Lula, a crise do paradigma Gramsciano e da nossa democracia

18/09/2017
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Uma das mais importantes contribuições teóricas de Antônio Gramsci foi a diferenciação que fez entre o Estado restrito e o Estado ampliado, que permitiu que concluísse que uma revolução explosiva, como a da Rússia, seria impossível no Ocidente.

 

Identificando-o na Rússia, denominou esse Estado restrito de “oriental”, caracterizando-o como possuidor de uma Sociedade Civil frágil ou “gelatinosa” sendo por isso governado muito mais pela força do que pelo consenso. E denominou de “ocidental” o Estado ampliado europeu, dotado de Sociedade Civil mais robusta, no qual o governo estava obrigado a exercer o poder pelo consenso respeitando o protagonismo e as pactuações com essa Sociedade Civil.

 

Nessa análise, os núcleos duros do Estado, nos dois casos, a Sociedade Política, se caracterizava por deter o monopólio do uso força e por ser o último recurso para a proteção do status quo. Gramsci explicitou, portanto, a ideia de que o Estado era sempre um arranjo entre repressão e hegemonia ou entre força e consenso.

 

Porém, ao tipificar de forma estanque o Estado restrito como oriental e o Estado ampliado como ocidental, Gramsci não teve tempo de enxergar que entre os dois havia na verdade uma “cronologia” e que o Estado restrito no capitalismo era a véspera do Estado ampliado. A história mostrou, posteriormente a ele, que o Estado sob o capitalismo evoluiu em diversos países de uma fase inferior restrita e autoritária (o Estado burguês clássico) para uma fase superior e ampliada, potencialmente democrática a depender das lutas (o dito Estado democrático de direito).

 

Essa “cronologia”, aliás, permite vislumbrar, o que é muito interessante, uma estranha simetria invertida entre a evolução interna que se constata no capitalismo contemporâneo (que vai do uso da força para o consenso) e a que ocorreu no modo de produção asiático quando a humanidade entrava na sociedade de classes (que evoluiu da democracia para o despotismo). No “Anti-Dühring” Engels vê no modo de produção asiático uma fase inferior democrática, ainda não classista, a que denomina de “Comunidade” ou Gemeinde e uma fase superior despótica, pela primeira vez, classista. Na saída da sociedade de classes, entendida essa “cronologia”, emerge no capitalismo o fenômeno simetricamente oposto.

 

Seria exigir de Gramsci dotes de adivinho se quiséssemos que fizesse mais do que a caracterização tipológica do Estado restrito como oriental e do ampliado como ocidental, adentrando por uma caracterização histórico-cronológica, capaz de mostrar que um surgia do outro. Embora frustrante, isso era o máximo a que podia ter chegado naqueles anos 30 do século XX. Entretanto, sedimentada a tipologia em lugar da historicidade, não tivemos como perceber, até os nossos dias, de que a força política que move historicamente o Estado restrito autoritário à condição de um Estado ampliado potencialmente democrático no capitalismo não é outra senão o proletariado.

 

A teoria insuficiente nos embotou a percepção de que em meio às revoluções libertárias que o proletariado fazia contra Estados restritos, como na Rússia ou na China, desenhava também, com muita luta e sofrimentos, no interior do próprio mundo capitalista, um processo de ampliação de Estados restritos e autoritários obrigando-os a curvar-se a uma liturgia democrática e ao exercício obrigatório de um poder baseado no consenso. Esse exercício do poder pelo consenso é, aliás, como sabemos, bastante inadaptado e incômodo à dita liberdade burguesa que tudo quer e tudo pode. Essa democratização/ampliação do Estado ocorreu na Itália e na Alemanha do pós-guerra e em Portugal, Espanha e América Latina no pós ditaduras, com diferentes profundidades a depender da maturidade política e força do proletariado em cada uma desses países.

 

Século das revoluções, o século XX foi atravessado, portanto, por dois modelos de revolução proletária simultâneos, as libertárias com a tomada de Estados restritos e as democráticas com a sua ampliação.

 

As revoluções libertárias, produziram Estados restritos, as democracias populares, que permaneceram devedoras de uma legitimidade existencial aos Estados burgueses clássicos e autoritários que elas combateram e frente aos quais figuravam como contrário dialético.

 

A evolução interna dos Estados capitalistas para a sua forma superior ampliada, entretanto, produziu um efeito colateral negativo sobre as democracias populares: a perda progressiva da sua legitimidade histórica, muito dependente da memória ou da existência daqueles Estados burgueses clássicos brutais. Esses Estados, entretanto, pela metamorfose interna imposta pelo próprio proletariado de cada país, estavam sendo ativamente convertidos à sua forma superior ampliada numa ação que fundou Estados de direito. O fim do primado daquele Estado burguês primitivo que funcionava estritamente como o comitê gestor dos interesses do capital tornou historicamente insustentáveis as democracias populares.

 

A tomada do poder nas revoluções libertárias e anticapitalistas, revoluções ativas que foram, sempre foi obra autoral explícita e ostensiva de partidos identificados com o proletariado. Nas revoluções democráticas há uma autoria política diluída numa ampla frente, uma autoria que naturalmente é compartilhada entre o proletariado e segmentos da burguesia que romperam com a ordem autoritária anterior e aceitaram compor uma nova ordem democrática onde figuram como forças que limitam o alcance das conquistas populares, fenômeno que dá ao Estado de direito uma dimensão de Estado pacto. A novidade nas transições democráticas contemporâneas é a figura de um protagonista novo: os Movimentos Sociais.

 

Mas quem é esse proletariado contemporâneo que parece emergir com tanta força ao desenhar a institucionalidade do século XX? Quem é, se já o acreditávamos declinante considerando a inegável diminuição numérica do operariado fabril, tido por Marx como o seu núcleo duro? Que relações estabelece esse proletariado com os Movimentos Sociais?

 

Para entender o alcance disto, é preciso separar o que é estrutural do que é superestrutural no sentido de que, depois que o proletariado consolidou a sua visão de mundo, uma assimilação ao proletariado em termos de ação política é viável e factível a partir de segmentos originariamente não proletários. Isso ocorreu em diversas revoluções socialistas onde o campesinato realizou revoluções proletárias, ajudado por uma esquerda urbana; situações em que o proletariado propriamente dito era numericamente minúsculo.

 

De fato, esse grande leque de intervenções da cidadania que milita nos diversos movimentos sociais temáticos (Negros, Sem Terra, Sem Teto, culturais diversos, Ecologistas autênticos, Feministas, etc.) só pode subsistir e sustentar-se porque exprime, através de sua militância, fragmentos de uma ideologia comum que é a visão histórica do proletariado, sem a qual nada disso teria viabilidade política, como não teve no passado. O problema para compreender isso vem do fato de que Lenin, indo além do que Marx jamais aspirou, reduziu a "ideologia do proletariado" ao marxismo tornando o caleidoscópio dos movimentos sociais algo que parece estranho à pureza do dito marxismo-leninismo.  

 

A cidadania atuante nos movimentos sociais, que assegura e expande direitos e garantias é, portanto, de fato, o próprio proletariado tal como se exprime nas lutas superestruturais reais, ainda que não forçosamente por origem social, nem por seguir o marxismo. Então, essa cidadania é a infantaria do proletariado na Sociedade Civil.

 

Isso significa que o papel democratizador e ampliador do Estado no capitalismo tem nos movimentos sociais cidadãos a sua principal alavanca e que a luta pela hegemonia na Sociedade Civil se dá pela democratização do Estado, pressionando-o para que passe a respeitar direitos, prerrogativas e garantias arrancados à fórceps através das lutas sociais.

 

Desde Marx o conceito de revolução ora diz respeito ao fenômeno catártico da tomada do poder, ora diz respeito ao processo capilar de metamorfose social que vai moldando o novo no ventre da sociedade velha pela ação da classe social que detém a iniciativa estratégica e pelo incremento das forças produtivas. A burguesia, por exemplo, avançou capilarmente em toda a Europa até a revolução francesa. É o que Gramsci denomina de Revolução Passiva. É natural que os avanços capilares da burguesia, por exemplo, na liberalização do comércio entre feudos na idade média, não tenham sido acompanhados de uma consciência clara do significado histórico daqueles feitos.

 

De que forma tudo isso altera o modelo de transição ao socialismo como previsto por Gramsci?

 

A tipificação estanque do Estado ampliado não permitiu a percepção de que a continuidade da sua ampliação/democratização é que era (e é) o grande vetor força da atuação do proletariado na Sociedade Civil. Em lugar disto, fomos levados a uma luta pela hegemonia numérica numa Sociedade Civil também entendida como estanque. Essa luta vem sendo travada unicamente como uma contínua tentativa de ocupar espaços e de eleger parlamentares que, apesar de sempre minoritários e derrotados, entendemos (pelo esforço hercúleo de elegê-los) serem protagonistas mais importantes que os movimentos sociais (a série B da política). Em lugar da guerra de posição, proposta por Gramsci, essa estratégia parece um transplante da guerra de movimento, tipicamente leninista, para o interior da Sociedade Civil. Cultivamos a ilusão de que em algum momento, considerando as conquistas físicas de associações, sindicatos, prefeituras, além de cargos públicos em instituições, galgaremos a nossa tão almejada hegemonia sobre os Poderes Constituídos com uma maioria parlamentar capaz de assegurar a virada no jogo. Eis a ilusão não explicitada.

 

Essa estratégia nunca foi proposta por Gramsci, mas o conjunto da esquerda, e os italianos primeiro, chegou a ela por suas naturalmente perdoáveis lacunas.

 

No Brasil acreditamos ter, na conjuntura, uma carta na manga para esse jogo, uma carta rara e improvável: a possibilidade de assumirmos novamente o Executivo por termos, e temos, um líder desses que só aparecem uma vez na história: Lula.

 

Pode ser. As coisas não são lineares. Mas o que é que Lula deve fazer para tornar esse processo democrático irreversível? Essa é que é a maior questão em jogo e essa é a questão para o debate.

 

17/09/2017

http://jornalggn.com.br/blog/ion-de-andrade/lula-a-crise-do-paradigma-gramsciano-e-da-nossa-democracia-por-ion-de-andrade

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/188104
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