A operação Lava-jato, segundo Moro

A pena, a mais grave das penas, que é aquela restritiva da liberdade, deixa de ser a conclusão do inquérito e do devido processo, para tornar-se seu vestibular.

28/10/2016
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lava jato
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Os sucessos objetivos, mediáticos e ideológicos do que hoje se intitula ‘Operação Lava-jato’, com seus erros e acertos, é a reprodução, quase mutatis mutandi, da italiana mani pulite, que tem no juiz Sérgio Moro, no Brasil, seu principal cavaleiro e seu escrivão, seu principal teórico e seu principal executante, pois o que se vê, e o que ainda se verá, entre nós, já podia ser lido em seu artigo “Considerações sobre a ‘Operação Mani pulite’” (R. CEJ. Brasília.n.26. p. 56-62. Jul/set.2004). Destaco o ano de publicação (2004) e lembro que a operação brasileira foi desencadeada em 2014.

 

A operação italiana terminou numa farsa – a eleição de Berlusconi; a crise política brasileira rapidamente transita para uma crise institucional que pode cobrar alto preço à democracia representativa.

 

Vale a pena, pois, revisitar o texto de nosso super-herói.

 

Escrevendo dez anos antes dos feitos curitibanos, Sérgio Moro, já então praticamente descrevia o quadro brasileiro de nossos dias ao anunciar as condições necessárias para o sucesso da ‘Operação’, e a primeira delas é a crise política alimentada pela crise econômica, como a que viveu a Itália entre o fim dos anos 80 e os anos 90, e a que vivemos a partir de 2013. Essas duas contingências retroalimentam e, administradas, produzem a “deslegitimação do sistema político”, com seu inevitável rol de sequelas, como a queda do debate ideológico, como o colapso da vida partidária. Na Itália, essas disfunções é que teriam produzido o que o juiz chama de “círculo virtuoso”, com a crise política ensejando a “maior legitimação da magistratura”, que, no Brasil se alça, por intermédio do Poder Judiciário à inconstitucional condição de Poder Moderador pairando sobre os demais poderes, mesmo neles intervindo, exorbitando de suas atribuições e judicializando a política.

 

A ‘Operação’ é projeto político carente de articulação política que se dá mediante a aliança da magistratura (no caso brasileiro a articulação Judiciário-MPF-Polícia federal) com a mídia, que, por seu turno, manipula o apoio da sociedade, pois, a conquista da opinião pública é condição necessária para o bom êxito da ação policial-judicial. É ingênuo pensar – diz-nos o juiz curitibano — “que processos criminais contra poderosos possam ser conduzidos normalmente”.

 

Esse sistema de elos faz surgir, diz-nos, uma “nova magistratura” que vai colher sua legitimidade, não mais na Constituição, mas diretamente na opinião pública, que, entre nós, é apenas opinião publicada, manipulada por sistema de comunicação que no plano empresarial é oligopolista e no plano ideológico um monopólio reacionário. Essa nova fonte de legitimidade, alimentada fora do corpo legal, levada ao limite, legitimaria decisões fora da lei, por estar acima da fonte constitucional, o que justificaria, já falou entre nós um Tribunal regional federal, a legitimidade de decisões excepcionais em “tempos excepcionais”, excepcionalidade essa decidida, por óbvio, ao talante do julgador. Estamos em face de limites preciosos pois não muito distantes de um populismo judicial que, se não contido, tudo terá a lembrar-nos o Volksgerichtshof, o Tribunal Popular da Alemanha nazista.

 

A deslegitimação da política, ponha-se o que se quiser em seu lugar, é o caminho mais curto para a derrocada do edifício democrático que, entre nós, já dá sinais de abalo com o protagonismo político de ministros, isoladamente, e do próprio Judiciário, como coletivo, quase sempre implicando severos danos à independência e separação dos poderes, e, como sempre, agredindo a ordem constitucional.

 

Moro destaca como fator essencial para o sucesso da mani pulite as prisões ‘pré-julgamento’, ensejadoras da coação sem a qual a política de delações (ou confissões), decisiva, não seria possível. O investigado, preso, é levado a colaborar, informado, falsamente, pela imprensa – ator decisivo em todo o processo, na Itália como no Brasil –, de que teria sido delatado em confissão de um comparsa:

 

A estratégia de investigação adotada desde o início do inquérito submetia os suspeitos à pressão de tomar decisão quanto a confessar, espalhando a suspeita de que outros já teriam confessado e levantando a perspectiva de permanência na prisão pelo menos pelo período de custódia preventiva no caso de manutenção do silêncio ou, vice-versa, de soltura imediata no caso de uma confissão (uma situação análoga do arquétipo do famoso ‘dilema do prisioneiro’). Além do mais, havia a disseminação de informações sobre uma corrente de confissões ocorrendo atrás das portas fechadas dos gabinetes dos magistrados. Para um prisioneiro, a confissão pode aparentar ser a decisão mais conveniente quando outros acusados em potencial já confessaram ou quando ele desconhece o que os outros fizeram e for do seu interesse precedê-los. Isolamento na prisão era necessário para prevenir que suspeitos soubessem da confissão de outros: dessa forma, acordos da espécie ‘eu não vou falar se você também não’ não eram mais uma possibilidade”.

 

Os frutos da mani pulite começam a surgir quando, em 1992, preso, Mário Chiesa, dirigente do PSI, iniciou sua série de confissões/delações, abrindo espaço para novas prisões e confissões, estimulado pelo anúncio de falsas delações. Justifica Moro: “Se as leis forem justas e democráticas não há como condenar moralmente a delação”, que se converte no cerne da operação: como os crimes contra a Administração Pública são cometidos às ocultas, “torna-se difícil desvelá-los sem a colaboração de um participante”.

 

Em diversos momentos, Moro defende a prisão como meio de instrução do inquérito, medida que se antecipa ao julgamento, pois, diz-nos, a delação premiada só é possível se o acusado se encontra sob coação:

 

Por certo, a confissão ou delação premiada torna-se uma boa alternativa para o investigado apenas quando este se encontrar em uma situação difícil”.

 

Assim, a pena, a mais grave das penas, que é aquela restritiva da liberdade, deixa de ser a conclusão do inquérito e do devido processo, para tornar-se seu vestibular.

 

A crise italiana fez brotar uma nova magistratura composta de novos agentes chamados de giudici ragazzii (jovens juízes) cujo grande mérito, palavras de Moro, é não professarem “qualquer senso de deferência em relação ao poder político”.

 

O juiz nos fala do ‘largo uso da imprensa’ e da política de vazamento selecionado, aqui um maná nas mãos de jovens juízes e procuradores imaturos em busca de protagonismo e um minuto que seja de fama, tanto quanto de ministros e ministras que não estão sabendo envelhecer.

 

Para desgosto dos acusados, diz ele, “(…) A investigação da mani pulite vazava como uma peneira. Tão logo alguém era preso, detalhes eram veiculados no L’Expresso, no La República e outros jornais e revistas simpatizantes. Apesar de não existir nenhuma sugestão de que algum dos procuradores mais envolvidos com a investigação teria deliberadamente alimentado a imprensa com informações, os vazamentos serviram a um propósito útil. O constante fluxo de revelações manteve o interesse do público elevado e os líderes partidários na defensiva”.

 

A publicidade – levada entre nós a extremos de irresponsabilidade e sensacionalismo – é exaltada por Moro, ainda quando aumenta o risco de uma acusação falsa, ou quando serve a pantomimas como aquela dos procuradores da chamada força-tarefa da Lava-jato, em Curitiba. A publicidade, manipulada, transforma-se em instrumento crucial para a eficácia das investigações. Seu objetivo não é a informação pública, primeira razão da imprensa na democracia, mas influir no procedimento policial, no qual se confundem, negando os princípios mais elementares do direito penal, juiz, investigador e promotor:

 

A publicidade conferida às investigações teve [na Itália] o mérito salutar de alertar os investigados em potencial [seu objetivo, portanto, não era informar a opinião pública] sobre o aumento da massa de informações nas mãos dos magistrados, favorecendo novas confissões e colaborações. Mais importante: garantiu o apoio da opinião pública às ações judiciais, impedindo que as figuras públicas investigadas obstruíssem o trabalho dos magistrados”.

 

Falhando o inquérito, mesmo o inquérito assim manobrado, falhando o julgamento ou mesmo a ele se antecipando, restarão, graças à publicidade e nela o papel da imprensa, o julgamento e a inevitável condenação pela opinião pública. “Nessa perspectiva a opinião pode constituir um salutar substitutivo (da punição judicial), tendo condições melhores de impor alguma espécie de punição a agentes públicos corruptos, condenando-os ao ostracismo” como condenaram – a imprensa e a opinião pública –, faz poucos anos, em São Paulo, os donos da Escola Base, acusados de crimes jamais cometidos.

 

Será que o combate à corrupção e à impunidade não poderia dar-se nos marcos do Estado de direito democrático, ou seja, sem tomar sua derruição como sua condição de possibilidade?

 

- Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia

 

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Leia mais em: www.ramaral.org

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/181282?language=es
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