O comércio internacional não é para amadores
- Opinión
Os desdobramentos da recente operação deflagrada pela Polícia Federal (PF), a Carne Fraca, mostram, mais uma vez, que a disputa por mercados no comércio internacional, ainda mais num momento de recessão, é um jogo bruto para o qual os amadores que hoje ocupam o governo brasileiro não estão preparados. Podem ser muito bons na prática de golpes de Estado e na entrega do patrimônio nacional às corporações multinacionais, mas no quesito comércio internacional não são sérios, como se verifica pela sua ânsia em reduzir o Mercosul a um mero acordo de livre-comércio e em seguida fechar um acordo do Mercosul com a União Europeia. Os golpistas compartilham com muitos integrantes de nossa burguesia e dos meios de comunicação da tosca ideia de que basta boa vontade de negociar para se alcançar um acordo e que, provavelmente, por alguma determinação divina, não podemos prescindir desses acordos.
Chama a atenção o contraste dessas posições com as ações de diplomatas de outras épocas como o embaixador Celso Amorim que, antes de servir ao governo do presidente Lula como ministro de Relações Exteriores, foi chefe da Missão do Brasil em Genebra, quando o Canadá no início de 2001 suspendeu a importação de carne bovina brasileira, alegando que havia suspeita de sua contaminação pela doença da vaca louca e a qualidade do produto brasileiro foi colocada na berlinda, prejudicando nossas exportações. O golpe baixo desferido pelo Canadá aproveitou-se do desleixo do Ministério da Agricultura do governo FHC, que demorou dois anos para preencher a documentação necessária depois de importar 4 mil cabeças de gado da Europa para melhorar a qualidade do gado brasileiro. Como posteriormente a epidemia da vaca louca grassou em vários países da União Europeia, surgiu o gancho para o argumento canadense.
No entanto, a acusação do Canadá tinha como pano de fundo e verdadeira causa a disputa entre a canadense Bombardier e a brasileira Embraer, duas empresas de grande relevância no mercado mundial de aviões de passageiros de porte médio. A primeira acusava a segunda de receber subsídios governamentais e assim praticar dumping comercial. Era um momento em que o mercado de aviação comercial de médio porte estava em crescimento nos EUA e a Embraer tinha conquistado alguns contratos. Com a suspensão da importação da carne brasileira, o Canadá tentou introduzir um elemento novo a seu favor numa possível negociação.
Essa disputa iniciou-se em 1996 e terminou em torno de 2004, e a postura do embaixador Celso Amorim em Genebra foi ofensiva. Não cedeu à manobra canadense e a Bombardier perdeu sua causa na OMC, onde o tema da suposta carne contaminada também foi avaliado a favor do Brasil. O ex-ministro Amorim durante seus mandatos foi um defensor do livre-comércio, mas nem por isso se dispunha a aceitá-lo por mera convicção ideológica, como os neoliberais de plantão. A proposta brasileira que apresentou em 2003 para modificar o formato da Alca mostra isso, pois inviabilizou a continuidade de sua negociação, uma vez que Amorim sabia que a modificação das regras a nosso favor não interessava aos EUA e tampouco aos seus aliados nesse projeto.
Agora, a ação governamental limita-se a reclamar pelos cantos e aumentar a frequência dos golpistas às churrascarias para comprovar que o produto brasileiro é de boa qualidade. Como se alguém se importasse com seus hábitos alimentares. O problema é que dessa vez a acusação não vem do exterior, e sim de dentro do próprio governo, pois foi a Polícia Federal que anunciou com o costumeiro estardalhaço o resultado de suas investigações e diligências contra vários frigoríficos e fiscais governamentais. Tudo indica que as investigações tinham razão de ser, havia subornos de fiscais, contribuições para políticos e alguns envolvidos diretamente, como indicam os contatos do atual ministro da Justiça com um dos fiscais presos e, possivelmente, crimes cometidos pelas empresas acusadas. Por exemplo, lembremo-nos que a evasão fiscal de empresas brasileiras, principalmente por meio de adulteração de documentação relativa à exportação, é de alguns bilhões de reais por ano e dificilmente um setor econômico que é responsável por 7% do total de exportações do Brasil não estaria envolvido.
A pergunta que não quer calar é: como combater a corrupção, sem cometer arbitrariedades, acusar inocentes ou atirar no próprio pé? A resposta é: respeitando o preceito constitucional e legal da presunção de inocência.
A metodologia aplicada na Operação Lava Jato contra o PT com a manutenção de prisões preventivas por anos, negação de habeas corpus para os acusados poderem apelar em liberdade, invasões de domicílios e conduções coercitivas de pessoas que não se recusaram a prestar depoimentos, tudo com cobertura midiática sensacionalista, agora se aplica também em outros casos, em que a PF, o Ministério Público e o Judiciário estão envolvidos e se transformando num poder acima dos demais na República.
O jornalista Luis Nassif comentou que o episódio representou uma “burrice”. Pode ser, mas também pode ser que os vínculos internacionais da PF, do Ministério Público e até de juízes brasileiros tenham algum papel, pois no caso da exportação de carne bovina o Brasil é o segundo colocado no mundo, entre seus concorrentes com poder de influência estão EUA, Austrália, Nova Zelândia e Canadá, e no caso da carne avícola, em que o país é o primeiro exportador, responde por 40% das exportações mundiais, seguido por EUA e União Europeia. O jogo internacional é violento e o “entreguismo”, uma marca do governo golpista, pode envolver também outros setores do Estado.
O fato é que a agricultura e a pecuária brasileiras representam um elemento importantíssimo nas negociações comerciais internacionais, mas enquanto o problema atual não for superado, o bom senso indica que o Brasil não deve se aventurar em novas tentativas de buscar acordos onde eles ou não existem ou não são bons para o país. Aliás, a União Europeia está hoje mais interessada em buscar um acordo de livre-comércio com o Japão e já teria descartado a possibilidade de um acordo com o Mercosul este ano, apesar da frágil posição brasileira e da boa vontade dos três governos neoliberais do Mercosul – Argentina, Brasil e Paraguai.
A atual fragilidade do Brasil com sua imagem internacional cada vez mais associada a uma “República de Bananas” começou a ser construída no processo do impeachment, particularmente com as declarações dos golpistas na Câmara para secundar seus votos, na participação do Ministério e dos responsáveis pela coordenação política do governo de vários envolvidos na Lava Jato, na escolha do novo juiz para suceder Teori Zavaski no STF e agora com a Operação Carne Fraca, uma denominação assaz adequada.
Kjeld Jakobsen é consultor na área de Cooperação e Relações Internacionais.
Edição 158, 28 março 2017
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