Estado brasileiro é julgado em Corte Internacional por violações dos direitos humanos do povo Xukuru

21/03/2017
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O Estado brasileiro será julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pela violação aos direitos humanos do povo Xukuru - cujo território fica em Pernambuco - nesta terça-feira (21). É a primeira vez em que o Brasil estará no banco dos réus numa corte internacional por violações de direitos de povos indígenas. A audiência de julgamento, na qual serão apresentadas as alegações dos representantes das vítimas e do Estado, acontece na Cidade da Guatemala, a partir do meio dia (horário de Brasília).

 

A corte analisará a violação do direito de propriedade coletiva do povo Xukuru, do direito às garantias judiciais e proteção judicial e do direito à integridade pessoal, todos previstos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário. Todas estas questões estão relacionadas diretamente à demora do Estado brasileiro em garantir o direito do povo Xukuru de Ororubá à demarcação de sua terra tradicional.

 

Entre o início do processo de demarcação, em 1989, e a homologação da Terra Indígena Xukuru, em 2001, transcorreram-se 12 anos. Desde então, o Estado ainda não concluiu a desintrusão total da área nem garantiu a posse da totalidade do território aos indígenas, que ainda sofrem com a presença de posseiros na terra demarcada.

 

O caso é ainda mais significativo porque o problema se arrasta praticamente desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, que teoricamente deveria garantir os direitos dos povos indígenas, e foi marcado por grande violência e pela criminalização dos indígenas. Entre 1992 e 2003, cinco indígenas Xukuru foram mortos diretamente em função da luta pela terra, que vitimou até um procurador da Fundação Nacional do Índio (Funai).

 

“Esse julgamento traz a possibilidade de uma reparação histórica do processo de luta do povo pela demarcação, que custou muitas vidas. O Estado tinha todas as condições de fazer avançar o processo administrativo, sem que tivéssemos que expor nossas lideranças à luta e sem que precisássemos sofrer com os assassinatos, a violência e a criminalização, mas não cumpriu com suas obrigações”, afirma o cacique Marcos Xukuru, que acompanhará o julgamento na Guatemala.

 

Vítima de um atentado que resultou na morte de outros dois indígenas em 2003, Marcos Xukuru é filho do cacique Xikão Xukuru, importante liderança assassinada em 1998.

 

 

Cacique Marcos Xukuru (ao centro) está na Guatemala para acompanhar o julgamento. Na foto, Pajé Zequinha, cujo filho foi assassinado em 1995, fala ao microfone. foto: Renato Santana/Cimi

 

Histórico do processo

 

O caso dos Xukuru foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em 2002. No relatório de mérito do caso, divulgado em julho de 2015, a CIDH conclui que o Estado brasileiro é responsável pelas violações de direitos do povo Xukuru e faz recomendações ao Estado brasileiro, não cumpridas até hoje.

 

Por isso, em março de 2016, a CIDH decidiu submeter o caso à Corte Interamericana. São representantes do povo Xukuru na Corte Interamericana o Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH)/Regional Nordeste, o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a Justiça Global.

 

A audiência desta terça será a primeira e única durante todo o julgamento do caso. Depois dela, os representantes das vítimas e os representantes do Estado ainda têm até o dia 24 de abril para apresentarem novas alegações, por escrito, para que então a corte emita sua sentença sobre o caso, condenando ou absolvendo o Brasil das acusações.

 

A luta dos Xukuru é um exemplo emblemático dos desafios enfrentados pelos povos indígenas de todo o país, e o julgamento na Corte Interamericana representa também um reconhecimento internacional do agravamento das violações aos direitos dos povos indígenas no Brasil.

 

“Muitos povos indígenas do Brasil esperam vinte, trinta anos enquanto os processos de demarcação se arrastam e resultam em situações de violência e criminalização”, avalia o cacique Marcos Xukuru. “Há um conjunto de ações do Estado brasileiro que inviabilizam a reconquista de nossos territórios e a efetivação de direitos que temos garantidos. Sem voz frente ao Estado, ficamos numa vulnerabilidade muito grande. Não vemos outra maneira de resolver, a não ser pela pressão internacional”.

 

Histórico do caso

 

A Serra do Ororubá, em Pesqueira (PE), município encravado no Vale do Ipojuca, é o cenário de um contexto com mais de três séculos de espoliação e morte do povo Xukuru. Mas, nos anos 1980, essa trajetória começou a mudar. Com a nomeação de Xikão como cacique, os Xukuru se articularam e, após quase 20 anos de luta, em 2001, conseguiram a homologação dos 27.555 hectares em que vivem. Essas mesmas terras que já viram tanta morte abrigam, hoje, mais de 11 mil indígenas que lutam diariamente contra o preconceito e a violência para manter sua cultura viva.

 

Com o fim do regime militar e a transição democrática, a Constituinte de 1988 tornou-se o centro da luta do movimento indígena. Em Brasília (DF), Xikão e outras importantes lideranças indígenas e entidades indigenistas percorreram gabinetes, arregimentaram apoiadores, discutiram propostas, organizaram manifestações e, no final, viram entrar na nova Constituição o direito dos povos originários a suas terras tradicionais.

 

A vitória trouxe ânimo e, em 1990, os Xukuru iniciaram a retomada de partes de seu território tradicional, enquanto aguardavam a demarcação de sua terra pelo Estado. No decorrer dos anos 90, frente ao atraso da demarcação, uma sucessão de retomadas levou os fazendeiros a reagir. Em 1992, Pajé Zequinha teve o filho assassinado e, em 1995, o advogado da associação, Geraldo Rolim, também procurador da Funai, foi morto a tiros pelas costas.

 

Xikão sempre acreditou que a base da mudança de seu grupo estava na educação e na organização. Promoveu a criação de comissões de saúde e educação nas aldeias e da Associação do Povo Xukuru – sistema que funciona até hoje e estimula a participação dos indígenas nas decisões do grupo, geralmente discutidas em assembleias e seminários. Na manhã de 20 de maio de 1998, Xikão saía de casa, no bairro Xukuru, em Pesqueira, quando percebeu a chegada de um pistoleiro. Não teve chance de defesa. O assassinato teve repercussão internacional e mobilizou seu povo. Três anos depois, o líder da aldeia Pé de Serra, Chico Quelé, foi assassinado.

 

No dia 7 de fevereiro de 2003, com a terra Xukuru homologada há dois anos, a história mais uma vez se repetiria. Uma emboscada contra o cacique Marcos, filho e sucessor de Xikão, resultou na morte de dois indígenas responsáveis por sua segurança. Ao saber do atentado, os Xukuru decidiram reagir. Na véspera do carnaval daquele ano, um rastro de fumaça no céu indicava que a Vila de Cimbres havia sido retomada pelos Xukuru, 300 anos depois de construída em território sagrado indígena pelos colonizadores portugueses.

 

Criminalização

 

A reação dos Xukuru resultou na condenação de 35 indígenas, entre eles o cacique Marcos, a quatro anos de prisão. As investigações e denúncias afirmam que Marcos armou o atentado e a morte de dois indígenas para aguçar a revolta do seu povo e a saída das famílias não índias da vila. O mesmo ocorreu nas investigações dos assassinatos do cacique Xikão e de Chico Quelé, pelos quais foram culpados indígenas Xukuru. Dezesseis anos depois da homologação da Terra Indígena Xukuru, o Estado brasileiro ainda não garantiu a desintrusão total dos invasores da área.

 

Conselho Indigenista Missionário (Cimi)

 

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/184266
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