O que nos espera: a fúria de um capitalismo sem intermediários
- Opinión
Consumado o golpe, com a aprovação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff pelo Senado (31.08.2016), o Brasil se vê diante da fúria de um capitalismo faminto e sem intermediários.
O mercado comemora a ascensão bruta ao poder sem peia, nem pejo.
Agora sim, são os ‘seus’.
Com a mão nada leve no leme estão Serra, Meirelles, Ilan, Jucá e assemelhados. Um dream team.
As exigências do lucro privado, as das corporações internacionais, dos rentistas e da república dos acionistas passam a ditar a política econômica do Estado brasileiro.
Não é metafórico: é ditar mesmo.
Com as implicações sabidas. O conjunto ambiciona reduzir ao mínimo o espaço de interferência dos demais interesses e protagonistas na engrenagem que comanda a esfera pública.
Inclua-se nesse descarte, sobretudo, a ampla maioria representada pelas famílias assalariadas e pelo cada vez mais amplo ‘precariado’, constituído, predominantemente, pela juventude sem emprego formal, sem renda regular, sem direitos, sem representação sindical –mas dependurada na sociedade através da versatilidade ubíqua do celular.
Não é modesto o papel que cabe ao Estado nessa reacomodação.
O destino do golpe –seu presente e seu futuro-- será jogado nesse braço de ferro.
O que se pretende é que o Estado consiga impor à sociedade sacrifícios dos quais o mercado não acreditava que o PT pudesse mais se desincumbir, pelo menos com a radicalidade requerida na reordenação imposta pela crise.
A fórmula consiste em tirar com uma mão e bater com a outra.
Ingressamos no terreno da economia política em estado bruto.
De um lado, assegurar a paz nas ruas da maneira como a sociedade e a opinião pública mundial tem visto acontecer; de outro, estrangular o gasto público para exigir o mínimo de aportes –leia-se, impostos— aos fundos federais.
A pretensão não se resume a conter.
Ambiciona-se regredir no tempo e evoluir na ganância.
É o que anuncia a PEC 241 que visa mutilar a Constituição Cidadã de 1988, congelando por vinte anos, em termos reais, a fatia do orçamento destinada a serviços essenciais que o Estado deveria prover e universalizar –e faze-lo com qualidade. Escola e saúde, por exemplo.
Nisso consiste o lado ‘mínimo’ do Estado neoliberal.
As consequências sociais prometem ser ainda mais avassaladoras do que a herança maldita de FHC, resumíveis em um dado convenientemente esquecido: quando Lula assumiu seu primeiro governo em 2003, cerca de 290 pessoas morriam de fome no Brasil por dia.
Sim, por dia.
É esse parâmetro retrospectivo que eleva os avanços sociais obtidos desde então à categoria das dimensões épicas.
O Brasil ‘lulopetista’ venceu a fome; a taxa de insegurança alimentar caiu de 10% da população para 1%; a miséria foi reduzida a 2,5% e cerca de 40 milhões de pessoas deixaram a pobreza, outras tantas avançaram na pirâmide de renda. O conjunto fez do consumo de massa o motor hegemônico na economia, abarcando mais de 50% da população. Se isso fosse um país estaria dentro do G-20.
O golpe de Estado classifica esse trunfo histórico como um estorvo fiscal.
Seu objetivo --insista-se-- é devolver a pasta de dente ao tubo.
Ou seja, reverter a inclusão social que não cabe na receita espremida pela queda da atividade, de um lado, e o veto das elites à maior tributação da riqueza, de outro.
Calcificar essa linha divisória é o mutirão ao qual se debruça o ministério dos sonhos do mercado – ‘sem a Dilma centralizadora para atrapalhar e o Lula populista para afrouxar’.
É essa a régua que orienta os sucessivos anúncios de decapitação de políticas, dissolução de estruturas, extinção de programas, revogação de direitos e de conquistas dos assalariados.
Trata-se de fazer um Brasil novo caber no orçamento velho. Aquele preservado da tributação da riqueza corrente e da taxação do privilégio acumulado.
Não se diga que o que caracteriza o alinhamento de boa parte das empresas brasileiras a essa agenda é apenas o pendor histórico à ganância.
É isso também, mas não só. E essa percepção adicional tem importância na ordenação da frente de luta contra o golpe, razão pela qual não pode ser minimizada.
Embora tenham se beneficiado de subsídios e renúncias fiscais da ordem de R$ 500 bilhões desde o início da crise mundial, em 2008, sem oferecerem contrapartidas proporcionais em manutenção de vagas e moderação de preços, o fato é que boa parte das empresas produtivas também carregam uma contabilidade crítica.
A crise da industrialização brasileira é um elemento crucial da encruzilhada vivida pelo país.
A agenda progressista não pode ignorá-la por uma razão bastante forte: os ganhos de produtividade industrial são essenciais à acumulação da riqueza necessária à universalização de direitos e serviços públicos de qualidade cobrados pelo povo brasileiro.
Não haverá como ostentar essa bandeira política de forma crível, sem equacionar o impasse industrial vivido pelo país.
O investimento industrial declina no Brasil desde 2009.
As fábricas perdem vendas internas para a concorrência dos importados, ao mesmo tempo em que veem sua competividade externa desabar, em grande parte, por conta de uma política cambial equivocada,
Nisso observa-se um fio de continuidade de mais de vinte anos interligando governos tucanos e petistas.
Com uma diferença não negligenciável: o neoliberalismo do PSDB não vê problema em sucatear a industrialização nacional – ‘e o mercado externo provê ao menor custo, ganha a eficiência’.
É ilustrativo da gravidade do impasse que enfrentamos que o PT discorde disso sem ter conseguido escapar do mesmo círculo vicioso.
O resultado é que uma parte suculenta (mais de 25%) do consumo manufatureiro interno, propiciado pelo salto no poder de compra do salário mínimo, dos empréstimos consignados, dos programas sociais e da forte geração de empregos em obras públicas registradas no ciclo petista, vazou para o parque industrial asiático.
A que preço?
Ao preço de menor geração de empregos de qualidade aqui; da subtração de receitas e investimentos, do desincentivo à modernização, da perda de cadeias produtivas e –sobretudo importante: da contração da base operária da sociedade, associada à precoce supremacia de uma massa de jovens acoplados a uma economia de serviços de baixa qualificação, baixos salários, baixa taxa de organização sindical e política (atenuada, parcialmente, por valorosas organizações horizontais da juventude, interligadas pela ubiquidade digital, e através das quais o golpe tem conhecido uma destemida contestação nas ruas ).
Em 2014/2015, quando o fôlego fiscal se exauriu --sem que a crise global tivesse terminado-- a correção de tarifas, como a de energia elétrica, que aumentou 50%, e a desvalorização cambial, agravaram as dificuldades de um parque industrial desatualizado e endividado em dólar.
Hoje a indústria brasileira opera apenas 76% da capacidade instalada.
Não tem razões para investir. Apesar do câmbio mais favorável, tampouco ostenta competitividade para avançar em um comércio mundial que cresce pouco e onde vender mais implica deslocar rivais do mercado.
A furiosa determinação do PSDB, da mídia e de Moro de derrotar o governo nas urnas em 2014 e, depois do revés, em derrubar a Presidenta reeleita, deu a esses ingredientes o impulso de uma espiral declinante devastadora.
A economia travou e passou a regredir.
O que se supõe agora, erroneamente, é que essa pandemia poderá ser revertida com o arrocho unilateral e draconiano sobre os trabalhadores e os segmentos mais pobres da população.
Trata-se justamente da pá de cal no processo.
O ‘reméio’ fará retrair ainda mais a demanda e a receita e esmagar o investimento.
O caminho que resta é o de puxar a saída do buraco com o gancho do investimento público em infraestrutura.
Somente um Estado legitimado pelas urnas para coordenar esse mutirão, dentro de um amplo esforço de repactuação democrática dos interesses sociais, poderá remanejar recursos e definir metas para obter os fundos necessários a essa impulsão.
Como se vê, estamos ao largo das receitas de manuais pretensamente científicos para problemas que remetem diretamente às escolhas políticas do desenvolvimento.
Essa percepção magnifica o papel da democracia, e a urgência de um salto participativo no escrutínio das agendas e projetos que vão modelar o futuro nacional.
Metas, prazos, salvaguardas, concessões e conquistas desdobradas no tempo terão que ser negociadas amplamente para reforçar a margem de manobra da economia e do Estado e desenhar o passo seguinte da sociedade e do seu desenvolvimento.
Insista-se naquilo que Lênin dizia –‘política é economia concentrada. Mais que nunca, a transparência para manejar essas decisões concentradas requer democracia ativa e Estado indutor.
É tudo o que o golpe pretende evitar enquanto se abala em acionar formas de ‘extrair o suor da população’.
A constatação emerge do conjunto das reflexões selecionadas neste Especial de domingo de Carta Maior. Composto de textos de articulistas e analistas incluindo, entre outras, as reflexões de Miguel Rossetto, Pedro Paulo Zahluth Bastos, Eduardo Fagnani , Rosa Maria Marques, Carlos Lessa, Roberto Requião e Paulo Kliass, ele convida à leitura com o olho no monitor e o coração na rua.
Em cada uma de suas especialidades, eles desvelam o que está por trás da série de medidas acenadas pela equipe tucana – que compõe o núcleo duro do golpe na área econômica.
Com voracidade, as elites - nacionais e internacionais – pretendem avançar sobre os cofres da União, emplacando a prioridade do “mercado” acima das prioridades do povo brasileiro.
À sanha em curso, soma-se a conta da crise financeira internacional.
Travestidas de “leis e decretos”, várias medidas como a PEC 241 ou o projeto de resolução 84/2007 de José Serra, anunciam o engessamento das possibilidades de investimentos sociais do Estado, ao mesmo tempo em que pavimentam um vergalhão de privatizações e liquidações de patrimônio público que atendem motivações ideológicas, políticas e fiscais.
Recursos do BNDES, antes demonizados, terão que lubrificar o financiamento da ‘venda’ do patrimônio nacional que sobrou da passagem do PSDB pelo governo.
Décadas de direitos conquistados por gerações ao longo do século XX e XXI estão no cepo do açougue golpista.
O subterfúgio da “redução dos gastos” encobre a pauta perversa que aguarda aprovação no Congresso Nacional. Medidas que incidem, inclusive, em áreas fundamentais como a Saúde e a Educação, tem como alvo a revogação de conquistas da própria Constituição brasileira.
Outras destinadas a alterar as relações no mundo do trabalho, incidem diretamente sobre a CLT, de Vargas, e o regime Previdenciário.
O retrocesso econômico que se instaura sob o aplauso da mídia compõe um horizonte indiviso de arrocho econômico, fiscal e político.
Vários artigos aqui selecionados demonstram que além de não ser o único caminho, este é justamente o que agravará ainda mais a crise.
Impõe-se goela abaixo da nação um programa neoliberal que jamais seria aceito pelas urnas. Um “programa” que passa por submeter integralmente o Estado aos ditames do sistema financeiro, tornando a população refém dos impulsos dilapidadores e das incertezas próprias dessa forma turbulenta e antissocial de acumulação da riqueza em nosso tempo.
Descarnar a Constituição, como se pretende, alterando o pacto social sem consultar a sociedade, é o requisito da restauração neoliberal.
Nisso consiste a essência do golpe, palavra que inflama os artífices do desmonte do Estado e da fragilização dos instrumentos democráticos que defendem a sociedade.
‘Diretas Já’ ou a fúria de um capitalismo sem intermediários --eis a disjuntiva do tempo que se abre
04/09/2016
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