Comunicação e política: a impossibilidade de separá-las
- Opinión
Artigo publicado em espanhol na Revista América Latina en Movimiento No. 513, 514: La comunicación en disputa 02/06/2016 |
Há mais ou menos 15 anos, um dos mais lúcidos intelectuais argentinos, Sergio Caletti, apontava que uma das dificuldades para pensar criticamente os vínculos e cruzamentos entre os fenômenos comunicacionais e políticos era a própria naturalidade dessas relações aliada à persistência de uma “concepção em última instância técnica da comunicação e da política”1; isto é, à identificação da comunicação a estratégias de produção e disseminação de mensagens e da política a um aparato ou mecanismo social e, consequentemente, como institucionalidade regulada.
Apesar das muitas complexidades adquiridas desde então, esse modo de pensar a comunicação e a política continua predominando hoje. Essa persistência se reflete nas numerosas produções que se interrogam sobre a maneira como a comunicação — em termos de tecnologias e estratégias — afeta a política em termos de atividade institucionalizada. Assim proliferam os estudos que culpam a mídia e as tecnologias da deterioração da política transformada em espectáculo ou entretenimento ou, ao contrário, os que prenunciam avanços democratizadores e participativos graças às redes e à interatividade.
Não é possível superar essas perspectivas restritas e dicotômicas operando-se com concepções instrumentais da comunicação e da política. O horizonte se modifica, em compensação, quando além de se considerar as dimensões institucionais da política — suas organizações, seus momentos de deliberação e decisão —, a pensamos como esfera e prática da vida coletiva na qual se desenham e discutem os sentidos da ordem social, isto é, os princípios, valores e normas que regulam a vida em sociedade e os projetos de futuro. Também se modifica quando, sem negar suas dimensões operativas, pensamos a comunicação como esses complexos intercâmbios através dos quais os indivíduos e grupos sociais produzem significados em permanente tensão e confronto. É nesse tipo de noções que se sustenta a sexta tese daquele texto de Caletti afirmando que a comunicação constitui a condição da política num duplo sentido: porque não se pode pensar a tarefa política como discussão de ideias sem atores que debatam e porque não se pode pensar essa prática em termos de construção de projetos de futuro sem a coletivização de interesses e propostas.
Essa particular e necessária articulação entre comunicação e política se produz hoje num espaço público constituído tanto pelo que chamei “a praça”, quer dizer, os espaços tradicionais de agregação e ação coletiva — espaços que vão adquirindo novas formas com a passagem do tempo —, e “a plateia”, ou seja, as práticas midiáticas que se sustentam em nossa condição de públicos de meios de comunicação e usuários de tecnologias de informação e comunicação2.
Esse espaço público midiatizado é um dos âmbitos principais onde se decidem hoje as lutas pelo poder político, pela condução da sociedade, que não são independentes do poder comunicativo-cultural, isto é, da possibilidade de construir ideas hegemônicas. Uma possibilidade em que intervêm decisivamente os dispositivos técnicos que permitam aparição e representação midiática de temas e atores. Daí John Thompson postular que “a luta por se fazer ouvir e ver (e evitar que outros façam o mesmo) não é um aspecto periférico das comoções sociais e políticas do mundo moderno; muito pelo contrario” — diz Thompson —, “é sua característica central”3.
Em nossas sociedades latino-americanas, que apesar da institucionalidade democrática são atravessadas por desigualdades e exclusões notórias, essas lutas por se fazer ver e ouvir, que são lutas contra quem busca impedi-lo, não são novas. Expressaram-se historicamente tanto na resistência dos povos originários como nas buscas culturais alternativas. No entanto, durante este século, vários países de nosso continente foram palco de esforços específicos para colocar em discussão os sistemas de meios de comunicação de massa e suas regulações legais, transformando o direito à comunicação numa das problemáticas onde se expressam mais fortemente as lutas pelo poder.
Posso sustentar essa afirmação nos enfrentamentos passados e até hoje vividos na Argentina em torno da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual ou aos que se deram e se dão em outros países da região, como Equador ou Uruguai, na mesma direção. Esses enfrentamentos se articularam em muitos casos a uma longa tradição de mídias populares, alternativas e comunitárias construídas a partir da necessidade e vocação de recuperar a capacidade e legitimidade de expressar-se, tanto para minorias excluídas como também para as maiorias que não possuem condições necessárias para acessar os meios de comunicação e as tecnologias. Em todos esses casos é possível reconstruir discursos e práticas que identificam claramente interesses antagônicos e suas consequentes justificativas ideológicas: ou seja, interesses comuns que afirmam ou negam a universalidade dos direitos à comunicação. E é aí que a articulação comunicação- política se revela com inédita potência, solapando como nunca aquelas alardeadas noções de independência e objetividade das mídias que integram os sistemas massivos de comunicação.
Para além das características particulares de cada um de nossos países, a existência de situações monopólicas ou oligopólicas que, longe de diminuir, se somam aos processos de desenvolvimento e convergência tecnológica, produz efeitos bem conhecidos: agendas únicas, vozes concentradas, insuficientes espaços para a expressão e representação de diferentes atores e setores sociais e políticos. Entretanto, além disso essas empresas que buscam centralizar em si os direitos à comunicação que são do conjunto da sociedade, não encobrem já suas motivações e estratégias nas lutas pelo poder. De maneira escancarada intervêm como um ator político que propõe ideias e projetos, convoca a participar ou a abster-se de fazê-lo, denuncia ou encobre personagens políticos ou empresariais, promove candidatos ou os estigmatiza, condena os movimentos sociais que confrontam a ordem estabelecida, julga a própria justiça, ainda que ela — em muitos de nossos países — não seja precisamente aquela dama equânime de olhos vendados, senão mais um instrumento de construção de iniquidade. Os casos do multimídia Clarín no recente processo eleitoral argentino e da Rede Globo no projeto de impedimento que se gesta no Brasil, são exemplos claros deste novo papel.
Entretanto, não creio ser adequado afirmar que a política se “faz” hoje nos meios de comunicação de massa, carregando esse fazer de um conteúdo negativo ou perverso. Historicamente, as construções políticas ti veram dimensões interativas e recorreram a meios expressivos. A política sempre foi uma ação prática e discursiva. O que ocorre hoje é que se produziram transformações cuja compreensão é necessária para poder atuar sem complacência, mas sem melancolia. Por um lado, como já apontei, o fato de que as corporações midiáticas assumiram sua inegável participação na construção de democracias formais e excludentes, praticamente sem intermediações, sem disfarces. Por outro, o fato de as instituições políticas — penso nos partidos, nos poderes do Estado, nas campanhas e processos eleitorais — se transformaram no marco da hoje chamada “democracia demoscópica” 4, uma ordem democrática em que a opinião pública midiática e as técnicas de medição e predição de comportamentos sociais têm um peso decisivo em definições estratégicas e táticas.
O questionamento crítico dessa nova matriz político-cultural não equivale a negá-lo. Nada pior que as atitudes voluntaristas quando o que se pretende é intervir nos conflitos pela hegemonia. Por isso, reconhecendo que o sistema comunicativo é mais um ator das disputas pelo poder em nossas sociedades, temos que nos atrever a assumir essa situação dos lugares complementares e mutuamente necessários: da busca de regulações que equilibrem a concentração midiática e assegurem condições mais equitativas para a gestão de meios de comunicação e o acesso a tecnologias adequadas a atores sociais diferentes e plurais; e a partir do desenvolvimento de práticas organizativas e políticas que, sem negar a existência de meios de comunicação e tecnologias, definam modos renovados de instalar temas, agendas, líderes, projetos, a partir de lógicas associativas e culturais capazes de confrontar os procedimentos fixados previamente pelos que pretendem controlar as iniciativas emancipadoras.
Nos dias de hoje, já não se trata somente de contar com mídias alternativas para que outras vozes possam ser ouvidas e outros rostos possam ser vistos, mas de assumir que uma das novas e decisivas batalhas é a de definir coletivamente a ordem político-cultural que desejamos para nossas sociedades. Porque certamente não há ordem política nova sem um novo modo de comunicar, mas não é apenas um modo renovado de comunicação o que nos permitirá construir democracias com direitos plenos e modalidades genuínas de participação e representação.
María Cristina Mata é pesquisadora e docente de comunicação na Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. Acompanha mídias e projetos de comunicação popular e alternativa no continente.
Artigo publicado na edição de junho 2016 da ediçao em portugês da revista América Latina en Movimiento: “La comunicación en disputa” http://www.alainet.org/pt/revistas/513-514 (ALAI - SENGE-RJ)
1 “Siete tesis sobre comunicación y política”, em Diálogos de la Comunicación No 63 (37-49). FELAFACS, Lima, 2001.
2 Noções desenvolvidas em “Entre la plaza y la platea”, em Schmucler H. y Mata, M. (Coord.), Política y comunicación. ¿Hay un lugar para la política na cultura mediática? (pp. 61-76). Catálogos - UNC, Buenos Aires, 1995.
3 Los media y la modernidad, p. 398, Paidós, Barcelona, 1998.
4 Ver Alain Minc, La borrachera democrática, el nuevo poder de la opinión pública. Ed. Temas de hoy, Madrid, 1995.
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