O avanço do desastre e o imperativo da resistência

A marcha para trás não é apresentada como tal pelas grandes grupos de mídia, onde não há mais contraditório ao pensamento hegemônico.

03/05/2017
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Há momentos em que as notícias do grande desastre chegam fragmentadas e achamos que ele pode não ser tão grande. Que estamos exagerando, cedendo ao pessimismo. Há momentos, como netas últimas horas, em que os desastres chegam aos borbotões e não deixam dúvidas sobre o quanto o Brasil está sendo jogado para trás, explicitando a velocidade com que estamos sendo empurrados para o passado, num despojamento contínuo de conquistas civilizatórias, soberania, direitos e respeitos devidos numa sociedade que se quer minimamente democrática e humanista. A vertigem trazida pela percepção do desastre só deixa duas escolhas: entregar-se ou resistir.

 

Alguém dirá que a palavra resistência é inadequada a isso que o Brasil vive sob Temer. Que historicamente ela define o conjunto de ações do grupos e indivíduos que, em diferentes momentos da história do mundo, opuseram-se a ditaduras, tiranias e totalitarismos, Resistência houve à dominação dos mongóis sanguinários de Gengis Khan e às ditaduras sul-americanas, passando pelo nazi-fascismo e pelo Apartheid. Mas é exatamente a natureza singular da tirania Temer que torna a resistência necessária e ao mesmo tempo mais difícil, mais complexa. Aparentemente as instituições funcionam, ainda não viramos uma ditadura completa, mas o governo está rompido com a população. Vangloria-se de ser impopular para tomar medidas amargas, sintonizado com as elites financeiras locais e globais.

 

Quando reunidas, as notícias mais recentes do retrocesso não deixam dúvidas de que ele se aprofunda e se agrava. O Brasil é um carrossel desgovernado dentro de um túnel, no final do qual há um buraco negro. Nele mergulharemos se nada for feito. Nas últimas horas, sem falar no fracasso econômico, no desemprego e no desmonte do Estado, a rota da involução trouxe fatos graves que as mídias grandes minimizaram. Ou relevaram.

 

1) A resistência possível realizou uma greve geral na sexta-feira, 28, contra as reformas trabalhista e previdenciária. A mídia a tratou com desdém, o governo com falsa indiferença. Dela restam agora três presos políticos, militantes do MTST. Agravante. Guilherme Boulos, líder do movimento, denuncia que a juíza responsável pela prisão é frequentadora de atos promovidos pelo MBL e Vem Prá Rua, organizações que lideraram protestos a favor do golpe/do impeachment.

 

2) Apesar da greve, dos protestos no Primeiro de Maio, de ser aprovado por apenas 4% da população, e de 85% pedirem sua saída e a realização de eleições presidenciais diretas, Temer segue implementando uma agenda que não passou pelas urnas. A greve inibiu alguns parlamentares governistas, que querem adiar a votação da reforma previdenciária na comissão especial. Temer, porém, exige que ela ocorra amanhã. Hoje, demitiu de seus cargos pessoas indicadas pelos que votaram contra a reforma trabalhista. O Congresso foi reduzido a um mero o rolo compressor do governo em favor de sua agenda.

 

3) Diante do desmonte da Funai e dos seguidos sinais de descaso do governo para com os índios, eles foram duramente reprimidos na porta do Congresso na semana passada. E no sábado, jagunços de fazendeiros invadiram a aldeia do povo Gamela, no Maranhã. São 13 os feridos, sendo que dois tiveram as mãos decepadas. Quando os de cima flertam com a a barbárie, ela acontece.

 

4) Radicalizando com a precarização do trabalho contida na reforma aprovada pela Câmara, o PSDB, que conserva no nome a etiqueta de social-democrata, através de seu deputado Nilson Leitão propõe agora a volta ao feudalismo no campo. Os trabalhadores poderão ser pagos não só em dinheiro, mas também com moradia, produtos alimentícios ou de outros gêneros. E poderão trabalhar até 12 horas por dia, com intermitências fixadas pelo patrão. Este escambo, sabemos ao que leva: ao trabalho análogo ao escravo, em que o trabalhador estará sempre devendo no balcão da fazenda, não podendo nunca ir embora.

 

5) Vamos para outra frente, a do Estado de Direito. Justamente no dia em que o STF deveria julgar o pedido de Habeas Corpus de um preso da Lava Jato (não importa que ele se chame José Dirceu ou tenha outro nome), o Ministério Público apresenta nova denúncia contra ele para evitar o relaxamento da prisão preventiva já por demais alongada. Condenado, Dirceu não teve seus recursos julgados pela segunda instância. Quando assim age, o Ministério Público manipula o sistema jurídico para a satisfação de convicções e desejos. Abusa do poder e cruza a linha do Estado de Direito.

 

6) Voltemos à população e a seus sentimentos diante do desastre. Segundo o mesmo Datafolha, nunca houve tantos brasileiros com vergonha do país que têm: são 34%, o maior índice já obtido pela série. Os que sentem mais orgulho que vergonha são 63%, o indicador mais baixo da série.

 

7) No Rio, a violência explodiu novamente nesta madrugada, com incêndios de ônibus, engarrafamentos e caos urbano. A crise acirra as disputas territoriais entre grupos de traficantes e a população paga o pato.

 

A marcha para trás, entretanto, não é apresentada como tal pelas grandes grupos de mídia, onde não há mais contraditório ao pensamento hegemônico. As reformas são “modernizantes” e o governo é “reformador”. Temer já disse não ter cometido um só erro, pelo contrário, acha que só tomou medidas “corretas e corajosas”. O povo é que deve ser estúpido quando não lhe reconhece estes méritos, quando 91% dizem achar que o país está no rumo errado. Mas, embora 85% queiram eleições diretas e não queiram este governo, a resistência que se faz nas ruas ainda não expressa esta formidável maioria. E por isso eles seguem impondo a agenda e aumentando a velocidade do trem do retrocesso.

 

Enquanto isso, uma parte do Brasil distrai-se com uma suposta polarização entre “petralhas” e “coxinhas”, ou entre petistas e não-petistas, como se o fato de discordar do que está sendo feito significasse alinhamento com o PT. Aliás, isso começou bem lá atrás, quando qualquer um, inclusive na mídia, que não se filiasse ao antipetismo era carimbado como petista. A estratégias de dividir o país deu certo e facilitou o golpe e a imposição da agenda da regressão, que atingirá a todos. Por isso, na direita, alguns dos mais lúcidos já corrigem o discurso.

 

Há neste momento um descompasso entre sentimento e resistência. É preciso aprender a resistir, seja marchando nas ruas ou conversando com o vizinho.

 

Eu pensava nisso quando caiu-me nas mãos “A resistência”, o livro esplêndido de Julián Fucs, que remonta a outros tempo e a outra ditadura, a da Argentina. Mas no capítulo 26 ele fala com tanta precisão e beleza sobre esta angústia diante da necessidade e da dificuldade em resistir, em qualquer tempo a qualquer tipo de tirania que resolvo aqui compartilhar um trecho.

 

“É preciso aprender a resistir. Nem ir, nem ficar. Aprender a resistir”. E adiante. “Resistir: quanto em resistir é aceitar impávido a desgraça, transigir com a destruição cotidiana, tolerar a ruína dos próximos? Resistir será aguentar em pé a queda dos outros, e até quando, até que as pernas próprias desabem? Resistir será lutar apesar da óbvia derrota, gritar apesar da rouquidão da voz, agir apesar da rouquidão da vontade. É preciso aprender a resistir, mas resistir nunca será se entregar a uma sorte já lançada, nunca será se curvar a um futuro inevitável. Quanto do aprender a resistir não será aprender a perguntar-se?”

 

Perguntemos, pois, por quê, para quê e para quem tanto mal está sendo feito ao Brasil neste momento.

 

- Tereza Cruvinel, Colunista do 247, é uma das mais respeitadas jornalistas políticas do País

 

2 de Maio de 2017

http://www.brasil247.com/pt/blog/terezacruvinel/293405/O-avan%C3%A7o-do-desastre-e-o-imperativo-da-resist%C3%AAncia.htm

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/185213

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