A metafísica dos sentimentos

29/08/2016
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 flor
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Amar não é aceitar tudo. Aliás:

onde tudo é aceito, desconfio que há falta de amor.

(Vladimir Maiakóvski)

 

A escolha do título deste artigo parece uma contradição. Afinal, sempre defendi que sentimentos não elementos abstratos do ser, mas algo vivenciado, por razões óbvias, sentido, portanto, parte do nosso mundo da vida. Uma realidade concreta.

 

Mas começo este trabalho a partir de uma contestação realizada por uma amiga, que me forçou a refletir como vejo a vida e interpreto as pessoas. Tudo começa com Saint-Exupéry e a frase clássica da raposa para o Pequeno Príncipe: “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. Particularmente, sempre vi a frase como uma reflexão relacional, derivada da troca realizada entre os indivíduos, na qual deixamos uma parte de nós quando dividimos o nosso mundo com o outro.

 

Há inequívoca influência da antropologia na minha interpretação inicial. Um pouco de sociologia e, confesso, até um certo ar de romantismo. Pois essa alma revolucionária e gentil, com a sua docilidade habitual, derrubou toda a minha tese ao argumentar que, na verdade, a frase da raposa de Exupéry é “impositiva”, “privadora de liberdades”… e, refletindo sobre o tema, fui obrigado a concordar…

 

Se é bem verdade que os debates entre a raposa e o príncipe apresentam os diálogos mais ricos da obra do autor francês, também não restam dúvidas de que os mais belos sentimentos humanos também podem resultar na privação de liberdade, sejam estes o amor, a amizade, o carinho, ou outros. Por trás de uma aparente beleza, muitas vezes, encontramos uma relação de dominação associada a comportamentos masoquistas.

 

Nossa sociedade oprime as liberdades e as diferenças, estabelece padrões de comportamento pré-formatados que limitam a expressão suprema do ser. Estamos diariamente sendo submetidos ao julgo constante da aceitação, e isto acaba criando pessoas submissas, sujeitas à destruição do íntimo e à perda da sua complexidade em favor de um comportamento socialmente aceito.

 

Na sua “Microfísica do Poder” Foucault descreve a importância que as pequenas manifestações de poder possuem sobre a conformação dos indivíduos aos parâmetros exigidos pela sociedade, o que compreende o controle do tempo, do espaço, do próprio corpo e dos sentidos. Em todos os ambientes por onde andamos, de alguma forma, sofremos a influência de alguma forma do poder, mesmo que das autoridades anônimas citadas por Eric Fromm no seu “Medo à Liberdade”.

 

A revolta contra a não aceitação acaba produzindo frustações que, muitas vezes, são acompanhadas da explosão do ódio e do auto-aprisionamento, sendo muito comum encontrarmos essas duas consequências nos chamados movimentos underclass.

 

A maior vítima da pressão dos mecanismos sociais de dominação exercida sobre aquilo que temos de mais próprio é o “eu individual”. As manifestações próprias do eu são reprimidas desde a infância, criando uma sociedade de individuais frustrados e limitados na sua individualidade. Reiteradamente acabamos reproduzindo, inclusive de forma inconsciente, comportamentos repressores contra nós e os outros, incluindo manifestações de preconceito, como o machismo e a homofobia, por exemplo.

 

Uma da forma de reação utilizada para enfrentar a repressão é a criação de barreiras, redomas, para a proteção do eu. Ou seja, a proteção contra o exercício do poder repressor é, contraditoriamente, o próprio aprisionamento. É por isto que costumo chamar a contemporaneidade de “sociedade do silêncio”. Não pela ausência de sons, cada vez mais presentes no mundo globalizado, mas do silêncio resultante da violência que cala a nossa alma, a nossa vontade, o próprio eu.

 

Como romper com tais limitações? Sinceramente, ainda não sei. O certo é que não vejo caminho no isolamento e distanciamento do mundo. Por mais que algumas terapias utilizem o controle temporário do espaço como uma medida de tratamento, com o uso de internação, meditação e outras técnicas, somos, em essência, somos seres relacionais. Estamos permanentemente realizando trocas, e por mais que deixemos a nossa marca individual nas pessoas que interagimos, esta ação não pode ser mais um meio de opressão.

 

A psicanálise criou mecanismos para análise individual por meio de relatos e interpretação de elementos íntimos, como palavras, expressões, comportamentos, histórico familiar. Até mesmo um simples gesto ou olhar pode dizer muito mais sobre o nosso “eu”, do que uma tese ou dissertação de várias páginas.

 

Aliás, como diria Freud, “quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir, se convence que os mortais não podem ocultar nenhum segredo”. Pois “aquele que não fala com os lábios, fala com as pontas dos dedos: nós nos traímos por todos os poros”. Contudo, a psicanálise não é um jogo de adivinhação, nem um elemento absoluto para a compreensão o humano. E aqui temos o ponto de partida para o reconhecimento de algo que a ciência não tem mecanismos efetivos para a tradução: somos muito mais ricos, muito mais intensos e plenos do que um relatório analítico. Jamais poderemos descrever em sua completude os sentimentos humanos sem vivenciá-los.

 

Vejamos, por exemplo, o mais intenso de todos os sentimentos que é o ato de amar. Amar, antes de tudo, é um verbo, jamais um substantivo ou adjetivo. Nós não temos amor, nós amamos. E esta, sim, é uma assertiva absoluta. Quando passamos a ver o amar com um substantivo, e o ser amado como um objeto, reduzimos a dimensão do sentimento a mero exercício de poder, de onde brotam os ciúmes, o controle e a repressão do outro.

 

Embora relacional, o amar também é o desejo de felicidade daqueles ou daquelas a quem amamos. Evidentemente, tal assertiva não pode ser trabalhada como uma negação do eu ou auto-aniquilação da individualidade. Afinal, somos seres dotados de desejos, sonhos, fantasias pelos quais lutamos dia a dia, e é isto que nos torna vivos. Ao contrário, defendo que, embora absoluto e intenso, o ato de amar, quando resulta em frustação, não pode ser um mecanismo de bloqueio para um novo caminhar.

 

O amor eterno e sem conflitos é um atributo de deuses. Logo, é algo idealizado. Defender interpretação distinta é convalidar todos os atos contínuos de violência e de flagelamento da alma que observamos no cotidiano, e que apresentam o amor como justificativa. Ninguém tem o direito de agredir uma pessoa, violá-la ou aprisiona-la com o argumento de estar fazendo isto por amor. Na verdade, tais comportamentos são derivados de insegurança e do desrespeito à individualidade.

 

O amar pode, sim, vir acompanhado de frustação, de sentimentos de decepção e de sofrimento. Pois somos humanos e imperfeitos. Contudo, o medo de amar nunca pode ser uma barreira para evitarmos a nossa caminhada. Às vezes, perdemos grandes oportunidades de crescimento fugindo do nosso íntimo. E isso produz um sofrimento muito maior do que uma eventual rejeição. Amar sem ser correspondido é algo normal, que é superado com o tempo. Deixar de amar, reprimir o amar, isto sim é problemático, pois contribui para todas as patologias psíquicas contemporâneas.

 

É por isso, que expressar sentimentos, sejam estes, amizade, paixão, amor, ou simples desejos, também é uma forma de libertação. Não precisamos condenar as pessoas à eterna responsabilidade de nos carregar por terem nos cativado. Entretanto, não precisamos ter medo de dizer “eu te amo”. Ainda que titubeantes, estas três palavras têm uma força única capaz de mover montanhas, mesmo que sejam as cordilheiras que bloqueiam a essência do nosso ser…

 

- Sandro Ari Andrade de Miranda, advogado, mestre em ciências sociais.

 

https://sustentabilidadeedemocracia.wordpress.com/2016/08/27/a-metafisica-dos-sentimentos/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/179789
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