Conflito de interesses deflagra batalha ideológica na internet
O conflito de interesses entre Apple e o FBI configura o mais importante desdobramento, até agora, do que os especialistas batizaram de tecnopolítica.
- Opinión
O conflito de interesses entre a empresa fabricante dos iPhones e o FBI, a polícia federal norte-americana, configura o mais importante desdobramento, até agora, do que os especialistas batizaram de tecnopolítica, ou seja, quando instituições públicas usam a internet como arma política, ou quando os milionários digitais usam a política para ampliar seu faturamento.
O FBI exige a chave mestra do processo de criptografia embutido nas versões mais modernas do iPhone para ter acesso às mensagens gravadas no aparelho do atirador responsável pelo assassinato de 14 pessoas em San Bernardino, na Califórnia. A empresa Apple reagiu alegando que a inviolabilidade do conteúdo de um telefone celular é um direito do usuário como parte do princípio da privacidade individual e que se a chave mestra for dada à polícia ela poderá interferir em todos os iPhones 5 e 6 existentes no mundo.
A questão provocou a mobilização de outras grandes empresas da chamada economia digital como Google e Microsoft que se colocaram ao lado da Apple na defesa da inviolabilidade do conteúdo de telefones celulares. É uma questão complicada e que vai gerar ainda muita discussão porque as polícias, inclusive a brasileira, consideram um direito seu a quebra da privacidade do material arquivado na memória de telefones celulares e computadores. Não confundir com sigilo telefônico que é a interferência em ligações entre indivíduos, utilizando canais públicos de comunicação.
A tecnologia na esfera da política
A emergência da tecnopolítica é uma consequência direta do avanço das novas tecnologias de comunicação e informação, bem como dos processos de digitalização e automação na produção de bens e serviços. Até agora a revolução digital monopolizava as atenções, majoritariamente em duas grandes áreas: a dos negócios digitais e a dos modismos comportamentais. Hoje a tecnologia começa a intrometer-se também no terreno da política provocando uma nova forma de identificar velhos e novos valores, com consequências capazes de gerar mudanças ainda imprevisíveis em nosso futuro social.
Os modismos e o marketing digitais começam a perder folego porque as novidades tecnológicas que tanto aguçaram a curiosidade mundial estão chegando perto de um ponto de saturação, como ficou claro nos produtos em exposição no badalado Consumer Electronics Show de 2016, nos Estados Unidos. Os lançamentos espetaculares estão cedendo espaço para melhorias formais nos produtos já existentes, sem grandes novidades entre os smartphones e tablets, que até bem pouco tempo monopolizavam o marketing de gadgets eletrônicos.
A desaceleração do ímpeto inovador na área das novas tecnologias revela o início de uma batalha pelo controle das consequências geradas pela computação e pela internet. As mudanças que já começam a ser sentidas em campos como fluxos de informação, descentralização política, privacidade, direito autoral e controle ideológico, mostram que o potencial transformador das novas tecnologias começa a preocupar governos, corporações e grupos conservadores.
O conflito que está ganhando corpo é entre o espírito original dos pioneiros da internet defensores da descentralização, livre fluxo de informações e a recombinação de conhecimentos como base para a inovação industrial, e aqueles que veem nestas novidades uma ameaça ao status quo vigente.
Aumentam as pressões governamentais no sentido de controlar o fluxo de informações na internet sob o pretexto de que a liberdade na rede é usada por grupos terroristas para fazer propaganda de suas ações e recrutar novos adeptos. As maiores pressões, que raramente são divulgadas, têm lugar no congresso norte-americano e em governos europeus assustados com o crescimento do Estado Islâmico.
O fantasma do terrorismo em escala planetária é um dos pretextos que os aparelhos de segurança usam para exigir o controle sobre o espaço cibernético, onde até agora vigorava o princípio da internet livre, conforme preconizam os criadores da rede mundial de computadores.
Estamos no limiar de um novo conflito de estratégias e valores, entre uma ordem social, econômica e política baseada na descentralização e noutra agarrada à centralização vertical. Entre o controle consensual e o controle imposto.
A contradição das grandes na internet
O interessante é que neste conflito as linhas de clivagem não são as mesmas da era analógico-industrial. Grandes empresas digitais como Apple, Microsoft, Facebook e Google alardeiam os princípios libertários da era digital mas ,ao mesmo tempo, querem controlar suas audiências, mantendo-as cativas nos domínios virtuais de sua propriedade. Vivem a contradição entre o princípio de uma internet sem fronteiras e o interesse comercial de controlar e limitar os movimentos de usuários para monetizar a fidelidade.
Empresas como a Apple e Facebook intensificam estratégias corporativas destinadas a ampliar seu controle sobre segmentos da internet ao criar territórios virtuais privados com o objetivo de obrigar os usuários a permanecerem dentro dos respectivos domínios. Ambas empresas, a exemplo de outras gigantes da internet, usam informações obtidas sem custo por meio do monitoramento de seus usuários para ampliar o faturamento.
O ímpeto inovador e o empenho dos revolucionários digitais começa a ceder espaço para os conservadores interessados em botar ordem no caos criado pela digitalização e pela internet. Agora começa uma fase em que as inovações tecnológicas terão que vencer a inércia da máquina burocrática instalada nos governos cuja principal preocupação é regulamentar tudo o que for possível para que nada escape ao controle de estruturas verticalizadas e centralizadas.
Neste processo já começamos a ver revolucionários digitais aderindo a preocupações conservadoras como no caso da Apple, cujo conflito com o FBI tem a ver com o direito à privacidade mas também com a decisão de manter o controle sobre seus clientes, e evitar uma migração deles em direção a concorrentes como por exemplo, Facebook e Google.
A tecnologia digital é um processo irreversível porque atende às necessidades de inovação e automação para baixar custos de mão de obra na economia industrial. Mas os mesmos dígitos que garantiram uma fantástica lucratividade para o sistema financeiro mundial e que permitiram a implantação da economia da informação (a grande matéria-prima do século XXI) também viabilizaram a descentralização do controle social e fragmentação dos mercados. É uma aparente contradição que bagunça os modelos de análise vigentes até agora.A tecnopolítica é apenas uma das manifestações da incipiente era da complexidade que desafia nossa compreensão.
edição 892, 01/03/2016
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