Maduros e velhacos: Brasil e Venezuela

31/07/2017
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Nicolas Maduro
Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom
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Duas informações que circularam nas redes, na semana que passou, são significativas para compreender em que medida podemos traçar uma comparação do que ocorre na América Latina, nos dias de hoje, com os tristes anos 70, nos quais se aperfeiçoaram as mais sinistras ditaduras, que bloquearam as lutas reformistas de esquerda e as democracias no continente. Foi a época em que CIA – a velha CIA dos velhos golpes e assassinatos de Mossadegh, Sandino, Lumumba – já unida à direita fascista nativa no Chile, sinalizou para o mundo que a social-democracia (sim, Allende era um social-democrata!) não teria a menor possibilidade de vingar por aqui e a Cuba comunista não poderia conviver na América Latina. Os EUA queriam continuar preservando o seu quintal à ferro e fogo e assim o fizeram. E agora estão fazendo de novo, por outros meios e “estilos”, aqui em busca do pré-sal, da ocupação da Amazônia de forma irracional, da posse das nossas riquezas minerais “baratas”, das nossas terras férteis para cultivos predatórios.

 

De lá para cá, muita água correu: a redemocratização pelo alto no continente, a queda do Muro de Berlim, o fim do sistema soviético. A emergência da China como potência econômica decisiva no planeta, que estimulou a multipolaridade político-econômica global e Obama, no contraponto à pior direita americana, que trouxe Cuba de volta, com a emergência reformista liberal-rentista. A radicalização da terceira revolução tecnológica – da informática à infodigitalidade – na América Latina, viu Ricardo Lagos, Kirchner, Chaves, Lula, Mujica ascenderem a governos no bojo da democracia. Todos, com os seus seguidores e consequências subiram com imperfeições, crises, continuidade da corrupção pelos mesmos atores de antes.

 

Limites, erros econômicos, não impediram grandes avanços distributivos: os pobres na mesa de negociação da democracia, melhoria do padrão de vida de milhões, menos crianças morrendo de fome, com o redespertar democrático, das sociedades periféricas ao núcleo orgânico do capitalismo rentista. O ódio de classe, manipulado pela maioria da grande mídia, todavia, espalhou-se como uma sarna moral. Dividiu famílias, criando hostilidade entre vizinhos, promovendo ataques físicos nas ruas e nas escolas. E aqui chegamos, exaustos, mas vivos, em busca de uma saída democrática autêntica, para o nosso país e a América.

 

A primeira informação a que me refiro, vem de uma entrevista do professor Luiz Moreira, ao jornalista Paulo Moreira Leite, no site Brasil 247, postada em 28 de julho. O professor Moreira é ex-integrante, por duas vezes, do Conselho Nacional do Ministério Público e um atento observador do processo político nacional, jurista reconhecido internacionalmente. Ele diz que o “Processo Constituinte venezuelano é prenhe de legitimidade”. Diz mais, que a eleição de 545 representantes, com 173 eleitos por “discriminação positiva” – oriundos de setores sociais frágeis em termos de força econômica e influência política – está seguindo o acordo da vontade constituinte originária, que construiu o atual Pacto Constitucional venezuelano. (Aliás, isso não é nenhuma novidade, no Estado de Direito formal – aduzo – pois os nossos atuais Senadores brasileiros que depuseram Dilma, por exemplo, não são eleitos a partir do critério “um eleitor, um voto”, pois o voto de um cidadão do norte que elegeu Jucá vale, talvez, dez vezes mais do que voto de um cidadão gaúcho).

 

A segunda informação a que me refiro, veiculada no dia 27 de julho, diz que o ministro Meirelles recebeu, dentro do atual sistema jurídico que vivemos – sem qualquer impugnação dos comentaristas de alta densidade moral e política da grande mídia – 217 milhões de reais, por consultorias prestadas a grandes empresas, inclusive a J&F, do sr. Joesley Batista, valores estes, de “acordo com os preços do mercado”, para tais serviços. Os recebimentos são recentes e parte deles foram pagos ao Ministro, já exercendo o seu cargo no atual Governo. Esta afirmativa, “de acordo com os preços do mercado,” deve ser verdadeira, porque o mercado na sociedade liberal-rentista, faz os preços dos seus serviços de acordo com a lucratividade que eles ensejam na acumulação sem trabalho, e os fazem -preferencialmente- por meios formais legais, quando isso é possível. O ministro Meirelles conhece profundamente o sistema financeiro e os espaços diretos ou indiretos de rentabilidade, para evitar um ganho “ilegal”, que poderia comprometer a fruição de toda a sua fortuna, se fosse flagrado por uma tipificação penal.

 

Na verdade estas duas informações podem colocar, para as pessoas sensatas, o debate político sobre o Brasil e sobre a Venezuela, em outro patamar, a saber, em torno do sentido ético-político de cada um dos projetos, que é capaz de ensejar maior, ou menor legitimidade, aos seus Governos e as suas formas democráticas, perante o povo constituinte. Suponho que é pacífico que, aqui no Brasil, está em curso – para sermos coerentes com as próprias alegações do atual “arco” de Governo – um projeto que pretende dar maior “produtividade” ao setor público, com a redução dos seus gastos sociais e todos os demais sacrifícios, que as medidas em curso infringem aos setores populares de baixa e média-baixa renda. Para este projeto nacional, não é estranho ganhos como este do ministro Meirelles, que é apenas um exemplo minúsculo de todas as possibilidades que o sistema oferece, como transferência de renda de “baixo para cima”, pelas mil formas “legais” que mercado financeiro sabe formatar.

 

Na Venezuela, temos um processo de crise diferente do nosso. A renda do petróleo, socializada sem previsibilidade pelos governos Chavez, contrariamente – por exemplo – ao que a Noruega fez depois das formidáveis descobertas de petróleo no Mar do Norte, levou rapidamente à crise aquele modelo distributivo. O Estado não induziu um modelo dinâmico e produtivo, capaz de reestruturar a sociedade de classes, na Venezuela, de molde a construir um novo bloco hegemônico. Bloco, de um lado, capaz de dar sustentação a uma revolução econômica, para proporcionar alimentos e educação, para os milhões de pobres, de maneira sustentável e, de outro, capaz de manter as classes médias relativamente estabilizadas, como ocorreu nos primeiros Governos da Revolução Bolivariana.

 

Pode se dizer, sem temor excessivo de erro, que o oligopólio da mídia, construiu aqui no Brasil – com os partidos e frações de partidos disponíveis para acordos espúrios (mais os “think-tanks” liberal-rentistas) uma saída política e institucional que ainda pretende legitimar, onde os ganhos legais de Meirelles se tornam um modelo de sucesso empresarial, sem qualquer cara de nojo das elites que descontrolam um “país à deriva”. A “legalização” do golpe por um Congresso marcado, numa parte significativa, pela corrupção e pelo fisiologismo histórico das oligarquias regionais ainda originárias da República Velha -com as quais todos os governos foram obrigados a governar – é o oposto do processo venezuelano. Pode-se dizer que ambos os sistemas são fruto da precariedade democrática das nossas instituições para resolver crises, mas um se submete à soberania popular e o outro (o nosso), tenta resolvê-la pelo fisiologismo e pela manipulação da informação, sem qualquer escuta da sociedade.

 

Também pode se dizer que a saída constituinte venezuelana é muito mais legitimável e moralmente digna, do que o golpe da Confederação dos Investigados e Denunciados, que acaba de fazer o país retornar à condição de pária internacional. Como já me perguntaram, em qual o regime eu gostaria de viver, nas atuais circunstâncias – o do liberal-rentismo do oligopólio da mídia ou o modelo de Maduro – eu já adianto a resposta, a quem interessar possa: eu preferiria viver em “nenhum dos dois”. E nem acho muito defensável, do ponto de vista da esquerda, um governo como o de Maduro. Para me definir, porém – em cada conjuntura concreta – eu sempre procuro olhar de que lado estaria a CIA. E fico do outro lado, se não for o lado dos fascistas ou dos nazistas. Isso serve, pelo menos, para ficar junto aos valores mínimos de uma utopia republicano-democrática, decente pelos menos nas suas intenções.

 

A subjetividade histórica das partes em confronto – colocada nos seus devidos termos – é extremamente importante na crise ideológica da pós-modernidade. Nela, aparentemente, todos os gatos parecem ser pardos, mas uns são tão pardos e velhacos que desaparecem no mercado das notícias e figuram, assim, como democratas de uma democracia sem povo.

 

- Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

 

julho 31, 2017

https://www.sul21.com.br/jornal/maduros-e-velhacos-brasil-e-venezuela/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/187206
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