O necessário romantismo na política

31/10/2016
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mundo
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Se as coisas são inatingíveis… ora!

Não é motivo para não querê-las…

Que tristes os caminhos, se não fora

A presença distante das estrelas!

 

(Mário Quintana)

 

 O título do artigo, por si só, é uma provocação. Um contraponto aos defensores do pragmatismo que afirmam não existir mais espaço para “romantismo” na política. Aliás, é sempre importante lembrar, já delimitando a análise, que o romantismo, neste caso, é a defesa de princípios e valores que são caros para a esquerda como a participação social, a tutela dos direitos fundamentais, a solidariedade e a economia solidária, as questões de gênero, a conservação do meio ambiente, dentre outros.

 

Palavras como “revolução” foram abandonadas no campo da política como se fossem ofensa à inteligência ou ideais utópicos cada vez mais distantes da realidade. As únicas “revoluções socialmente admitidas” são a revolução tecnológica alienada, a globalização do capital, a expansão do capital financeiro e outros mecanismos de arbítrio que promovem a desigualdade. Existem pequenas brechas para a defesa de revoluções financiadas pelas grandes potencias internacionais que, na realidade, são meros golpes de estado visando o aprofundamento das diferenças e o aumento do domínio militar e financeiro dos grandes centros do capital oligopolista. Mas o simbolismo de uma revolução é muito maior, pois visa transformar as bases da sociedade.

 

As três grandes revoluções da era do moderna, a Francesa, a Americana e a Russa, são tratadas cada vez mais como fatos negativos, seja pelo domínio da burguesia (França), do império (EUA), ou da burocracia (Rússia). Esquece-se, muitas vezes, que toda a gama de direitos fundamentais, de conceitos e ideais que empurraram as sociedades para avanços democráticos são derivados dos movimentos que conduziram tais revoluções.

 

A Grã-Bretanha passou por dois movimentos revolucionário importantes no pré-iluminismo, com a edição da “Magna Carta” pelo “Rei João-sem-terra”, em 1215 e pelas revoluções científicas e industriais no período Elisabetano. Mas o ideário político dos movimentos liberal, iluminista, socialista e comunista, que firmaram toda a lógica de construção social libertária que veio emergir nos períodos posteriores, é uma herança do iluminismo.

 

A Revolução Francesa foi, antes de tudo, o movimento pelos direitos humanos fundamentais e pela cidadania, e o seu lema “liberdade, igualdade e fraternidade” impulsionou uma luta que, até hoje, ainda não foi terminada. A Revolução Americana (ou norte-americana) lançou as bases para a defesa da participação política e pela consolidação das liberdades constitucionais. Já a Revolução Russa, deu sustentação para formatação posterior dos direitos dos trabalhadores, para a redução da jornada do trabalho e para a criação dos ideais de igualdade.

 

É evidente que nenhuma desta Revoluções, de fato, chegou a concretizar a totalidade dos seus ideais. Contudo, promoveram avanços verdadeiros no nosso dia a dia e tornaram possível a discussão sobre um mundo mais justo. A era das revoluções não ocorreu apenas na ação política. Também foi o fruto da emergência de movimentos intelectuais que permitiram pensar o mundo de forma diferente, mesmo que, muitas vezes, de forma utópica, com zeloso romantismo, para alimentar a esperança da humanidade.

 

No período do pós-guerras a destruição causada na Europa, Ásia e norte da África fomentou a construção de movimentos de consertação entre o capital industrial e as organizações de trabalhadores. O Welfare State europeu foi sustentado por governos de coalização política construídos além das estruturas de estado. Não só os partidos trabalhistas, mas as próprias organizações sindicais atuaram na elaboração desse projeto, o que representou uma significativa estabilidade econômica nas economias centrais.

 

Na periferia foi observado o crescimento do movimento anti-imperialista, com a independências de várias colônias europeias na África e na Ásia, do nacionalismo latino-americano (massacrado pelos golpes militares na América do Sul) e a grande Revolução Chinesa. Tais movimentos também foram fundados em projetos políticos anti-imperialistas com a promoção do protagonismo do Sul, o que, na maior parte das vezes, não ocorreu. Na prática, com a guerra-fria, tivemos um alinhamento entre os grupos do Leste, vinculados à União Soviética, e do Oeste, seguindo a doutrina norte-americana/europeia. Foram poucos os países que se mantiveram uma postura de não alinhamento direto.

 

Mas o pequeno período de estabilidade política e econômica do pós-guerra deu voz a outros movimentos sociais com capacidade de organização transnacional, especialmente o feminista, o ecológico e pela igualdade étnico-racial.

 

Diga-se de passagem, o movimento de libertação nacional na periferia desnudou o racismo branco exercido pelas potências ocidentais, inclusive dentro das suas próprias fronteiras. O fim da escravatura não foi suficiente para que europeus e norte-americanos mantivessem os não brancos em condições sociais subalternas, seja nas colônias, seja no território das metrópoles. As mulheres foram ter reconhecido o seu direito de votarem e seres votadas somente no entre e pós-guerras, e a crise ecológica global demonstrou que as fragilidades das bases produtivas do industrialismo capitalista estavam além da distribuição desigual dos bens de produção e do resultado da atividade econômica.

 

A luta política contemporânea, portanto, é bem mais multifacetada dos que os projetos defendidos na base das revoluções modernas. Todavia, o centro da desigualdade ainda continua sendo o mesmo: o monopólio dos meios de produção da vida real na mão de poucas pessoas.

 

A grande maioria das bandeiras defendidas pela esquerda política ainda estão vivas e cada vez necessitam de mais espaço. O modo de produção capitalista ainda produz desigualdades sociais gigantescas, as quais crescem com o domínio do capital financeiro e rentista sobre o produtivo. Milhares de mulheres são vítimas diárias da cultura do estupro e do patriarcalismo, sem contar o genocídio invisível e a mutilação que estão submetidas diariamente nas clínicas de aborto clandestinas em razão da sua criminalização. A xenofobia, a homofobia e o racismo continuam massacrando jovens nas periferias, sem contar a dor e a marginalização produzida pela violência física e pela simbólica. Outro problema que já é uma realidade inquestionável é a crise ecológica, cujos problemas são sentidos por todos com a perda de biodiversidade, a crise hídrica e energética, o desaparecimento crescente de zonas agricultáveis, os eventos climáticos extremos, dentre outros.

 

Em síntese, os principais problemas enfrentados pela sociedade e questionados pela esquerda continuam existindo e a defesa de bandeiras de luta igualitárias, antes de um romantismo estéril, é uma medida realista e necessária. O pragmatismo de resultados que emergiu na década de noventa com a terceira via do trabalhismo europeu não trouxe avanços práticos no enfrentamento das desigualdades sociais. Ao contrário, com a adoção de bandeiras conservadoras como a estabilidade fiscal e o controle da despesa pública criou um cenário econômico instável, facilmente revertido contra a sociedade pelos conservadores quando estes voltaram ao poder.

 

Desta forma, colocar no horizonte o exercício e o debate sobre experiências que promovam a igualdade social, como a economia solidária, a educação popular e a democracia participativa, são medidas fundamentais para a efetiva transformação da sociedade. O mundo nunca precisou tanto destas “atitudes românticas”, derivadas de conceitos éticos que pregam o não alinhamento com o pensamento conservador dominante.

 

O exercício e acúmulo de experiências transformadoras, como defendem Boaventura de Sousa Santos, Enrique Leff e James O’Connor, são essenciais para uma verdadeira transformação da sociedade. Parodiando o pensamento de Lenin, de nada adianta sonhar se não acreditarmos em nossos sonhos e confrontá-los com a realidade.

 

Mesmo que o tempo da concretização dos sonhos seja maior do que o alcançado pela prática das experiências já conhecidas, os resultados podem ser muito mais efetivos. Portanto, ainda é necessário um pouco do chamado “romantismo político”, das pessoas que sonham em transformar o mundo. Caso contrário, viveremos condenados a um mundo de autômatos, onde a política perde o sentido, transformando-se num universo esvaziado, abrindo vácuo para a perpetuação das injustiças.

 

Sandro Ari Andrade de Miranda, advogado, mestre em ciências sociais

 

https://sustentabilidadeedemocracia.wordpress.com/2016/10/30/o-necessario-romantismo-na-politica/

 

 

 

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/181349
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