Macri e o futuro da Argentina

10/12/2015
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 mauricio macri
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A derrota eleitoral da Frente para a Vitória e o triunfo de Macri não era inevitáveis. Houve fatores econômicos, mas também graves erros políticos que levaram a direita a ganhar as eleições na Argentina. Quando se analisam as conquistas sociais da Argentina entre 2003 e 2015, não se encontra uma explicação fácil ao que sucedeu. E surgem alguns mitos.

 

Como o mito de que “empatamos” porque a diferença foi menor que 3%. O mito não se sustenta, porque o presidente será Macri e os que serão agora a oposição não acreditavam que ele poderia mesmo ganhar nas urnas. Outro mito é o de que “foi a mídia hegemônica” a responsável. Mas também é falso, porque a mídia também trabalhou contra Cristina Kirchner em 2011, e ela obteve 54% dos votos no primeiro turno, contra apenas 17% do segundo colocado. Surge também o mito de que Macri venceu porque a candidata não foi Cristina Kirchner. A Constituição Nacional proíbe outra reeleição. É verdade que Cristina se retira com uma imagem bastante positiva. Mas também é verdade que os resultados das eleições legislativas de 2013, quando a Frente para a Vitória perdeu na Província de Buenos Aires, tornaram inviável qualquer projeto de reeleição.

 

Estes e outros mitos (como o de que o povo é estúpido) servem para evitar analisar as causas mais profundas do triunfo da direita, sobretudo os numerosos erros cometidos pelo governo nos últimos quatro anos de mandato. Compreender esses erros é uma tarefa política crucial para poder organizar a política do novo período.

 

O que aconteceu? Tudo começou com a vitória de 2011, com aqueles 54% de vantagem. Não foram poucos os que perceberam (e não faltou aviso) que o resultado podia levar a um erro de interpretação. Se tratava de uma porcentagem enorme, que incluía um público altamente heterogêneo, formado por cidadãos diversos, e não todos estavam convencidos de apoiar todas as medidas do governo. Havia eleitores que discordavam do governo, mas que preferiram a continuidade, devido às opções existentes. Dentro dessa porcentagem estava os apoios dos antigos aliados kirchneristas, hoje opositores: Massa, Solá, De la Sota, Moyano. A maior parte deles conforma atualmente a Frente Renovadora, e conseguiram mais de 20% nestas eleições.

 

Quando venceu em 2003, Néstor Kirchner fez um acordo com Duhalde e Scioli, e fez outro acordo em 2007 com o Partido Justicialista (PJ) e setores do Partido Radicais (com políticos como Julio Cobos e outros). Embora o kirchnerismo sempre tenha precisado construir articulações para seus sucessos eleitorais, depois de 2011 perdeu esse elemento de vista.

 

Em 2012, começou uma nova etapa econômica para a Argentina e toda a região. A baixa no preço das commodities e os impactos crescentes da crise internacional foram tornando cada vez mais difícil avançar nos processos distributivos. Aquele ano começou com a histórica nacionalização da petroleira YPF. O governo normalizou situações com os credores (Clube de Paris, CIADI, etc) para buscar financiamento externo. A decisão do juiz Griesa em favor dos fundos abutres foi um golpe duro. A atuação do governo nesse caso foi mais que adequada, mas sem dúvida, aquele triunfo do capital financeiro impediu qualquer acesso ao crédito, num contexto cada vez mais difícil.

 

O segundo mandato de Cristina Kirchner foi marcado por um grande capital político de origem e por crescentes dificuldades econômicas. O governo foi se fechando, deixou de escutar várias demandas sociais, reagiu a problemas reais como se fossem invenções da direita e verticalizou o funcionamento político. O termo “lealdade”, muito importante na tradição peronista, se converteu em sinônimo de “soldado”, em mostrar um bloco monolítico, em concordar com falhas evidentes, em jamais mencionar detalhes equivocados. Quanto mais monolítico foi o governo, menos setores da sociedade passou a representar. Deixou de expressar a diversidade. Deixou de processar problemas e corrigi-los.

 

A etapa de grande crescimento econômico com redistribuição já não era viável. Em vez de construir novas agendas, o governo se concentrou em defender o conquistado nos dez anos anteriores. Explicou tanto e tanto esses avanços que saturou até mesmo os que o apoiaram desde o início. Se concentrou tanto em defender sua obra que passou a narrar idilicamente o passado. Enquanto isso, as noções de futuro e de mudança eram abandonadas. E a partir dessa renúncia equivocada, a direita avançou.

 

As grandes mudanças realizadas, como a drástica redução do desemprego e da pobreza e o crescimento espantoso começaram a ser ofuscados quando o governo persistiu em manipular as estatísticas públicas e deixou de informar sobre a pobreza. Negar problemas sociais sentidos pela população produziu uma distância crescente entre o governo e os setores populares. A lógica de isolamento, a dificuldade de negociação política e a expulsão de qualquer crítico foram elementos que romperam as alianças que haviam permitido o triunfo de 2011.

 

Vejamos outros erros políticos. Primeiro: se imediatamente depois dos 54% Cristina Kirchner houvesse rejeitado qualquer ideia de reeleição, deveria começar de imediato a busca aberta e plural pelos possíveis sucessores. Nada disso aconteceu, até que a ideia de reforma constitucional foi enterrada depois da derrota nas legislativas de 2013. Foi um paradoxo: uma renúncia explícita à reeleição talvez evitaria aquela derrota e, ao não fazê-lo, foram as urnas as que decidiram a questão. O preço foi o surgimento de Massa como terceira via eleitoral, além dos dois anos perdidos na busca pelo nome ideal para a sucessão.

 

Segundo: que os governos tenham seus próprios relatos não é algo criticável. Na verdade, ao menos na Argentina, não existem governos sem relatos. Um tema opinável são seus conteúdos políticos. O problema surgiu quando a narrativa sobre as conquistas se distanciaram das percepções sociais. Quantos mais problemas na realidade econômica, mais o governo se concentrou em narrar o conquistado nesta década. Não só o explicou literalmente até o cansaço, como essa insistência também tinha outra implicância. Era hora de “defender” o conquistado, não para novos sonhos e novas conquistas. As grandes maiorias sempre elegem a realidade atual a de 2001, mas isso não significa que deixem de imaginar melhores futuros.

 

Quando a direita se apropriou dos termos “mudança” e “futuro”, isso já implicava uma derrota cultural. Algo que já havia acontecido em outros momentos da história, como quando se iniciou a revolução neoconservadora. Os projetos populares ou de esquerda se colocam na defensiva. Todos defendemos, por exemplo, a educação pública, mas não podemos entregar à direita a análise dos problemas da educação que o povo espera, nem podemos deixar de ter propostas transformadoras que respondam às demandas dos setores mais humildes. Quando o jogo político se organizam desse modo, os projetos populares devem convocar debates que permitam construir uma nova imaginação e novas ideias para o futuro.

 

Mas isso não aconteceu. O terceiro problema político, longe de ser de ordem táctica, se vincula aos modos de condução, que dificultaram o surgimento de propostas e perfis diferenciados, que pudessem alimentar e fortalecer o governo a partir de certa diversidade.

 

Por que então as pesquisas indicavam que Scioli seria o claro ganhador das primárias da Frente para a Vitória (FpV)? Por um lado, porque havia iniciado sua campanha muitos anos antes, quando as ideias de reeleição obstaculizavam outros projetos. Por outro lado, porque aparecia como o candidato da FpV com maior autonomia. Nem aqui nem em nenhum outro país os cidadãos elegem presidentes que não protagonizarão seu próprio governo. Em 1973, a consigna peronista para as eleições foi “Héctor Cámpora ao governo, Perón ao poder”. Alguns setores do kirchnerismo alimentavam a analogia de “qualquer um ao governo, Cristina ao poder”. Mas mesmo em 1973 essa máxima foi a consequência da proscrição da candidatura de Perón por parte da ditadura militar. Perón não governava há 18 anos.

 

Em outras palavras, Scioli emergia como candidato não só por sua obra, mas, sim por uma série de erros do kirchnerismo. Quando o governismo se lembrou que não haveria eleições primárias, parecia que aceitava suas próprias limitações. Visto hoje, parece que simplesmente tentou evitar uma derrota de Scioli, com uma enorme ambivalência, que foi claramente percebida. Proclamou Scioli como seu candidato, depois de anos falando muito mal dele em público.

 

A ausência dessa interna desmontou o perfil de Scioli (se “kirchnerizou”), e o desconforto nas filas governistas se fez público. Os níveis de conflitividade foram agudos antes e depois da proclamação da fórmula, e alcançaram a altos funcionários até os dias prévios ao 22 de novembro. Tudo isso foi afetando a candidatura de Scioli, que passou a ser previsível. Oferecia tanta previsibilidade econômica que seus próprios supostos seguidores não fecharam com sua candidatura.

 

Houve muito “fogo amigo”. Neste caso, a famosa frase de Perón (“os jornalistas são como os gatos: quando parece que brigam, estão se reproduzindo”) não se cumpriu. O produto foi uma derrota eleitoral.

 

Se algo não faltou nesta campanha foi informação. Além da publicidade e de um debate presidencial na televisão com grande audiência – similar à da final da Copa –, também houve intensa atividade nas ruas, que a militância social e política inventou por si mesma.

 

Percebendo a possibilidade do triunfo de Macri, milhares de pessoas foram às ruas brigar voto a voto de modos criativos, às vezes por iniciativa própria. Não há dúvidas de que sem essa intensa atividade, a distância final teria sido maior. E a distância é relevante. Mas não foi suficiente para virar o jogo.

 

Se houve informação, podemos dizer que a sociedade votou pelo ajuste? Devemos recordar que isso foi o que a FpV denunciou. As promessas de Macri foram diversas. Uma porcentagem um pouco maior dos seus eleitores acreditou em Macri: não votou pela mega desvalorização da moeda, nem pelo ajuste.

 

Houve erros também nas formas de organização política, nos modos verticais de tomar decisões, em rejeitar críticas construtivas. Através desses erros que foi drenando o capital político hegemônico.

 

O que fazer? O que esperar? O que desejar? Se alguém deseja e luta pelo melhor para as grandes maiorias, jamais poderá querer um novo 2001. Naquele ano, a Argentina sofreu com o caos da sua economia e também da política neoliberal. Foi espantoso por suas consequências sociais. Foi maravilhoso pela participação política popular. Ninguém com bom senso pode desejar o aumento da pobreza e da indigência só para que exista maior participação política.

 

Logo, é preciso admitir que Macri ganhou o direito de governar. Terá muitos dilemas e conflitos, mais do que podemos imaginar hoje. Não será uma frente tão homogênea como parecia durante o mais exuberante trabalho de marketing político da história argentina. A maioria o elegeu, e ele deve exercer o cargo, como estabelece a Constituição.

 

A Constituição é muito clara: os direitos de um governo não anulam os direitos das minorias nem dos cidadãos. Há um congresso, eleito pelo voto popular, onde a FpV tem a primeira minoria. E também há o direito de opinar e protestar.

 

Seria um erro grave facilitar a estratégia de Macri de se vitimizar. Já devem estar preparando as denúncias de que não conseguiram aprovar projetos devido às obstruções da oposição. A nova oposição, no dia 10 de dezembro deverá se constituir como uma minoria numerosa, com vocação de maioria. Com vocação de coalizão, e com o tempo também poder reunir adesões entre os que agora preferiram votar na direita. Não se trata de aceitar o que é inaceitável. Se trata de compreender porque se chegou até aqui e porque devem ser boladas novas estratégias para rearticular uma maioria.

 

Embora pareça contraditório, a realidade é que será preciso ter paciência e estar alerta. Cada vez que se detecte um discurso arriscado para o país e para os direitos dos argentinos, não se deve responder somente com a raiva, que será vista por muitos como uma incapacidade de aceitar a nova correlação de forças. Com inteligência, reflexividade e compromisso, é possível recuperar a vocação de maioria, para que, com o tempo, seja essa mesma correlação de forças atual a que possa ser mudada.

 

- Alejandro Grimson é professor da Universidade Nacional San Martín. Coordenou o Grupo de Trabalho de Políticas Culturais do CLACSO.

 

Tradução: Victor Farinelli

 

Créditos da foto: wikipedia

 

10/12/2015

http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/Macri-e-o-futuro-da-Argentina/6/35146

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/174173

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