Marmanjos de calçada

30/05/2016
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O crítico literário Thomas Eliot foi categórico ao asseverar que nenhuma cultura se cria nem se desenvolve se não tiver alguma relação com religião. Há nisso não somente um sentido ético de indivíduo, mas também uma normatividade de grupo. Enquanto Eliot buscou uma definição ampla de cultura, minha preocupação aqui transcende a linha conceitual e tange horizontes civilizatórios, tão caros ao meu berço como brasileiro.

 

É difícil traçar similitudes culturais entre regiões, países e continentes devido às particularidades e aos caminhos da diversidade. As variações de rota são grandes, ainda que se comparem nações contíguas ou em que se fala o mesmo idioma. Encontrar coincidências culturais por vezes parece ser um exercício tão fácil quanto ludibriador, tão oportuno quanto cavilador.

 

Tal é a façanha que se cobra constantemente do Brasil, um país que surgiu de um parto doloroso e prenuncia sua morte trágica. Nele se tenta aplicar tudo que se aprendeu de civilizadores e oportunistas que aportaram nesta terra, porém à sua gente lhe falta a disposição habitual e lógica para acompanhar a engrenagem imitada, a cópia imperfeita e impostora.

 

É assim que se expressa nossa democracia fajuta, nossa cidadania embriagada e nossa legislação sustentadora dos poderosos. Aos poucos, essa nação é tomada por marmanjos de calçada, que assistem passivamente à vida alheia enquanto inutilizam sua própria mão-de-obra e seu potencial. São muitos que, com seus vinte, trinta ou quarenta anos, sentam nas margens das ruas a depositar inveja e ódio sobre aqueles poucos que produzem e acreditam no Brasil. A esses impudicos só existe o Brasil paternalista, que, se não prover, não educa nem estimula. Marmanjos de calçada estão deliberadamente entregues à contingência de um país em recessão e desespero, drenado até seu estertor.

 

Com esse recorte da realidade social brasileira, posso ampliar meu argumento. Obviamente, a culpa não é só dos ignorantes e passivos. Eles são efeito do que as elites fazem do e com o país. É também daqueles que bebem da fonte inesgotável de recursos públicos sem piedade alguma de drenar as energias de um país miserável e contraditoriamente tolerante. A dívida desses é ainda maior. E prestarão contas, cedo ou tarde.

 

Nesse ínterim, milhões de brasileiros buscam alguma luz, algum norte. Muitos dependem de um líder ou tutor para dar vazão a seus anseios e angústias. A partir do momento em que muitas dessas lideranças perdem respeito devido a corrupções e descaminhos, algum deus passa novamente a ocupar essa lacuna deixada por incompetentes. Novamente a cultura alterna-se com a religião, quando uma não é gerada pela outra.

 

A religião, portanto, é um princípio motivador da ética como sugeriria Eliot assim como um liame das enfermidades cívicas, completo eu. Estas, por sua vez, vitimam muitos brasileiros despreparados e viciados pela sociedade que os gera, desorientados pelos líderes em quem se deposita confiança, e desgastados pelo desejo inconcluso de engrandecimento.

 

Resta-nos depor os charlatães, apontar as chagas e – acima de tudo – fazer uma revisão de nosso próprio caráter nessa sociedade onde o Estado passou dos limites em alcance, tamanho e inutilidade. Mais preocupante que o inchaço estatal é o desajuste entre os privilégios de apadrinhados do Estado e aqueles que laboram no setor privado por um salário mínimo.

 

Há muitos incompetentes que maculam nossa cultura, enquanto poucos bradam no lamaçal a favor de mudanças (reais, não cínicas) e melhoras coletivas. O mundo reúne-se para um convívio intercultural no Brasil, onde a ambição dos conquistadores estabeleceu – provavelmente sem planos para isso – um laboratório cultural fértil, porém problemático e tortuoso. O Brasil merece uma chance. Seja o segundo a acreditar nisso.

 

 

 

Bruno Peron é doutor em Políticas Culturais por University of London – Birkbeck, e mestre em Estudos Latino-americanos pela Universidad Nacional Autónoma de México; autor de oito livros em versão eletrônica, incluindo Aresta da razão (2013), Aresta da prudência (2014) e Aresta da desilusão (2015).

 

http://www.brunoperon.com.br

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/177765

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