Uma em cada quatro empresas de segurança em São Paulo é ligada a policiais

29/03/2017
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Ilustração: Caetano Patta
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A Pública levantou as fichas cadastrais das 476 empresas da área registradas na Junta Comercial de São Paulo; violência, uso de “bicos” de agentes públicos, clandestinidade e extravio de armas preocupam em um setor que não para de crescer

 

Cerca de um quarto (23%) das empresas especializadas em segurança privada registradas em São Paulo tem ou já teve policiais em seu quadro societário. Os dados são de um levantamento feito pela Pública com as fichas cadastrais das 476 empresas e cursos de formação da área registrados na Junta Comercial do Estado de São Paulo (Jucesp) e autorizados pela Polícia Federal (PF). Dos 127 policiais civis, militares e federais ligados às empresas, 73 ainda constam como sócios.

 

Certamente há muito mais agentes de segurança pública no setor privado de vigilância. O levantamento se refere apenas a nomes que constam como sócios das empresas – não cobre os que ocupam cargos como assessores e diretores. Também há muitos agentes ligados às consultorias especializadas do setor ou em que a sociedade está em nome de parentes, funcionários e representantes.

 

Não é uma prática ilegal. Segundo a Lei Orgânica das Polícias, os agentes podem ser donos de empresas de segurança desde que não sejam os administradores da sociedade ou trabalhem de fato nelas. Para estudiosos da área, porém, como o professor André Zanetic, do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV-USP), a questão é “delicada”. “Há riscos como a alocação de policiais nas empresas, às vezes mexendo até com a estrutura do dia a dia da atividade de segurança pública com base na rotina da segurança privada”, analisa. Um exemplo dos riscos apontados pelo professor ocorreu no Rio de Janeiro e foi revelado pelo repórter Antônio Werneck, do jornal O Globo. Policiais cariocas assediaram síndicos e comerciantes de Copacabana, oferecendo os serviços da empresa Santa Clara Vigilância para expulsar do bairro pessoas em situação de rua.

 

Há, ainda, um grande número de policiais associados ao enorme setor clandestino da segurança privada. Estima-se que para cada vigilante cadastrado haja outros três atuando na clandestinidade, frequentemente policiais, agentes penitenciários e outros servidores ligados à segurança pública.

 

A proximidade com os agentes é só um dos problemas associados ao setor, que vem crescendo exponencialmente no Brasil desde a sua regulamentação na ditadura militar. Entre 2002 e 2015, o faturamento nominal da área explodiu: passou de R$ 7 bilhões para R$ 50 bilhões segundo o IV Esseg (Estudo do Setor da Segurança Privada) feito pela Federação Nacional de Empresas de Segurança e Transporte de Valores (Fenavist). O número de empresas cresceu em torno de 75% entre 2002 e 2016, passando de 1.386 para 2.438 autorizadas a prestar serviços de segurança.

 

Quem contrata essas companhias são principalmente as indústrias, os bancos e o governo. Segundo o Portal da Transparência, o governo federal gastou mais de R$ 2 bilhões em contratos com empresas de segurança privada em 2016, representando cerca de um quarto do total dos gastos em serviços da União.

 

O número de vigilantes também impressiona. De acordo com os dados da PF – que é, por lei, a responsável pela fiscalização das empresas –, há quase 500 mil vigilantes cadastrados no país. Muito próximo do número de policiais civis e militares que atuam em território nacional: 552 mil. Entre 2010 e 2015, a PF emitiu em média 160 mil novas Carteiras Nacionais de Vigilantes (CNVs) por ano. Ainda segundo o órgão, as empresas de segurança privada possuem um arsenal de 248 mil armas e 122 milhões de munições.

 

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No RJ, 17,6 mil armas extraviadas de empresas de segurança em dez anos

 

Em um setor tão sensível, a prosperidade se traduz em números preocupantes. Um deles é o de extravio de armas do arsenal das empresas. Entre 2006 e 2015, 17,6 mil armas foram extraviadas das empresas privadas no estado do Rio de Janeiro e, no mesmo período, 1.016 da Polícia Civil e 645 da Polícia Militar. Os dados foram obtidos pela CPI das Armas da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), criada no final de 2015.

 

“Você já viu uma quadrilha pegar um carro-forte em trânsito, o que eles fazem?”, pergunta o presidente do Sindicato das Empresas de Segurança Privada, Segurança Eletrônica e Cursos de Formação do Estado de São Paulo (Sesvesp), João Eliezer Palhuca, que recebeu a Pública para a entrevista na elegante sala de reuniões da sua empresa de segurança, a Evik.

 

“Eles atiram até com bazuca, uma arma que derruba até avião, faz furo em blindagem de tanque de guerra. Nós tivemos em 2015 e 2016 11 mortes dentro de carros-fortes. Em locais de guarda de armamento, foram seis ou sete explosões com dinamite. Temos uma política de segurança pública fraca”, diz quando indagado sobre o alto índice de extravio de armas na segurança privada.

 

Esse argumento seria repetidamente ouvido pela Pública em entrevistas com empresários do setor para explicar o problema: empresas e vigilantes são alvos frequentes de ações criminosas e ficam sem as armas. O próprio Palhuca, porém, reconhece que isso não justifica plenamente a enorme desproporção entre os extravios de armas nos setores público e privado. “As empresas têm um contingente de armas enorme. Eu sei de uma empresa que tem 11 mil armas armazenadas, tem exércitos no mundo que não tem esse número. E, infelizmente, tem muitas que não armazenam essas armas em locais adequados. Tem empresa que armazena armas em lavabo, em cômodo com tijolo de barro. Com qualquer marretada, o cara pega as armas que quiser”, conta.

 

Martins, relator da CPI das armas no RJ: “Empresas registravam extravio de armas mesmo tendo dado baixa nos anos 1980” (Foto: Iuri Barcelos/Agência Pública)

 

Quem fiscaliza as empresas de segurança privada são as Delegacias de Controle de Segurança Privada (Delesps), da PF. A fiscalização é administrativa, limita-se a checar se a empresa cumpre os quesitos estabelecidos pela legislação federal e pelas portarias da própria PF. São eles: possuir capital social integralizado mínimo de 100.000 (cem mil) Ufir; provar que os sócios, administradores, diretores e gerentes da empresa não têm condenação criminal registrada; manter sob contrato o mínimo de 15 vigilantes; comprovar a posse ou propriedade de no mínimo um veículo comum, com sistema de comunicação ininterrupta com a sede da empresa em cada unidade da federação em que estiver autorizada e possuir instalações físicas adequadas segundo alguns critérios específicos – e aí se exige, sim, que haja locais seguros para armazenamento de armas. Para terem renovados seus alvarás, as empresas passam por uma fiscalização anual. Se há descumprimento de algum quesito, as punições vão de multas ao cancelamento da autorização para prestar os serviços.

 

Quando questionado sobre as providências tomadas depois de constatar a alta do extravio de armamentos, por exemplo, o chefe substituto da Delesp, Marcelo Daemon, disse à CPI das Armas que apenas informou aos órgãos de segurança pública, Polícia Civil, Polícia Militar. “Quando notamos algo pontual, expedimos ofício ao chefe da delegacia da área e, mais recentemente, expedimos também ofício para a nossa delegacia de repressão ao tráfico de armas e crimes contra o patrimônio”, disse em seu depoimento de 15 de novembro de 2015. Nem essa fiscalização administrativa parece estar funcionando. “Tem empresa que registrava extravio de armas mesmo tendo dado baixa nos anos 1980”, diz o deputado Luiz Martins.

 

Em nota, a PF informou à Pública que, “com a atualização da Portaria nº 3.233/2012-DG/DPF, a Polícia Federal irá exigir construção de salas de armas com mais elementos de segurança, e para a reposição dos produtos controlados extraviados, seja qual for o motivo, serão adotados critérios mais rigorosos de análise da ocorrência, inclusive com análise do histórico de ocorrências da empresa”.

 

À base de “bicos”

 

Outro ponto preocupante da segurança privada é o emprego de agentes públicos nos chamados “bicos”, principalmente pelas muitas empresas clandestinas do setor.

 

“É muito forte aqui no Brasil essa ideia de que segurança é coisa de polícia”, avalia Viviane Cubas, pesquisadora do NEV-USP e autora da tese “A expansão das empresas de segurança privada em São Paulo”. “O policial, quando vai atuar no serviço de segurança, está levando consigo toda a estrutura que o Estado investiu nele. Ele acaba vendendo um serviço privilegiado de polícia. Muita gente contrata um policial porque sabe que, se tiver um problema, ele vai ter acesso mais fácil à estrutura policial. É isso que o qualifica como um bom vigilante. Isso acaba sendo uma privatização de um serviço de segurança pública”, diz a acadêmica.

 

Para os policiais, a dupla jornada de trabalho também representa riscos maiores do que na atividade regular, como explica Viviane. “Se você pega os números da Ouvidoria de polícia, um grande número de policiais mortos em folga morre durante esses bicos. Eles estão trabalhando sozinhos, o que é mais raro de acontecer quando eles estão em serviço. Então eles ficam muito mais vulneráveis do que atuando por suas corporações”, diz.

 

Em 2015, o número de policiais civis e militares mortos em folga foi quase o triplo dos que morreram em serviço (267 mortos fora da corporação ante 91 fardados), segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. E a tendência de alta se mantém, como disse à Pública o ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo, Julio Cesar Fernandes Neves: “Nós observamos isso. O número de policiais mortos em folga vem sendo maior ano a ano do que os que morrem em serviço, e um número considerável dessas mortes ocorre durante esses trabalhos paralelos à atividade policial”.

 

“Só tenho a dizer que ele era uma pessoa maravilhosa, nunca deixava faltar nada para o nosso filho. Sempre nos apoiou da melhor maneira. Nunca nos deixou na mão”, diz Verena Dourado, ex-mulher do soldado da PMERJ Jefferson Cruz Pedra, morto aos 37 anos ao reagir a um assalto a uma joalheria no Tijuca Off Shopping, na zona norte do Rio de Janeiro. Jefferson morreu no dia 5 de janeiro deste ano. Ele havia se mudado de Salvador para o Rio após passar no concurso da PMERJ em 2012 e fazia bico nas horas vagas como segurança do shopping, como tantos colegas que tiveram o mesmo fim.

 

PF não tem registro de mortes praticadas por seguranças

 

O outro lado da moeda também mostra o descontrole da segurança privada. Quando um vigilante mata em serviço, por exemplo, ele é responsabilizado na esfera penal, e a empresa responde na área cível caso as vítimas procurem a Justiça para pedir indenização. A PF informou à Pública que não possui um levantamento das mortes praticadas por seguranças privados no Brasil. Isso apesar dos notórios casos de mortes provocadas por vigilantes.

 

Francisca, mãe de Alberto, morto por vigilante da Gocil  (Foto: Iuri Barcelos/Agência Pública)

 

Dia 11 de novembro de 2008. Alberto Milfont Júnior, 23 anos, morador do Capão Redondo, zona sul de São Paulo, foi a uma loja da Casas Bahia comprar um colchão para sua nova casa. Dali a pouco ele se mudaria com a futura esposa, Darilene Pereira Ribeiro, com quem já tinha um filho de alguns meses, e precisava mobiliar a nova morada. Ninguém esperava que ele fosse morto no processo. “O Júnior entrou na loja e o segurança começou a desconfiar porque ele estava de chinelo, acho que ele pensou que meu filho estava mal vestido”, relembra emocionada a mãe de Alberto, Francisca Aldeiza da Silva. Segundo o relato dela, Alberto entrou e saiu da loja várias vezes e notou que o segurança passou a acompanhar seus movimentos. Ele já havia comprado seu colchão e foi com a nota fiscal na mão discutir com Genilson Alves de Sousa, que fazia a vigilância naquele dia pela empresa Gocil.

 

“Ele quis confrontar o segurança para entender porque ele estava sendo seguido, mostrou a nota fiscal o tempo todo para ele dizendo que não era ladrão”, diz Francisca. Em dado momento, segundo a versão da família e de sua noiva, Darilene, que o acompanhava naquele dia, ele aumentou o tom. Genilson apontou a arma para Alberto, que questionou: “Vai atirar em mim? Atira. Quero ver se tem coragem”. O segurança retrucou: “Fala ‘duvido’”, desafiou. Alberto disse que duvidava e Genilson o acertou com um tiro no rosto. O jovem caiu morto na hora.

 

“Por mais que possa ter havido excessos, ele morreu defendendo um direito. Ele só queria ser bem atendido”, diz Ana Beatriz Fernandes Nogueira, diretora pedagógica da Casa do Zezinho, ONG que atua com crianças e adolescentes na região do Capão Redondo. A notícia, segundo ela, caiu como uma bomba entre os colegas de Alberto. “Ele era muito querido. Um menino muito alegre, que todo mundo gostava. Eu nunca vi uma igreja tão cheia como o dia que aconteceu a missa pra ele”, relembra Ana Beatriz. O segurança Genilson foi preso e condenado a 22 anos, mas recorreu e ganhou o direito de responder em liberdade.

 

Um caso mais recente ocorreu há poucos dias, em um posto de gasolina próximo ao aeroporto de Manaus, e indica um possível assassinato. O adolescente Isaque da Silva Correia, de 17 anos, havia saído para comemorar seu aniversário e festejava no posto com os amigos na madrugada do dia 11 para o dia 12 de março deste ano. Segundo as testemunhas, o vigilante Juliano Tanabe de Azevedo, de 25 anos, se aproximou do grupo e pediu que colocassem as mãos na cabeça. Em seguida, Isaque foi baleado com um tiro na nuca e morreu na hora. O segurança foi preso em flagrante e teve a prisão preventiva decretada pela juíza Andrea Jane Silva de Medeiros no último dia 13. A Pública não conseguiu contato com o advogado de Juliano.

 

29 de março de 2017

 

Ciro Barros e Luri Barcelos, da Agência Pública

https://goo.gl/n7U2QD

 

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/184457?language=es
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