mas em compensação ele está no conforto.
Qual a mudança na política com a América Latina? O que você tem a dizer para os que criticam o Brasil por fazer uma política externa ideologizada? E qual sua opinião sobre o Mercosul?
Várias vezes eu ouvi que falar em integração sul-americana como um todo é “cutucar a onça com vara curta”. Até o [ex-presidente brasileiro] Fernando Henrique se queixou comigo. Eu liguei pra ele pra cumprimentá-lo por fazer uma cúpula com os países da América do Sul, ideia que já vinha da época do [ex-presidente] Itamar Franco, e ele me respondeu: “mas olha lá, na sua casa [Itamaraty] muita gente ficou preocupada”. Isso de política ideologizada é uma fantasia. O Brasil sempre olhou pro continente como um espaço de atuação próprio, buscando integração e equilibrando as tendências. Hoje, quem criticou a nossa posição perante Cuba está vendo a aproximação diplomática dos EUA.
Sobre o Mercosul, eu não acho que ele esteja esvaziado. Primeiro que se não tivesse o Mercosul, não teria a UNASUL, que tem um papel muito importante em baixar o nível dos conflitos na região. A situação entre a Venezuela e a Colômbia, que em meados de 2010 estava muito ruim, se acalmou. Internamente na Bolívia, a medição da UNASUL contribuiu para que o problema das regiões da Medialuna e o Altiplano se amainasse. O papel do Mercosul é principalmente político, como o da União Europeia (UE). Por mais que existam alguns acordos econômicos, a motivação da UE era a de evitar que se retomasse uma rivalidade que foi responsável por duas guerras mundiais.
Mesmo olhando para o âmbito econômico, o dado mais recente que eu tenho é que desde o início do Mercosul até agora, o comércio mundial cresceu cerca de cinco vezes, mas o comércio dentro do Mercosul cresceu doze vezes. Apesar das dificuldades recentes, eu vejo que se os países agirem isoladamente, eles não vão se dar bem. Isso, na minha opinião, é algo que independe de ideologia, isso vale tanto para os EUA e UE quanto para China.
A política externa brasileira também gera críticas na esquerda, que analisa que o Brasil tem uma presença imperialista na América Latina e na África. Como o senhor vê essas críticas?
Nós temos que prestar atenção porque somos o maior país da região, tendo as maiores empresas. Essa busca pelo lucro, que é natural, pode gerar problemas, e o governo, sempre que possível, deve entrar para aparar. Ninguém está livre de conflitos.
O nosso problema com o Equador, que foi totalmente superado, era em torno da [construtora] Odebrecht. Nós nunca entramos lá pra dizer o que fazer, sempre reconhecemos o direito do país de agir. Nós nunca dissemos “tal empresa tem razão”. A única coisa que realmente nos mobilizou a agir de uma maneira mais forte foi quando eles deixaram de pagar os empréstimos do BNDES. Para nós teria uma consequência muito mais grave, porque o esforço que nós fazíamos pra convencer as autoridades econômicas brasileiras a conceder os empréstimos a condições razoáveis aos países da região eram baseadas no acordo de créditos recíprocos. Se houvesse uma falha no pagamento de um empréstimo, nós não conseguiríamos mais emprestar para qualquer país da região. Mas, logo depois, as coisas se acertaram e o governo do Equador se entendeu com a empresa e com o governo brasileiro.
Sobre o projeto da Savana Africana, eu não sei os detalhes, mas eu me lembro da época que começou a discutir o pró-serrado, também houve muitas críticas e hoje em dia o Brasil se tornou o segundo maior exportador de soja do mundo graças a isso. Aí entram concepções de desenvolvimento que podem se chocar, mas eu não vejo como nenhuma atitude imperialista.
O senhor acha que ainda é necessária a presença brasileira no Haiti?
Eu não sei exatamente quando vai deixar de ser necessária, mas sei que está diminuindo muito, em grande parte porque o Brasil impulsionou esse caminho da redução das tropas. O próprio governo haitiano diz que ainda deveríamos ficar um pouco mais pra garantir que as eleições transcorram em paz. Eu não posso dizer que nesses dez anos não foram cometidos nenhum erro, porque isso acontece em qualquer situação, mas eu diria que a nossa presença lá quando houve a eleição do [René] Preval foi absolutamente fundamental para que a vontade do povo fosse respeitada. Ele tinha tido a maioria indiscutível de votos, houve uma tentativa de fraude tentando aumentar o número de votos em branco e muita gente que queria deixar ter um segundo turno e eu disse “nós não vamos atirar no povo”. Quando houve o terremoto, imediatamente nós dobramos o número de militares e pelo que eu eu vi lá, a grande maioria do povo aceitava bem essa presença. E cabe lembrar que o envio das tropas foi uma ação autorizada pela ONU.
A posição do Brasil e de outros países é que o Conselho de Segurança da ONU precisa ser reformulado com a entrada de novos países. Essa discussão não consegue avançar de forma muito vigorosa. Qual o motivo?
A principal dificuldade é que quem tem poder não quer repartir. Em graus variáveis, eu diria que a França e o Reino Unido, até por perceberem que não vão conseguir manter essa situação por muito tempo, vem advogando uma reforma como quem diz “olha vamos reformar agora enquanto a gente tem algum poderio do que mais tarde, quando ficar claro que a gente não tem o mesmo poder”. Em outros países a posição varia. A Rússia tem uma atitude favorável, mas não deixa de ter ambiguidade, porque ela diz “a Rússia apoiará o Brasil quando houver uma reforma no Conselho de Segurança”, mas não diz se apoia que haja uma reforma. Os dois países mais complicados, na minha opinião, são os Estados Unidos e a China. O primeiro pela sua indefinição e porque eles são ainda uma grande potência. Agora, o país que tem mais gerado dificuldades e o mais ativo na posição contrária é a China. E aí as razões são óbvias, porque a China tem dois vizinhos: um marítimo, que é o Japão, e um terrestre, que é a Índia, ambos seriam candidatos a membros permanentes.
Pela situação atual, a reforma mais viável seria não incluir o veto, isso já ajudaria a diminuir os temores da China e dos EUA. A outra ideia saiu em um artigo recente escrito pelo Kofi Anan e a Grou Brundtland, que foi primeira-ministra da Noruega. Ambos fazem parte do grupo chamado The Elders. Eles propõem uma solução que são membros de longa duração e com reeleição indefinida. Não é o ideal, mas a permanência no Conselho mesmo sem vetos já te dá muito poder, porque informação é poder. Esta não seria uma resolução que eu proporia como ministro brasileiro, mas raciocinando com o que eu acho viável como base para uma negociação, essa poderia ser uma maneira de ter um pouco mais de equilíbrio, mais correspondente à realidade atual.
Como fazer o equilíbrio com as posições de Rússia e China no Conselho de Segurança e nos BRICS [bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul]?
Os BRICS não formam um bloco no sentido da OTAN. Quando se trata de ser membro permanente do Conselho de Segurança, que significa que você tem uma voz forte e decisiva em assuntos de guerra e paz, a soberania dos países conta muito e cada um tende a agir de acordo com seus interesses soberanos. Os BRICS têm muita afinidade na questão econômica, agora no plano político as afinidades são mistas. Eu diria que a China e a Rússia são muito estritas na defesa de seus temas internos, eles não admitem nenhuma influência. Já a Índia, Brasil e África do Sul, como são países mais democráticos, têm mais capacidade de serem mediadores entre conflitos de outros.
O senhor criou em 2003 a expressão da política externa “altiva e ativa” para se referir a postura do Brasil. Como isso surgiu? Esse desafio continua o mesmo ou temos que avançar?
Além de dois adjetivos, essa expressão resumia bem qual seria a nossa nova atitude. No dia em que o presidente Lula anunciou meu nome, ele anunciou também o nome de mais três ministros, então eu sabia que teria pouco tempo para falar, não ia poder definir ali como a política externa vai ser com a América latina, a África, porque não ia dar tempo. Então, eu preferi me concentrar no tipo de atitude. Ativa, porque o Brasil não ia temer tomar ações e iniciativas, e altiva, porque nós não íamos nos submeter a agendas traçadas por outrem se nós não concordássemos. Na época, era o caso da Alca [Área de Livre Comércio das Américas].
A medida em que o Brasil cresce e se afirma, menos necessário se torna ficar sublinhando que ela precisa ser altiva e ativa. Quanto mais torna-se óbvio que o Brasil pode ajudar, como eu tenho certeza que ajudou na questão do Irã, mais se torna possível agir e ter uma participação fundamental na mudança dos procedimentos dentro da OMC. Quanto mais o país é chamado a participar de outras ações internacionais e atende a esse chamado, menos necessário se torna você usar esses adjetivos. Ninguém precisa dizer que a política externa dos Estados Unidos é altiva e ativa, ninguém precisa dizer que a política externa da China é altiva e ativa. O nosso objetivo é chegar lá. Ainda falta um pouquinho.
27/05/2015
Entrevista exclusiva ao Brasil de Fato: http://www.brasildefato.com.br/node/32138
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