Toda a terra será capturada?

27/09/2017
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Imagem: John Spooner
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No dia 16 de nov/2015 o jornal The New York Times publica uma matéria de página inteira sobre o TIAA-CREF (Teachers Insurance and Annuity Association – College Retirement Equities Fund). Um fundo que reúne investimentos de diversos fundos de pensão dos Estados Unidos e de outros países. Na matéria, o TIAA-CREF foi acusado de transacionar terras com um empresário brasileiro – Euclides de Carli, um típico grileiro – que empregava violência e fraudes para expropriar terras de agricultores familiares, bem como para burlar leis brasileiras que limitam a presença de investimentos estrangeiros nas terras do país. Na carteira de investimentos do TIAA-CREF constam, dentre outros, recursos de fundos de pensão dos professores universitários aposentados de Nova York; de aposentados públicos suecos (Second Swedish National Pension Fund); e canadeneses (Caisse de dépôt et placement du Québec e British Columbia Investment Management Corporation of Canada).

 

Conforme apontado no Relatório produzido por entidades da sociedade civil sobre o caso, as opções de investimentos em terras (TIAA-CREF Global Agriculture I e II) lançadas pelo Fundo em 2012 e 2015 somavam recursos na ordem de US$ 2 e US$ 3 bilhões, respectivamente, voltados para a aquisição de terras e o estabelecimento de fazendas agroindustriais por meio de empresas subsidiárias em países como Brasil, Austrália, Polônia, Romênia, Estados Unidos, Chile, Nova Zelândia e países da Europa Central e do Leste. O mesmo relatório aponta que a violação da legislação brasileira é somente um dos aspectos em questão. Somam-se a elas uma série de outras violações, tais como: processos de especulação de terras; land grabbing[1] (seja por compra ou grilagem de terras); destruição do meio ambiente; e superexploração do trabalho.

 

O caso do TIAA-CREF é emblemático na medida em que nos informa sobre a dinâmica mais geral de acumulação na agricultura e no capitalismo contemporâneo. Nem mesmo a terra, historicamente tida como o ativo mais comumente associado à noção de imobilidade e baixa liquidez, está fora dos circuitos financeiros que vem ditando os rumos e o ritmo global da economia nos dias de hoje.

 

Sabe-se que a internacionalização da agricultura não é novidade. A literatura mostra que já na década de 1870 estruturou-se o primeiro regime agroalimentar mundial[2]. Além de ter nascido como um sistema global, de lá para cá tal internacionalização só fez crescer. A esse fenômeno alia-se outro: o processo de oligopolização dos chamados complexos agroindustriais, que abrange desde o processamento até a distribuição dos produtos pelas redes de mercados e supermercados. Da mesma forma, não é de hoje que o capitalismo faz uso da expansão das fronteiras territoriais como forma de conter crises e aumentar os lucros, aproveitando-se sobretudo das barreiras ambientais e laborais geralmente mais frouxas nas regiões localizadas na fronteira do desenvolvimento.

 

Se é certo que este é um processo de longa duração, podemos nos perguntar: quais as especificidades e novidades deste início de século XXI?

 

Pelo menos duas características o particularizam. De um lado o boomde investimentos em terras em diferentes partes do mundo; de outro, vê-se que ele ocorre associado à multiplicidade de instrumentos (financeiros) disponíveis para sua realização e de agentes envolvidos nas transações. Como efetivamente isso se dá?

 

Global land grabbing: compras, vendas e grilagens de terra ao redor do mundo

 

Já no início dos anos 2000, diversos países lançaram ou atualizaram metas relativas à produção e ao consumo de biocombustíveis, como forma de fortalecer as agendas ambientais locais e mundiais e de atenuar os efeitos do aumento do preço do petróleo. Em 2003, por exemplo, o Brasil tornou-se um importante ator no cenário de biocombustíveis, em função do lançamento do Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel. A aposta nos biocombustíveis provocou um aumento no preço das commodities agrícolas, que, por sua vez, fez despertar o interesse a nível global por terras agricultáveis. Vale lembrar: este cenário acontece junto com as crises hídrica, energética e climática e as crescentes preocupações com a segurança e a soberania alimentar das nações, questões cada vez mais presentes nos noticiários, nas agendas nacionais e na vida cotidiana das populações. Por fim, temos os desdobramentos da enorme instabilidade provocada pela crise de 2008. Dentre eles, destaca-se a reorientação de parte dos investimentos financeiros em direção a mercados e opções mais seguras, mais transparentes, menos alavancadas e mais associadas a ativos reais e efetivamente produtivos.

 

Dados do estudo publicado em 2010 pelo Banco Mundial[3] – e as motivações para o envolvimento do Banco no assunto merecem destaque em si – a respeito da recente corrida global por terras (global land rush) nos permitem dimensionar o fenômeno. Antes de 2008, a comercialização de terras crescia em média 4 milhões de hectares por ano; entre 2008 e 2009, a demanda cresceu e mais de 56 milhões de hectares agrícolas foram comercializados, sendo mais de 70% concentrados na África.

 

Na realidade os números e as estatísticas relativas ao que alguns chamam de global land rush e outros de land grabbing são controversos. Eles espelham tanto a falta de precisão e de domínio das nações sobre seus territórios, quanto os próprios interesses em jogo no sentido de inflar os mercados de terras, com a consequente geração de maiores lucros para os investidores.

 

A conjugação desses acontecimentos teve influência sobre o preço das commodities e, consequentemente, das terras pela perspectiva da relação entre oferta e demanda. Contudo, alterações na estrutura de regulação das economias – em especial dos Estados Unidos – desde os anos 1980 também tiveram papel decisivo nesse processo. A complexidade da formação dos preços das commodities hoje reflete as condições e os custos de transporte, armazenagem, financiamento, a atuação de grandes empresas no processamento e na comercialização, bem como as oscilações presentes nos mercados de precificação futuros.

 

Questão fundiária em tempos de desregulamentação do capital

 

A entrada do mega investidor inglês George Soros no mercado agrícola é talvez o exemplo mais emblemático da relação entre capital financeiro e terras. Dentre sua enorme carteira de participações, Soros é o principal acionista da empresa AdecoAgro, produtora de alimentos e de energia renovável, nascida em 2002 na Argentina e presente no Brasil desde 2004.

 

As informações acerca dos riscos e retornos das opções de investimento são decisivas para a montagem das carteiras, que hoje são como verdadeiros mosaicos de ativos financeiros. É aí que se apresenta uma distinção fundamental entre a dimensão especulativa fundiária urbana e rural. Na medida em que é fator de produção, mas também atua como reserva de valor, a terra cria riqueza por meio de um processo de apreciação passiva (especulativo). Isto lhe confere, simultaneamente, características de ativo produtivo e financeiro. Diferentemente das propriedades fundiárias urbanas, que respondem pelas localidades das atividades produtivas, o caso dos imóveis rurais dificulta separação entre o valor de uso e o valor de troca.

 

Por tudo isso, ao invés de contrariar a lógica de curto prazo – dos retornos trimestrais aos acionistas que vem ditando o ritmo da economia global desde os anos 1980 –  os investimentos em terra foram incorporados a ela e devem ser vistos como parte desse processo[4]. Isto é, não há evidências de que a financeirização esteja sendo freada pelos investimentos em terra, mas, ao contrário, de que os mercados de terras estejam sendo incorporadas à sua órbita. Os mercados de futuros, operações de securitizações (hedgings) já são o cotidiano do comércio das safras de commodities agrícolas a nível global.

 

Cabe ainda destacar que a movimentação do mercado de terras transcende a produção agrícola stricto senso. A interrelação dos cultivos agrícolas com as demais atividades da cadeia agroalimentar atrai atores, interessados, por exemplo, na produção de maquinário agrícola, agrotóxicos, bem como no desenvolvimento de infraestrutura em geral, como as estradas, hidrovias, os galpões de armazenagem, etc. Cada vez mais são atraídos para o campo investidores ligados aos; a) capitais do próprio setor do agronegócio; b) capitais de setores sinérgicos e convergentes no agronegócio; c) capitais não tradicionais no agronegócio como empresas de petroquímica, automobilística, logística e construção; d) capital imobiliário em resposta à valorização das terras; e) Estados ricos em capital, mas pobres em recursos naturais; f) fundos de investimento; g) empresas de promoção de serviços ambientais; h) empresas de mineração e prospecção de petróleo[5].

 

Diante de tudo isso, mais do que especular se o mercado de terras está superaquecido, nos importa saber que ele está aquecido. A relação cada vez mais consolidada e dependente entre mercado de terras, agricultura e capital financeiro tem produzido, por um lado, consequências dramáticas para as populações camponesas e para as condições de segurança e soberania alimentar das nações; e por outro, tem contribuído para a geração de lucros exorbitantes com operações especulativas que alimentam o moinho satânico de acionistas e agentes do mercado nas grandes praças financeiras mundiais.

 

 

[1]  SAUER, Sergio; LEITE, Sergio. Expansão agrícola, preços e apropriação de terras por estrangeiros no Brasil. Piracicaba: Revista de Economia e Sociologia Rural, Vol. 50, N. 03, Jul/Set, 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/resr/v50n3/a07v50n3.pdf

 

[2] FRIEDMANN, Harriet. The political economy of food: The rise and fall of the postwar food order. American Journal of Sociology, jan, 1982.

 

[3]  BANCO Mundial. Rising global interest in farmland: Can it yield sustainable and equitable benefits? Washington D.C., 2010. Disponível em http://siteresources.worldbank.org/DEC/Resources/Rising-Global-Interest-in-Farmland.pdf

 

[4]  Fairbairn, Madeleine. ‘“Like Gold with Yield”: Evolving Intersections between Farmland and Finance’. The Journal of  Peasant Studies, 41 (5): 777–95, 2014.

 

[5]  WILKINSON, John, REYDON, Bastiaan e Di SABBATO, Alberto. Concentration and foreign ownership of land in Brazil in the context of global land grabbing. Canadian Journal of Development Studies/Revue canadienne d’études du développement. Vol. 33, no. 4, 2012, p. 417-438.

 

- Luiza Dulci, no Indebate 

 

26/09/2017

http://outraspalavras.net/capa/toda-a-terra-sera-capturada/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/188304?language=es
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