A prisioneira política de Macri: Milagro sem justiça
- Opinión
Contra ela já se disse tudo. Prepotente, enganadora, puta, baderneira, vagabunda, desestabilizadora social, turista de resort em Punta del Este, e já com Mauricio Macri como presidente e Gerardo Morales como governador da Província de Jujuy, também agregou ao seu currículo a acusação de “instigação a cometer delitos e tumultos”, associação ilícita, fraude, extorsão, “evasão fiscal e enriquecimento ilícito”, e até o de “homicídio qualificado por preço ou promessa remuneratória”.
Não é pouca coisa para uma mulher de 52 anos, que viveu desde os 14 anos nas ruas, após descobrir que era filha adotiva. Militou na ATE (Associação de Trabalhadores Estatais), nos tempos de Germán Abdala, um dos líderes mais expressivos de sua história. Organizou um movimento social, a organização indígena Tupac Amaru, com mais de 70 mil afiliados, dos quais exigia, como requisito para participar das assembleias, que fossem ao colégio, que alfabetizassem a si mesmo e aos filhos. Administrou recursos estatais para a construção de bairros populares com cerca de 8 mil moradias, instalou duas metalúrgicas, uma carpintaria, uma fábrica de paralelepípedos e blocos e outra de canos, além de dois centros educativos e de saúde, num dos quais está o primeiro tomógrafo disponível na região para a população mais empobrecida e marginalizadas. Também não é pouca coisa.
O perseguidor, e outros contos
O atual governador de Jujuy, Gerardo Morales, foi secretário de Desenvolvimento Social da Argentina durante o mandato de Fernando de la Rúa, entre julho de 2000 e agosto de 2001, quando se cozinhava a explosão popular que aquele governo tentou apagar com dezenas de mortos nas ruas do país. Logo, chegaria ao Senado, cargo que lhe conduziu à presidência da União Cívica Radical (UCR), último degrau antes de chegar ao governo da província. Durante todos esses anos, Morales impulsou uma enxurrada de denúncias e contradenúncias contra Milagro Sala.
Em 2009, ele acusou a líder indígena por “danos agravados e ameaças”, devido o escracho que ele e seus correligionários sofreram durante uma conferência do Conselho Profissional de Ciências Econômicas, na qual se analisava o uso dos fundos usados pelas organizações sociais. Sala não participou dessa ação, mas a causa começou a ser julgada nesta quinta-feira (15/12).
Em meados de 2011, Morales a acusou de “enriquecimento ilícito” e pela compra superfaturada de terras nas quais sua organização construiu casas, nas zonas mais carentes de Jujuy. Semanas depois, a líder da agrupação Tupac Amaru denunciou Morales por lavagem de dinheiro e o acusou de aumentar seu patrimônio irregularmente em 200%, segundo dados da declaração jurada perante o Congresso. Em sua defesa, a respeito das denúncias de Morales, a agrupação mostrou que as terras utilizadas para a construção das casas foram compradas pelo governo da Província de Jujuy, como era habitual, com a particularidade de que os vendedores eram deputados provinciais do Partido Justicialista (PJ) e da UCR, entre eles Freddy Morales, irmão do hoje governador e ex-funcionário da última ditadura cívico militar, que seria coautor de um delito caso fosse comprovado o superfaturamento.
Simultaneamente, a líder social preparou um informe para a então ministra de Segurança, Nilda Garré, no qual constaram os dados de políticos radicais vinculados aos supostos fatos vinculados ao narcotráfico e à violência política, em esquemas que tinham laços com a polícia local.
A escalada não se interrompeu até que, finalmente, o Morales que chegou ao governo provincial, com o apoio de Sergio Massa, Margarita Stolbizer e do próprio Macri, alcançou seu objetivo. No dia 16 de janeiro, a máxima dirigente da agrupação Tupac Amaru se tornou a primeira prisioneira política da administração do PRO, por “instigação a cometer delitos e tumultos”. Ou seja, por protestar. Desse modo, se aceleraram os tempos de uma perseguição política que começa a prejudicar a imagem e a credibilidade internacional do país, a harmonia entre os poderes e também entre os aliados do governo, e a convocar o fantasma da intervenção federal sobre a província, ou ao menos sobre o Poder Judiciário local.
Patinando entre bananas
Macri termina seu primeiro ano de governo acumulando graves erros e derrotas internacionais, e 2017 ameaça com ser um novo fracasso diplomático. A fantasia de eleger sua chanceler, Susana Malcorra, como a nova secretaria-geral das Nações Unidas se esfumou antes do tempo, apesar do apoio de mais da metade dos países membro do Conselho de Segurança do organismo multilateral. Outro episódio que prejudicou a imagem do país foi o desmentido oficial dos ingleses a respeito da falsa versão de que a primeira-ministra Theresa May estava “disposta a conversar” sobre a soberania das ilhas do Atlântico Sul, uma postura que demonstrou sua imperícia e falta de respeito pelos valores das relações exteriores.
Entretanto, para o presidente Macri e sua chanceler – que aplicou a vassoura na Chancelaria, mandando embora até mesmo os poucos funcionários respeitosos pela lógica da política exterior – essas não foram lições perdidas. A decisão de atacar e denegrir tudo o que tenha a ver com as políticas adotadas nos doze anos do governo kirchnerista foi mais forte, e o Executivo nacional se embarcou no Titanic regional de Morales, em Jujuy.
É um barco irremediavelmente fadado a afundar, porque essa cisma, alimentada pela decisão de violar normas provinciais, federais e internacionais o deixou sem alternativas. A liberação de Milagro Sala, que deveria ser imediata, por mandato constitucional, seria lida como uma derrota para as autoridades, tanto locais quanto federais.
Por outro lado, manter sua detenção constitui, segundo o Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Detenções Arbitrária, uma situação “violatória das normas do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, do qual Argentina é parte”. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que depende da OEA (Organização de Estados Americanos), apelou às autoridades do país em favor da liberação de Sala, e guarda na manga a possibilidade de aplicar uma medida cautelar “para evitar danos irreparáveis aos direitos básicos das pessoas”, o que aumentaria o desprestígio internacional do governo de Mauricio Macri.
Resta então a pior das alternativas: a deterioração da saúde psicofísica da prisioneira e, também, os riscos de algum tipo de violência dentro da prisão, onde os detidos costumam ser pressionados a declarar contra ela. Pessoas mais próximas à dirigente popular, e também seus advogados, consideram que os onze meses de reclusão estão afetando sua saúde psíquica, com indícios de depressão, que requerem atenção psicológica. Juan Grabois, dirigente da Confederação de Trabalhadores da Economia Popular e consultor do Conselho Pontifício de Justiça e Paz, assegura que o apoio internacional para com a prisioneira de Morales provocou um “aumento da hostilidade para com a vítima, que visa desestabilizá-la psicologicamente, induzindo sentimentos de fragilidade, desamparo, ansiedade, angústia, isolamento, abandono, culpa e frustração”.
Grabois, que é coautor da causa por privação ilegal da liberdade de Milagro Sala, também criticou o afastamento da psicóloga Laura Aguirre, designada oficialmente para acompanhá-la e “com quem Sala havia estabelecido um excelente vínculo terapêutico”, que foi “reavaliada, ameaçada e substituída por determinação do Poder Judiciário”, porque o chefe do serviço penitenciário, Víctor Morales, reclamava que o trabalho de Aguirre “fortalecia a detenta”.
Nesse sentido, o ex-membro da Corte Suprema da Argentina, Raúl Zaffaroni, “recordou” os juízes de Jujuy sobre o artigo 18º da Constituição do país, pelo qual eles “são responsáveis de que a ré não seja mortificada, que as condições a que está sujeita cumpram com as exigências de segurança e que os mesmos são responsáveis por tudo o que possa acontecer com Milagro Sala por impedir que ela tenha uma assistência psicológica adequada”.
Insegurança jurídica
A “chuva de investimentos”, prometida por Macri durante a campanha, parece que brilhará por sua ausência também em 2017, assim como foi neste ano que se termina, o que leva a governo a não alcançar nenhuma das metas econômicas anunciadas. Em virtude disso, o “Caso Sala” também se mescla aos fracassos macristas, já que também tem consequências parecidas às dos desatinos econômicos, como a de abalar a “confiança” internacional na Argentina.
O conceito de “segurança jurídica” sempre é reclamado por aqueles que manejam os fluxos financeiros internacionais, os especulativos e os investidores produtivos. O incumprimento de um mandato da Organização das Nações Unidas, por mais específico que seja, é analisado com atenção e antipatia por esses grupos, já que, a critério dos centros de poder internacional, um ato de desobediência à ordem mundial, ainda que seja um deslize, são uma mostra que o processo político e econômico do país é “instável”.
E posturas como essa cobram um preço. Macri e sua turma acham que tudo isso é grátis, e não aprende a lição. Sua Chancelaria corre o risco de receber novas críticas por não cumprir com a gestão da grande quantidade de notificações judiciais, a partir das investigações abertas contra o próprio mandatário e sua família, por contas offshore que podem ter sido utilizadas para lavar dinheiro proveniente de ações não legais ou constituir transações incompatíveis com suas funções de prefeito de Buenos Aires (cargo que ocupou antes de chegar à Casa Rosada).
Obras são amores
No caso da agrupação Tupac Amaru, é ainda mais complicado sustentar as acusações quando se abandonam os boatos e preconceitos e se observam os números. Embora não haja dados exatos dos montantes usados para a construção de moradias populares em Jujuy pelo grupo comandado por Milagro Sala, os registros proporcionados pelo Departamento Anticorrupção de Jujuy entregues aos diários Clarín e La Nación, com a intenção de danificar a imagem da líder indígena, podem ser de muita utilidade.
Até a prisão de Sala havia um total de 8532 casas projetadas, das quais 6732 foram terminadas, e pouco mais de 500 estavam em obras. Cada uma delas custou metade do valor de mercado e foram construídas num prazo quatro vezes menor que o que tarda o setor privado, além de gerar empregos para milhares de trabalhadores, que logo se tornaram proprietários dos imóveis.
Além disso, essas famílias e sobretudo os seus filhos desfrutam também de piscinas, escolas, parques recreativos, centros de saúde tudo isso construído com o dinheiro economizado pela gestão do total de 1,4 milhão de pesos recebidos.
Quando Milagro Sala foi detida, o diário britânico The Guardian e a revista italiana Domus mostraram sua surpresa e decidiram publicar galerias de fotos das construções organizadas pela agrupação Tupac Amaru, registradas pelo jornalista especializado em arquitetura e urbanismo, Justin McGuirk. “Dentro do bairro há uma grande piscina, um parque com figuras de dinossauros e uma réplica do Templo Inca de Tiwanaku. À distância, se parece a um bairro da classe trabalhadora de Liverpool, mas se trata do noroeste argentino”, se assombra McGuirk. Ele aponta que “a agrupação Tupac Amaru possui seu próprio sistema de construção de moradias, suas próprias fábricas, escolas e centros de saúde, um título de autossuficiência que nos leva à conclusão de que a organização efetivamente é um Estado sem o Estado”.
Neste caso, o olhar dos que conheceram a situação vivida por essas pessoas acompanha o grito dos históricos companheiros de lita de Milagro Sala. Quando ela estava livre, perguntava a eles, em cada um dos atos: “quem nós somos, companheiros?”, e recebia a trovejante resposta: “somos trabalho, educação, saúde!”. Tudo o que começa a faltar aos habitantes de Jujuy, e aos argentinos empobrecidos.
* Psicólogo e jornalista argentino. Investigador associado do Centro Latino-americano de Análise Estratégica.
Tradução: Victor Farinelli
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