O avanço do atraso e o desafio das esquerdas

07/11/2016
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As esquerdas e o pensamento progressista não podem ficar atônitos, fitando os céus à espera de sinais de alento no momento em que sofre aquela que pode ter sido sua mais profunda derrota em nossa curta e acidentada história republicana. Impõe-se, isto sim, aprender com os revezes, se formos capazes de interpretá-los.

 

Trata-se, o processo em curso, de verdadeira debacle não apenas do ponto de vista eleitoral-aritmético (por certo aquele que mais dói, embora não encerre toda a questão), tão festejado pela grande mídia, mas principalmente pelos indicadores ideológicos, bactérias não isoladas e que permanecerão desgastando o desgastado tecido político.

 

Com poucas e não significativas exceções, o eleitorado brasileiro votou, nestas eleições, preponderantemente pela direita ou pela alienação reacionária do antipoliticismo, que vai dar no mesmo. As esquerdas perderam substância eleitoral graças a erros crassos e reiterados, cuja responsabilidade a ninguém pode transferir. Perdeu o apoio do centro político-eleitoral, que migrou para o conservadorismo e para a direita, como gritam para ouvidos assustados os números das eleições do dia 30 de outubro. Eles revelam uma derrota ao mesmo tempo previsível e surpreendente em sua contundência.

 

Do esvaziamento eleitoral do PT nenhum outro grupamento do mesmo campo logrou beneficiar-se. A maior decepção deve ter ficado com o PSOL, anunciado em prosa e verso como seu beneficiário ao lado de outros candidatos de menor torque. Espera-se que o partido compreenda o papel histórico que as circunstâncias lhe ofereceram nessas eleições, aderindo à política de Frente.

 

O eleitorado independente e grande parte daquele que sempre optou pela esquerda ou pelo pensamento progressista migraram para constituir o maior ‘partido’ dessas eleições, a dramática e preocupante, embora claramente compreensível, emergência do desânimo (abstenção), do desencanto (voto em branco) e do protesto (voto nulo). Perfazem quase a metade do eleitorado, e em grande número de casos alcançam votação superior àquela dos prefeitos eleitos. Esse discurso precisa ser ouvido e entendido: a derrota do PT foi acachapante, mas nenhum outro partido, exceto o ‘não-partido’, credenciou-se para sucedê-lo.

 

Como toda e qualquer derrota eleitoral, essa não é definitiva, como as vitórias tampouco o são (terá finalmente o lulismo descoberto essa verdade acaciana?). Pode, contudo, perdurar se as esquerdas, a começar pelo PT, que perde a hegemonia sem ter a quem passar o bastão. Os petistas não tiverem a coragem e a humildade de proceder uma profunda e transparente autocrítica, que deve ao País e ao nosso povo há muito tempo. Uma autocrítica que se espera de igual forma e com igual desprendimento do governo da presidente Dilma e do presidente Lula.

 

Não se trata de auto-flagelamento. A autocrítica é devida aos trabalhadores, aos setores populares e, mais do que que nunca, à juventude. É preciso passar a limpo o feito e o recusado, como as transformações estruturais na sociedade, como a reforma politica, a reforma do Judiciário, a reforma tributária, a reforma agrária e a democratização dos meios de comunicação de massas. É preciso passar a limpo os últimos 13 anos de política de centro-esquerda e o papel nela desempenhado pelos partidos e instituições sindicais e populares.

 

As esquerdas têm muito a cobrar do Partido dos Trabalhadores, mas nada ganham com a sua imolação. O PT precisa entender que está diante de algo mais importante do que seu umbigo, de suas avenças e desavenças internas, das tricas entre facções e tendências, da redução do mundo real a uma disputa interna de um poder fátuo, que, se não foram a causa (e não foram), foram porém um agente desestabilizador no governo e na vida partidária, na vida política e institucional do País.

 

Por tudo isso, o pensamento progressista aguarda e cobra a reorganização do PT. Espera que seu fundador e principal líder assuma o papel que lhe cabe nessa contingência. O desafio que aguarda o partido, hoje, é maior do que o de sua criação em 1980.

 

Entre as muitas causas explicadoras da tragédia de hoje, para ser revisitada, destrinchada, entendida, há a crise de governança representada principalmente pelo segundo governo Dilma – é preciso assumi-la com coragem. Existe uma crise política de governo, uma enciclopédia de erros cometidos em face das relações entre governo e sindicatos e movimentos sociais. Há erros clamorosos na construção das alianças partidárias e eleição de aliados. E o erro central da ilusão da conciliação de classe na qual o lulismo ingressou, sem a companhia da classe dominante.

 

Conhecer e identificar esses erros é a conditio sine qua non para nossa recuperação, pois ignorá-los é a certeza de sua repetição, aí então fatal. A esquerda precisa revisitar o significado e as consequências da opção eleitoral e do pragmatismo que não poderiam ser confundidos nem com eleição a qualquer preço nem com governo de qualquer jeito.

 

O movimento social, quando não compreendido, gera surpresas, quase sempre desagradáveis para os condutores políticos. Os que não tiveram olhos para ver e instrumental teórico para compreender as jornadas de 2013 também não entenderam o claro discurso político representado pelas dificuldades das eleições de 2014. Adicione-se o fato de, eleitos contra a promessa do neoliberalismo conservador, havermos, no governo, tentado implantar a política econômica do adversário – e que tomou livre curso com a consumação golpe. O que se segue é história lamentável, conhecida e recente, que não carece de relembrança.

 

Diante dos fatos objetivos, porém, as forças populares, com os partidos e para além dos partidos, souberam reagir e em seu melhor momento compreenderam que os desafios impunham, acima de nossos desencontros menores e quase sempre irrelevantes, a política de Frente.

 

Foram as frentes, como a Brasil Popular e a Povo sem Medo, agrupando movimentos como o MST e o MTST, sindicatos como a CUT a CTB, e partidos do campo das esquerdas que promoveram a resistência mais consequente ao impeachment. Havia clareza de que estávamos diante de desafio maior: um golpe de Estado que caminhava para além da deposição de Dilma Rousseff (meta ostensiva e imediata), porque, mais profundo que o golpe de 1964, o golpe parlamentar-mediático-judicial de 2016 prescindiu da violência militar e se julga, hoje, em condições de colher nas urnas o respaldo para a consolidação de seu projeto: um governo neoliberal-conservador, anti-nacional, anti-popular, anti-trabalhista, antidesenvolvimentista e profundamente anti-democrático.

 

As lições deixadas pela política de Frente não podem ser relegadas a plano secundário. A ameaça do golpe em curso é maior que a de 1964 e tem raízes protofascistas: não podemos dar as costas ao pronunciamento eleitoral de 2016 e deixar de perscrutar o que pode ser, nesse sentido, 2018. São exemplares as votações de São Paulo e do Rio de Janeiro. Na capital fluminense, de tradição rebelde, o voto popular migrou para o pentecostalismo de direita, levando a esquerda para um gueto de classe-média e alta nos bairros da Zona Sul.

 

Para a integralização do golpe, sem atos institucionais, sem tanques, tornou-se fundamental destruir as organizações políticas de esquerda, a começar pelo PT (processo em curso). Além disso, sem mandá-las para o exílio, é preciso destruir nossas lideranças, e a bola da vez é, consabidamente, o ex-presidente Lula, vítima de processo mediático-judicial-policial de desconstrução jamais visto entre nós.

 

O golpe, repitamos mais uma vez e não pela última vez, não se esgota no impeachment. É pura e simplesmente uma etapa necessária para a repressão e a desconstrução de um projeto de desenvolvimento nacional autônomo, fundado no aprofundamento das franquias democráticas, no avanço das conquistas sociais, na emergência das massas, na produção da riqueza nacional e na distribuição de renda.

 

O projeto do golpe, com Temer ou sem ele, mas impossível com Dilma ou Lula, é essa política de terra arrasada contra a democracia, a independência e a emergência das massas.

 

Para enfrentar o programa da direita, de exacerbação da dominação de classe, precisamos de lucidez doutrinária, coragem política e eficiência organizativa, o que passa pela unidade das forças de esquerda, ponto de partida de uma política de Frente a mais ampla possível.

 

Já.

 

- Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia

 

O livro A serpente sem casca ( da ‘crise’ à Frente Popular) pode ser adquirido através do site da editora Contraponto clicando aqui.

 

Leia mais em: www.ramaral.org

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/181458
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