Guarani-Kaiowá: ‘Onde fala a bala, cala a fala’

22/06/2016
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 ode bala
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Na madrugada de 17 de julho de 2015, em Dourados, dentro de uma caminhonete VW Amarok, a travesti “Érica” foi morta com três disparos à queima-roupa. Um disparo pelas costas nas costas, outro no peito e outro no rosto. O rosto é um dos lugares privilegiados para que simbolicamente a homofobia, a transfobia e o machismo marquem território.

 

Em solo sul mato-grossense essa é a marca da intolerância e do ódio que verte seu sangue, tal como se marca a ferro e a fogo o gado, mas, é claro sem que esses objetos corporificados e generificados no feminino, como travestis, gays, transexuais, mulheres tenham o valor que o gado assume.

 

Eis a terra mais transfóbica em termos relativos do centro-oeste[1], segundo pesquisa divulgada esta semana pelo jornal Folha de S. Paulo. Nossas lideranças no ranking das barbáries não se esgotam aí. Mas, devagar com o andor. Andemos devagar com o raciocínio. Não se tratam, portanto, de “homicídios simples”, para usarmos a categoria êmica legal (im)posta pelo Código Penal Brasileiro. Porque as travestis tratadas como inumanas – por portarem, sobretudo, a ambiguidade da “monstruosidade” do ser masculino e feminino full time em seus corpos – são mortas com tiros à queima-roupa e em excesso. Desovadas nas ruas e com requintes de crueldades, presentes também com nuances distintas em fuzilamentos de homossexuais e de mulheres (assim categorizadas nas certidões de nascimento pelo discurso biomédico).

 

Não esqueçamos que MS recebeu, eis o nosso ineditismo, a primeira Casa da Mulher Brasileira, sinalizando algo no que toca ao nosso ranking em violência contra a mulher. Reza a lenda que a segunda e terceira seriam aqui também, respectivamente, Ponta Porã e Corumbá, não nessa ordem. Humanizar caminhonetes e objetificar o feminino incorporado no gênero em forma de (bio)mulheres, de travestis, de viados, parece ser lema neste Estado. Consultemos as morbidades e mortalidades de jovens rapazes em acidentes de trânsitos. Eis o estado de Mato Grosso do Sul, com seu céu único, na aurora ou no crepúsculo…Um contexto apontado em recente reportagem da Folha de S. Paulo, como aquela que mais mata homossexuais.[2]

 

Novamente, eis nós… Liderando o ranking da bala que cala a fala. Mas não ganhamos apenas no fuzilamento de corpos performatizados no feminino em gênero e sexo. Se falar de gênero é falar de etnia, raça e classe social, como nos ensina e motiva Judith Butler, desde o dia 14 de junho os Kaiowá e Guarani foram alvejados por balas em verdadeiras emboscadas. É claro, nada que a mídia impressa e televisa local e nacional aborde de maneira menos compromissada com este seleto seguimento.

 

Para quem sai da caixa da televisão e dos sites enviesados, percebe o genocídio. São vários tiros pelas costas, em emboscadas de quem tem seus parcos meios de transporte queimados, com as estradas fechadas, inviabilizando o acesso ao auxílio e ao socorro. Os tiros são no abdômen e no tórax, indistintamente em crianças e em adultos de ambos os sexos/gêneros.

 

A invisibilidade midiática, a seletividade das informações veiculadas, a desumanidade como são retratados os corpos das vítimas das diferentes violências – que têm em comum o ódio contra a diferença – nos faz pensar, para além da ideologia machista, heteronormativa, racista, sexista que predomina na sociedade brasileira, todo o aparato econômico por detrás de tantos atos de barbárie.

 

A violência contra gays, travestis, mulheres, indígenas no Mato Grosso do Sul anda de mãos dadas com um capital econômico – o agronegócio – que dita a política do Estado. Tudo isso nos faz remontar à história do Brasil e pensar que a sociedade descrita com densidade por diferentes autores da literatura brasileira em tempos pretéritos, marcada pela política dos coronéis, dos senhores de engenho, como o contexto narrado por Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala, ainda não ficou no passado, mas encontra eco e existência, por meio de práticas, discursos e representações, nas relações sociais sul-matogrossenses.

 

Poderíamos dizer, parafraseando Daniel Welzer-Lang, que as violências nunca são autônomas, autossuficientes, mas funcionam em redes, em conexão. Voltando-se para a problemática da homofobia no contexto francês, o autor dirá que a homofobia anda de mãos dadas com o racismo, o sexismo, a xenofobia, enfim, com uma série de violências socialmente estruturadas e estruturantes numa ideologia que tem como base a ideia de uma supremacia do masculino.

 

Todas essas imagens aqui sucintamente descritas realçam e refletem o caráter machista dos imaginários e relações engendradas nessa região do Estado e que se, em si mesmas, não dão conta de todos os aspectos das violências que mencionamos, revelam por seu turno uma dimensão importante dessas relações violentas: a dominação masculina – conforme nos aponta Bourdieu.

 

Em cena a necessidade de afirmar a masculinidade pelo uso da força, pelo abuso de poder, pela violência, pelo sadismo das relações que estabelece e busca estabelecer. Se a fala é um pressuposto de humanidade – lembrando que entre os Guarani e Kaiowá a fala é um dos princípios fundamentais de constituição da pessoa – há que se negar por meio da violação de direitos, da negação da cidadania e do acesso aos elementos/aspectos fundamentais da existência que constituem o jeito de ser de um povo, grupo, indivíduo, tudo o que possibilite que ele se torne pessoa, sujeito, humano.

 

Portanto, uma das outras faces das diferentes violências contra grupos minoritários presentes no Estado é justamente a despersonalização, descaracterização, desumanização dos sujeitos e grupos. Aí passamos a entender o confinamento dos Guarani e Kaiowá, o genocídio historicamente praticado contra eles, o homicídio violento de travestis, o espancamento de homossexuais, o estupro de mulheres, a violência no trânsito e a prática dos rachas entre caminhonetes como faces da mesma moeda: a ideologia da dominação masculina.

 

[1]http://www.topmidianews.com.br/especiais/noticia/visibilidade-trans-ms-e-o-estado-mais-transfobico-do-centro-oeste.

 

[2]http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/06/1781884-docentes-gays-carbonizados-em-carro-levam-cidade-do-sertao-baiano-as-ruas.html.

 

- Simone Becker é Professora Associada da FADIR e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Sociologia da UFGD. Bolsista de produtividade PQ-CNPq. Pesquisadora associada ao LADIF (Laboratório Interdisciplinar sobre Direitos, Diversidades e Diferenças na Fronteira)

- Esmael Alves de Oliveira é professor adjunto da FCH e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFGD. Pesquisador associado ao LADIF (Laboratório Interdisciplinar sobre Direitos, Diversidades e Diferenças na Fronteira)

- Marcelo da Silveira Campos é Doutor em Sociologia (USP), é professor adjunto da FCH e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFGD. Coordenador do LADIF (Laboratório Interdisciplinar sobre Direitos, Diversidades e Diferenças na Fronteira) e pesquisador do GPESC-PUC/RS

 

Crédito da foto: Marcello Casal Jr./ABr

 

22/06/2016

http://brasildebate.com.br/guarani-kaiowa-onde-fala-a-bala-cala-a-fala/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/178299

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