As consequências do golpe

26/04/2016
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Naomi Klein, na sua obra a Doutrina do Choque, mostra como os interesses conservadores e neoliberais muitas vezes criam ou exacerbam choques, desastres e crises para impor sua agenda política e econômica. Ela argumenta também que essa agenda conservadora do “livre mercado” muitas vezes se impõe por uma via não democrática. Foi assim no Chile de Pinochet e na Argentina pós-guerra das Malvinas.

 

É o que acontece no Brasil de hoje.

 

A oposição derrotada, a mídia partidarizada e os grandes interesses econômicos nacionais e internacionais não reconheceram a vitória legítima de Dilma Rousseff em 2014 e, aproveitando-se do agravamento da crise internacional, a pior desde 1929, vêm se dedicando a cevar uma crise política permanente que impede a recuperação econômica do país e conduz a um golpe de Estado parlamentar.

 

Esse golpe é uma gigantesca fraude jurídica e política, pois não há crime de responsabilidade doloso e grave imputável à presidenta, como determina a Constituição de 1988 para o afastamento do supremo mandatário. O que há é uma escusa frágil, o que os países anglo-saxônicos chamam de “tecnicalidade jurídica”, esgrimida por parlamentares oposicionistas contra os quais pesam gravíssimas acusações de corrupção. O que há é uma pedalada constitucional.

 

Há também um óbvio prejulgamento da presidenta.  Mesmo antes da Câmara dos Deputados se pronunciar sobre a autorização para o julgamento da presidenta, os condutores do golpe já vazavam discursos de posse e negociavam (e ainda negociam) a composição do futuro governo.

 

Esses fatos públicos e notórios lançam forte suspeição sobre a lisura de toda a condução do impeachment, o qual, segundo a Constituição, teria de cumprir com os princípios do devido processo legal e, sobretudo, da presunção da inocência. Aparentemente, nada disso tem importância. O único que importa é derrubar a presidenta a qualquer custo e sob qualquer pretexto. Os “juízes” da presidenta sequer se deram o trabalho de ler a sua defesa.

 

Isso o mundo inteiro já sabe. Já sabe e condena. Aliás, quem está manchando a imagem do país e de suas instituições são os golpistas. A vergonhosa sessão da Câmara dos Deputados ficará registrada, nos anais internacionais, como o momento mais baixo do Brasil nas últimas décadas.

 

Mas é possível que o mundo e boa parte da opinião pública nacional ainda não saibam das consequências do golpe. Com efeito, se a fraude do golpe se concretizar, haverá consequências profundas e duradouras.

 

Num primeiro momento, haveria, é claro, certa euforia. A mídia golpista aplaudiria freneticamente e o mercado, isto é, a “turma da bufunfa”, com seu pato roubado e seu dinheiro sonegado, pararia de sabotar a economia do país.

 

Como em 64, o golpe seria saudado como um “alvorecer da democracia”. Um “novo recomeço”.

 

Mas isso seria apenas sonho de noite de verão. Após a euforia inicial, mergulharíamos num longo pesadelo, com vários fantasmas e monstros para nos assustar. Destaco alguns.

 

1. Governabilidade inexistente

 

A dupla Temer/Cunha não teria a menor credibilidade ou legitimidade para governar o país. Eleitos indiretamente por um Congresso problemático, repleto de grupos fisiológicos ou corruptos, a Temer e Cunha faltaria o essencial para governar: o voto do eleitor. Além disso, ambos têm problemas sérios de imagem. Cunha, em particular, contra o qual há acusações comprovadas de desvio de dinheiro público e evasão fiscal, personifica hoje a corrupção e o fisiologismo que repugnam a população. Temer, por sua vez, personifica conspiração e traição, vícios que despertam repulsa em todos.

 

Nenhum dos dois tem estatura política e moral para governar nada.

 

A sustentação parlamentar que dá sobrevida a ambos se esfarelaria rapidamente. Os políticos da oposição, que achavam que a aventura irresponsável do golpe e do “quanto pior melhor” lhes daria popularidade, perceberam que cometeram um monumental erro de cálculo político. As últimas pesquisas mostram queda acelerada de seus índices de popularidade. Essa queda se acentuaria com a associação definitiva ao golpe e à dupla contagiosa Cunha/Temer. O instinto de sobrevivência falaria mais alto e, de forma célere, Cunha e Temer acabariam sozinhos. Sem o voto do povo e sem base parlamentar sólida, o governo Cunha/Temer afundaria.

 

2. Comprometimento do combate à corrupção

 

O golpe brasileiro é o golpe de setores corruptos da vida política nacional contra uma presidenta reconhecidamente honesta.

 

Com efeito, foi durante os governos do PT que o combate à corrupção começou a ser levado a sério. Engavetou-se o engavetador-geral dos tempos do tucanato. Deu-se autonomia às procuradorias, à Polícia Federal e à Controladoria Geral da República. As operações especiais da PF contra corrupção foram multiplicadas de 6 ao ano para mais de 250 ao ano. Ao mesmo tempo, deu-se transparência à administração pública.

 

A Lava Jato teria sido impossível quando governavam os golpistas de hoje. Teria sido abortada logo no início. Suas conclusões iniciais engavetadas.

 

Mas o golpe tenta fazer justamente isso. Inviabilizar ou, ao menos, amenizar a Lava Jato e outras operações, como a Zelotes. Contando com a nítida partidarização e seletividade dessas investigações, os golpistas esperam que, uma vez consumado o golpe, as investigações não prossigam para atingir o núcleo do novo poder.

 

Na Câmara dos Deputados já se fala abertamente em anistia para Cunha e aliados, em função de seus serviços prestados ao golpe.

 

A revista conservadora Forbes até publicou artigo, no qual se afirma que, uma vez consumado o golpe, as denúncias de corrupção deverão desaparecer e as investigações deverão esmorecer, para dar a falsa impressão de que tudo voltou ao normal.

 

É lamentável que o imprescindível combate à corrupção e aos desvios seja feito de modo tão partidarizado e distorcido. Mais lamentável ainda será vê-lo esmorecer por motivos políticos oportunistas.

 

3. Banalização do impeachment e ‘Parlamentarismo de Bananas’

 

O golpe criaria um precedente extremamente perigoso para a democracia brasileira.

 

Está claro que Dilma Rousseff está sendo afastada por motivos meramente políticos, como se vivêssemos num regime parlamentarista. Ela está sendo afastada simplesmente porque perdeu popularidade e sua base parlamentar. Esse é o fato. O resto é pedalada constitucional baseada em tecnicalidade jurídica. Tecnicalidade arrumada na última hora para justificar o injustificável.

 

Ou seja, o voto popular, direto e soberano, que dá legitimidade a seu mandato, está sendo substituído pelo voto indireto de parlamentares. O que está ocorrendo hoje no Brasil é a sobreposição da maioria circunstancial do Parlamento à maioria obtida nas urnas.

 

Isso é gravíssimo.

 

Com efeito, se o golpe passar, se a instituição do impeachment se banalizar, como é que ficariam a democracia e a governabilidade do Brasil?

 

Se o golpe passar, banalizando o impeachment, parece óbvio que as maiorias parlamentares circunstanciais poderiam se sobrepor sempre às maiorias aferidas nas urnas. Ante qualquer crise política, ante qualquer circunstância que faça o presidente perder a sua base parlamentar, estaria montado o cenário para novo impeachment. Afinal, escusas jurídicas, tecnicalidades jurídicas, sempre podem ser facilmente arrumadas. Se arrumaram contra Dilma Rousseff, uma presidenta pessoal e administrativamente honesta, poderão, no futuro, arrumar contra qualquer um que esteja ocupando o Palácio do Planalto.

 

Se o golpe passar, o nosso presidencialismo ficaria sempre ameaçado pela espada de Dâmocles de uma espécie de “parlamentarismo de bananas”. Mais do que nunca, a governabilidade estaria totalmente condicionada à articulação de interesses muitas vezes fisiológicos no parlamento. O voto popular manteria sua centralidade para se chegar ao poder, mas se tornaria praticamente irrelevante para a sua manutenção. Não haveria mais, de fato, um mandato popular, mas um “mandato parlamentar” que o presidente teria de manter e obedecer para permanecer no poder.

 

Nosso regime se tornaria um parlamentarismo disfarçado, nosso presidente uma espécie de primeiro-ministro circunstancial e o voto popular se converteria em mera exigência formal a ser cumprida a cada 4 anos.

 

Em outras palavras, os conhecidos males do nosso “presidencialismo de coalizão” seriam grotescamente ampliados, com sérias repercussões na representatividade democrática e na governabilidade.

 

4. Comprometimento da imagem externa do Brasil

 

Além de propiciar a implantação de um virtual “parlamentarismo de bananas” no país, o golpe transformaria o Brasil numa vergonhosa “republiqueta de bananas”.

 

Como se sabe, a reação mundial ao golpe já é intensa e praticamente unânime. Mesmo jornais e revistas muito conservadores, como o New York Times, Financial Times e The Economist, questionam fortemente o processo político no Brasil. Embora alguns não falem explicitamente em golpe, todos manifestam preocupação com  a legitimidade e as consequências do processo de impeachment conduzido por um Congresso sobre o qual pesam acusações graves de corrupção.

 

Há também manifestações firmes contra o golpe por parte da OEA, da UNASUL, da Cepal, da ONU Mulheres e de muitos chefes e ex-chefes de Estado.

 

Como aconteceu recentemente nos casos de Honduras e do Paraguai, que sofreram sanções internacionais em razão de golpes de Estado parlamentares e jurídicos, não se podem descartar condenações formais ao golpe brasileiro. Saliente-se que, nos dois casos mencionados, os ritos processuais para o afastamento dos presidentes foram cumpridos, mas isso não convenceu ninguém.

 

No caso do Brasil, não adiantará encobrir a ausência de mérito, a ausência de crime, com o respeito formal aos ritos. É por isso que o golpe brasileiro não convence ninguém de que é impeachment, a não ser aqueles empenhados no ódio ao PT ou na conquista do poder a qualquer custo.

 

A sessão grotesca da Câmara dos Deputados desnudou as entranhas malcheirosas do golpe para o mundo. Não tem mais volta.

 

5. Imposição de um plano impopular e regressivo sem um único voto

 

O golpe tem uma agenda política, social e econômica. Essa agenda está explícita no documento “Uma Ponte para o Futuro”.

 

Trata-se, na realidade, de “uma pinguela para o passado”, que pretende, de um só golpe (o trocadilho é intencional), acabar com três grandes legados sociais: o de Lula, o de Ulysses Guimarães (Constituição de 1988) e o de Getúlio Vargas (CLT).

 

Com efeito, o plano é claro em sua intenção de rever a política de aumento do salário mínimo, para reduzi-lo em termos reais. Também se pretende rever as indexações de aposentadorias, pensões e outros benefícios previdenciários a esse salário, o que acarretaria, da mesma maneira, a redução real desses benefícios. Mais ainda, o plano propõe a extinção ou diminuição das vinculações constitucionais das receitas orçamentárias destinadas à saúde e educação, configurando uma DRU bastante ampliada. Não bastasse, o plano intenta reduzir a proteção trabalhista assegurada pela CLT, mediante terceirizações massivas e a imposição do “negociado” sobre o “legal”. Num ambiente de crise, é óbvio que os empresários se aproveitarão dessa brecha para impor reduções de direitos e salários, ameaçando os trabalhadores de demissão.

 

Em termos crus, o que o plano pretende é fazer exatamente o contrário do que fez o governo Dilma. Esse governo vinha tentando preservar a população, principalmente seus setores mais pobres e desprotegidos, da crise mundial e nacional. Agora, o que se quer é colocar o custo da crise nas costas dos trabalhadores brasileiros e daqueles que dependem da previdência pública e dos serviços públicos, inclusive saúde e educação.

 

Como sempre se fez no Brasil, antes da chegada dos governos socialmente progressistas. Se implantado, esse plano socialmente regressivo reduziria todos os programas e benefícios sociais, inclusive o Bolsa Família. Moreira Franco, um dos articuladores do plano, já mencionou publicamente a necessidade focar os benefícios apenas nos mais necessitados.

 

Mas o plano não teria consequências apenas na área social. Na realidade, ele é um pacote completo. No fundo, o que se quer é restaurar o neoliberalismo no Brasil. Mais do que isso: ele almeja implantar uma espécie de ultraneoliberalismo no país.

 

Por isso, amplas privatizações, inclusive de setores estratégicos como o do pré-sal, e a abertura indiscriminada e suicida da economia, com o retorno da pauta de novas ALCAS, como as Parcerias Transpacífica e Transatlântica, estão de volta no plano dos golpistas.

 

É óbvio que os conservadores têm todo o direito de propor sua agenda ultraneoliberal ao país. Isso faz parte da democracia. Mas não faz parte da democracia impor um plano tão socialmente deletério como esse mediante um processo claramente golpista. Ou seja, sem a necessidade de disputar um único voto. Esse plano teria de ser apresentado à população, no âmbito de um processo eleitoral, numa disputa democrática da presidência da república. Não submetê-lo à disputa democrática se constituirá no maior estelionato eleitoral da história do país.

 

6. Regressão geopolítica

 

O golpe não tem apenas uma agenda interna, tem também uma agenda geopolítica.

 

Nos últimos anos, a política externa “ativa e altiva” dos governos progressistas alterou profundamente a inserção internacional do país. As relações bilaterais foram diversificadas, ampliaram-se as parcerias estratégicas com países emergentes, investiu-se mais na integração regional e a cooperação Sul-Sul adquiriu centralidade. Concomitantemente, abandonou-se a ideia ingênua de que a submissão aos desígnios da única superpotência e a inclusão acrítica no processo de globalização nos faria aceder a um Brave New World de independência e prosperidade. Enterrou-se a agenda regressiva da ALCA ampla e assimétrica, e o Brasil passou a criar espaços próprios de influência, articulando-se com outros emergentes em foros como o BRICS.

 

Agora, a agenda internacional do golpe, aproveitando-se da crise, pretende rever tudo isso. Desse modo, se multiplicam as pressões para que o Brasil assine, o mais rapidamente possível, acordos de livre comércio assimétricos semelhantes à finada ALCA, como o Acordo Comercial Transpacífico (TTP) e o Acordo Transatlântico de Comércio e Investimentos (TTIP), abandone o Mercosul e a integração regional e dê baixa prioridade ao BRICS e outros foros que conduzem a um mundo mais multipolar e menos assimétrico. Saliente-se que a adesão do Brasil àqueles acordos, sob a desculpa esfarrapada da necessidade de o país se inserir “nas cadeias globais de valor”, inviabilizaria a possibilidade de implantarmos políticas de desenvolvimento e de ciência e tecnologia, tal como já aconteceu com o México.

 

Há países que gostam dessa agenda geopolítica que nos faria regredir à dimensão de um país periférico.

 

Nesse sentido, é interessante notar a diferença entre os EUA e a Rússia, no que tange ao golpe no Brasil. Enquanto esse último país emitiu nota oficial manifestando preocupação com o cumprimento dos princípios constitucionais e com “interferências externas” no processo político brasileiro, o primeiro encerrou-se num conveniente e estranho mutismo, que não impediu, porém, que autoridades norte-americanas recebessem políticos envolvidos na articulação do golpe de Estado parlamentar.

 

7. Inviabilização de um pacto político e aprofundamento da crise

 

Essa seria a consequência principal do golpe.

 

Parece bastante claro, para as forças políticas mais racionais, que a crise brasileira poderia ser superada mediante um amplo pacto político que pusesse fim à crise política permanente que vem impedindo a recuperação da economia. É o que propõe, aliás, a presidenta da República.

 

Obviamente, um pacto desse tipo só poderia se efetivar com a participação de todos os setores relevantes do país, inclusive trabalhadores, sindicatos e movimentos sociais. Entretanto, os golpistas estão gestando um pacto “costurado por cima”, como sempre se fazia no Brasil. Um pacto que envolve somente setores empresariais, mídia oligopolizada e políticos golpistas e conservadores. Um pacto conservador e golpista que exclui os interesses da maior parte da população.

 

É óbvio que esse pacto gestado nas entranhas de um golpe de Estado parlamentar não tem a menor possibilidade de assegurar a governabilidade, unir o país e superar a crise.

 

Quem vai pedir à população, já cansada da classe política, para fazer os extremos “sacrifícios” que os golpistas exigem? Temer? Cunha? Risível, não é?

 

Em pouco tempo, essa mistura explosiva de total ausência de legitimidade com o plano golpista regressivo e ultraneoliberal incendiaria o país.

 

As manifestações contra o governo foram feitas aos domingos por uma classe média conservadora. Mas as manifestações que viriam de amplos setores da classe trabalhadora após o golpe paralisariam o país em seus dias úteis. As greves se tornariam amplas, frequentes e duradouras, comprometendo ainda mais a economia do país.

 

Somente a combinação de muito ódio, muito oportunismo e muita tolice pode pressupor que o golpe se sustentará e nos ajudará a sair da crise.

 

O subtítulo da obra de Klein, mencionada no início deste texto, é “A Ascensão do Capitalismo de Desastre”.  Pois bem, o golpe brasileiro é uma óbvia receita para um grande desastre. Um desastre feito pela via antidemocrática.

 

- Marcelo Zero é sociólogo, especialista em Relações Internacionais e membro do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI).

 

Crédito da foto: Antonio Cruz/ABr

 

26/04/2016

http://brasildebate.com.br/as-consequencias-do-golpe/#sthash.wT25HNnF.dpuf

 

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/177037
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