Todo poder emana do mercado
Os donos do Brasil jamais aceitaram os avanços sociais de 1988, fruto da longa luta pela redemocratização do país.
- Opinión
O suposto encontro de Michael Temer com o "rei da Suécia" trouxe-me a lembrança de que o artigo primeiro da Constituição da Suécia determina que "todo o poder provém do povo". Lá, eles levam a sério esse negócio de democracia e Constituição. No Brasil, prevalece o secular cinismo desavergonhado.
Na Constituição de 1934, mesmo com o país submetido aos resquícios da escravidão, as chamadas autoproclamadas "elites" tiveram o despudor de copiar as democracias desenvolvidas e escrever que "todos os poderes emanam do povo e em nome dele são exercidos". O descaramento foi reafirmado na Constituição de 1967, outorgada, pasmem, em plena ditadura civil-militar.
Essa zombaria, típica de republiqueta de exploração mercantil e colonial, atinge níveis avassaladores na conjuntura. Há um fosso profundo entre os anseios da população e os desígnios dos detentores da riqueza financeira.
A sociedade é contra a permanência de Michel Temer na Presidência da República. Segundo a pesquisa Datafolha divulgada no sábado 24 , 69% avaliam governo como ruim ou péssimo, e só 7% dos entrevistados consideram-no ótimo ou bom. A renúncia é defendida por 76% dos entrevistados; 81% são a favor da abertura de um processo de impeachment contra ele; e 83% preferem que o novo presidente seja eleito diretamente pela população. Na pesquisa, 47% dizem "sentir vergonha de ser brasileiros".
O presidente não tem legitimidade política. Ascendeu ao governo por um golpe parlamentar e jurídico, sem respaldo popular. Há "provas abundantes" de que está envolvido em corrupção passiva, obstrução de justiça e organização criminosa. Nove ministros estão implicados junto com assessores próximos já descartados, parlamentares da base aliada, quase uma centena de deputados e um terço dos senadores. A pesquisa revela que 65% dos brasileiros disseram "não confiar" na Presidência da República e no Congresso Nacional.
Arranjo entre a política rastejante e a economia vulgar
O propósito declarado da conspiração que derrubou a presidenta democraticamente eleita era "estancar a sangria" e realizar as reformas de teor liberal exigidas pelo mercado. Esse arranjo conciliava os interesses da "quadrilha mais perigosa do Brasil" e dos detentores da riqueza que sustentam o governo em troca da ambiciosa "agenda de [suposta] modernização do Brasil" formulada pela "equipe econômica dos sonhos [deles mesmos]".
Entretanto, as delações do dono do frigorífico implodiram o tabique construído às pressas para estancar a sangria. As veias abertas afogaram o frágil arranjo entre a política rastejante e a economia vulgar.
Como se fosse possível, os ventríloquos do mercado, atordoados pelo imprevisto, passaram a ensaiar malabarismos deprimentes e constrangedores para separar a economia ("dream team") da política ("ala podre").
A política vai mal, mas a economia vai bem
No passado, um prócer da ditadura sentenciou que "a economia vai bem, mas o povo vai mal". Hoje os sábios das finanças e seus porta-vozes não se cansam de repetir que a economia vai bem, apesar de o País ser governado pelo "chefe da quadrilha mais perigosa do Brasil", da gravíssima crise institucional e da putrefação do sistema político e partidário.
A economia vai bem, a despeito da taxa de desemprego ter mais que dobrado em dois anos por conta das políticas de austeridade que provocaram a maior recessão da história.
A economia vai bem, mesmo com juros acima de mais de 10% ao ano – mesmo nesse cenário recessivo, pelo terceiro ano consecutivo, e desemprego em alta –, uma "aberração brasileira que virou chacota internacional, que inibe o crédito, os investimentos e cria custos inacreditáveis para o próprio governo", na correta avaliação de um empresário.
Não é preciso ser economista para deduzir que se trata de empulhação. Não sabemos o que acontecerá no dia seguinte, e ninguém tem a fórmula para tirar o país do atoleiro que resultou da aventura antidemocrática que destruiu o futuro imediato do país.
Nesse cenário, o desprezo pela democracia é constrangedor. Dá sempre na mesma, se é democracia representa os interesses gerais da sociedade ou os interesses dos donos da riqueza. Vale tudo para impor o "consenso sobre as reformas de que o Brasil precisa" e implantá-las a toque de caixa.
Vale tudo, desde que a equipe econômica seja preservada, pois nela se reúnem os únicos iluminados supostamente capazes de "proteger o País contra medidas populistas" e encontrar saídas para a recessão resultante das ideias desses mesmos atores, falsas saídas, as quais, por irônico que pareça, foram acolhidas pela candidata vitoriosa em 2014.
O que é bom para o mercado é bom para o país
Sem desfaçatez e com aparente normalidade, os intérpretes do tal mercado arrogam-se o direito de falar em nome da sociedade que eles desprezam absolutamente. Se "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição", como reza o primeiro artigo da Carta de 1988, soa como deboche a declaração do parlamentar que a preside de que e que "a Câmara dos Deputados vai manter a defesa da agenda do mercado".
Sem base científica consistente, impõem-se reformas "para o Brasil não quebrar, voltar a crescer e gerar emprego". Tanto faz se, no caso da reforma tributária e da reforma previdenciária, elas sejam rejeitadas, respectivamente, por 71% e 58% dos brasileiros. "Mas o mercado vai adorar, porque o capitalismo não é antiético, é aético.
Dê-me uma reforma da Previdência em que o dólar vai para R$ 3, e a Bolsa, para 75 mil pontos. É uma forma de o capitalismo dizer gostei. Vocês aí embaixo do Equador que se dividam para ver quem paga a conta. (...) O que o gringo quer do Brasil? Ganhar dinheiro, quer comprar alguma coisa, e o que vocês estão fazendo lá não me importa, vocês que moram no Brasil" – desdenha um desses intérpretes (Valor, 23/6/17)."
Museu de novidades
Escárnios à parte, o fato é que no Brasil todo o poder emana do mercado, que o exerce diretamente, ou por meio de representantes eleitos e porta-vozes travestidos de economistas e jornalistas. O fato é que, em ultima instância, o golpe jurídico-parlamentar é bem-vinda oportunidade para radicalizar o projeto liberal derrotado nas últimas quatro eleições. Em trinta anos, não há nada de novo no front. Parafraseando Cazuza, a conjuntura é "um museu de velhas novidades".
Essa construção inicia-se nos anos 1990s e prossegue com a "Agenda Perdida" (2002-2003), com o "Programa do Déficit Nominal Zero" (2005); após breve pausa, retorna com a "Agenda Brasil" (2015) e, de forma odiosa e antidemocrática, aí está hoje, no documento "Uma ponte para o futuro" –, que é uma negação do documento "Esperança e Mudança" (1982), escrito pelo mesmo PMDB –, agora transformado em "programa de governo" da coalizão espúria que está no poder. O mesmo projeto velho, com nova roupagem.
A ocasião faz o ladrão, diz o ditado popular. O golpe gera nova oportunidade, que não pode ser perdida, para completar um trabalho de três décadas que as urnas sempre rejeitaram.
Camisa de Força
O propósito do golpe é implantar até 2018, a arquitetura institucional ditada pelas finanças. O golpe abriu uma oportunidade para impor uma camisa de força que amarrará completamente qualquer futuro governante.
Os propósitos são, em primeiro lugar, levar ao extremo a reforma do Estado iniciada nos anos de 1990, tanto na infraestrutura econômica quanto na área social.
Em segundo lugar, reforçar a ossatura do "tripé" macroeconômico, que deve culminar com a redução da meta de inflação para 3,5% ao ano, prevista nos programas de governos derrotados em 2014, o que condenará o país a viver com baixo crescimento e juros altos por longo período.
Em terceiro lugar, destruir o Estado Social de 1988, pois "as demandas sociais da democracia não cabem no orçamento". Privatizações, teto para gastos não financeiros, ampliação da desvinculação constitucional de recursos (de 20% para 30% do percentual de impostos da Desvinculação de Receitas da União), Reforma da Previdência e da Assistência Social, terceirização irrestrita, desmanche da legislação do Trabalho e Reforma Tributária a favor dos mais ricos (além dos ataques recente ao FGTS e ao programa Seguro-Desemprego), estão em curso, sob o rolo compressor do Congresso e contra a sociedade, mas afinado com "a defesa da agenda do mercado".
Estancar as reformas
Os donos do Brasil jamais aceitaram os avanços sociais de 1988, fruto da longa luta pela redemocratização do país. O "capitalismo" brasileiro não aceita, sequer, conquistas mínimas da socialdemocracia europeia, aqui taxadas de "populistas" e "bolivarianas".
A agenda de reformas para a "modernização do Brasil" representa uma oportunidade, tantas vezes negada pelas urnas, de mudar o modelo de sociedade pactuado em 1988.
O período 2016-18 pode ser tempo da radicalização do neoliberalismo no Brasil, o que implica, dentre outras consequências, o fim do breve ciclo de restauração democrática e de construção de uma embrionária cidadania social iniciada em 1988. O resto é sofisma e empulhação.
Com Temer ou sem Temer não há legitimidade política e ética para uma ruptura de tal magnitude. Sociedade minimamente organizada em termos de democracia eficaz derrubaria o presidente da República, estancaria as reformas e faria cumprir o que reza o artigo primeiro da sua Carta Magna.
- Eduardo Fagnani é Professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit) e coordenador da rede Plataforma Política Social
29/06/2017
https://www.cartacapital.com.br/economia/todo-poder-emana-do-mercado
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