Bairros populares da Venezuela enfrentam crise de abastecimento com hortas urbanas
- Opinión
Caracas.- A comunidade escolar foi convocada para ajudar na limpeza e plantio da horta comunitária a horta Ezequiel Zamora, em pleno centro de Caracas, capital da Venezuela. Eram 8h da manhã, de um sábado ensolarado quando começaram a chegar os primeiros voluntários. Em poucas horas o local ficou lotado de crianças, jovens e adultos. Faltaram ferramentas para tanta gente querendo ajudar. No terreno onde antes eram deposito toneladas de lixo, agora brotam alimentos como hortaliças, verdura, frutas e até ervas medicinais.
Construída em 2007, a horta Ezequiel Zamora é fruto da organização do povo. Ela é cultivada pelo Coletivo Montaraz, conformado pelos moradores dos bairros Caño Amarillo, 23 de Janeiro e Catedral, todos de classes populares, considerados um bastião do chavismo e do "socialismo do século 21" defendido pelo ex-presidente Hugo Chávez.
Caño Amarillo foi um dos primeiros bairros onde foi implementado, em 2003, o programa social Missão Barrio a Dentro, com atendimento de médicos cubanos de forma gratuita. Era o início do sistema de saúde pública que existe até hoje em toda Venezuela. Já o 23 de Janeiro e o Catedral são conhecidos por abrigar importantes grupos de resistência que defendem o socialismo e pelo papel fundamental que desempenharam na derrota do golpe de Estado contra Chávez, em 2002.
Bairros que participaram ativamente da história política da Venezuela hoje protagonizam projetos de agricultura urbana, em busca da sonhada soberania alimentar.
“Levamos dois anos para integrar a comunidade nesse projeto da horta urbana, porque as pessoas não tinham nenhum vínculo com a atividade de agricultura. Esses são bairros de trabalhadores do comércio, dos bancos e operários. Tivemos que passar por um processo de conscientização e, agora, estamos recém consolidando esse projeto”, destaca um dos criadores da horta Ezequiel Zamora, William Pacheco.
Ele explica que os alimentos colhidos na horta são vendidos a preço de custo para os moradores do entorno e para as comunidades escolares da região.
“A prioridade é abastecer os bairros. Depois, quando sobra alguns produtos, nós vendemos em um quiosque que temos em frente à horta. Esse dinheiro é investido em sementes e adubos”, explica William. A horta comunitária também é amparada por pesquisadores universitários que ensinam a comunidade como produzir suas próprias sementes.
“A estimativa é de que só em Caracas existam cerca de 300 hortas comunitárias como a nossa, de acordo com dados do governo nacional”, afirma William Pacheco.
A horta Ezequiel Zamora é relativamente pequena se comparada à horta do canteiro central da Avenida Bolívar, uma das principais vias do centro da capital venezuelana. Perto da mesma avenida, ao lado do hotel Alba, fica a Horta Organopônica Bolívar I, onde o agricultor Manuel Lenin Velásquez planta pepino, berinjela, banana, abacate, hortaliças e outros alimentos em 155 canteiros. Além dos legumes, Velásquez também produz as sementes para continuar plantando esses e novos vegetais. A plantação abastece a um conjunto de casas populares localizado na região.
Outra horta que virou referência é a chamada de Mi Conuco 86, que ficou especialmente famosa no país, devido à uma visita do presidente Chávez fez uma visita surpresa ao local.
O então presidente venezuelano gostava de fazer visitas surpresas a locais de organização popular. Esta vez andava sozinho, vestido como um cidadão comum e um boné. Dias depois voltou com um batalhão de imprensa e assessores. A horta, com 2 mil metros quadrados de área, produz quase 4 toneladas de alimentos orgânicos por ano, segundo o agricultor urbano Rubén Laya, responsável pelo espaço.
Soberania
Atualmente, a Venezuela importa cerca de 50% dos alimentos que consome, segundo dados do Ministério de Agricultura. Já a Federação de Câmaras de Comércio de Produção da Venezuela (Fedecamaras), conformada por empresários que fazem oposição ao governo Maduro, afirma que o percentual de produtos importados é de 80%.
Para diminuir essa dependência, o governo Maduro, junto com alguns governadores e prefeitos, estão desenvolvendo uma série de projetos na área de agricultura urbana. “Temos uma economia rentista, mas queremos mudar para economia produtiva”, afirma William Pacheco, do coletivo Montaraz.
Desde o ano passado, a prefeitura de Caracas, administrada pelo prefeito Jorge Rodríguez (PSUV, partido governista), também tem impulsionado uma série de iniciativas. Atualmente, existe três grandes corredores produtivos na zona norte de Caracas. Um deles é a comunidade de Junquito, conformada por 23 campesinos.
“Esse terreno foi destinado à reforma agrária pelo presidente Chávez e agora produz hortaliças, tubérculos e verduras. Os alimentos são vendidos em feiras livres em Caracas”, explica o técnico agrícola Rafael Quiroga, do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Brasil.
O MST, junto com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), trabalha em um projeto de produção de sementes crioulas na Venezuela, e Junquito é uma das comunidades onde o projeto também está sendo implementado.
De acordo com informações do Ministério de Agricultura Urbana da Venezuela, a expectativa é colher, esse ano, cerca de 320 mil toneladas de alimentos nas hortas urbanas venezuelanas. Além disso, outras 70 mil toneladas são produzidas por campesinos beneficiados terras da reforma agrária próximo ao perímetro urbano.
O ministro de Educação, Elias Jaua, também informou recentemente que mais de 2.500 colégios espalhados pelo país já cultivam hortas urbanas, e os alunos contam com a instrução de técnicos agrícolas contratados pelo Estado.
Mercado a céu aberto
Diante da crise econômica, a Venezuela tem buscado alternativas para comer melhor e mais saudável. Se por um lado alimentos como trigo, açúcar e óleo de soja são caros e difíceis de encontrar, por outro, aumentou a oferta de alimentos saudáveis e com preços mais acessíveis. As feiras agrícolas e as hortas urbanas estão em todas as partes de Caracas, dos mais ricos aos mais pobre dos bairros.
“É certo que faltam alguns produtos, mas temos que admitir que essa crise nos está ensinando a comer mais saudável”, afirma a produtora de cinema Alejandra Sánchez.
Nas ruas, nas calçadas, nas praças e beiras de rodovias, lá estão os “mercados a céu a abertos”, como são chamadas a feiras livres na Venezuela. Além de mais frescos, os produtos das feiras chegam com melhor preço.
Como na política, a distribuição de alimentos na Venezuela tem uma clara divisão entre esquerda e direita. A Praça Venezuela, que marca o fim dos bairros de maioria chavista e o começo da zona opositora, na prática funciona como linha invisível que separa duas classes sociais e duas ideologias que polarizam o país há quase 20 anos.
A zona opositora, conformada pela classe média alta, tem suas próprias feiras, com alimentos fornecidos por grande produtores rurais, e supermercados com preços exorbitantes, onde não falta quase nada.
“Quando chega ao final do mês e fazemos as contas de quanto estamos gastando com comida, nos assustamos. O valor é altíssimo”, relata Magda Cantillano, moradora do bairro Bello Monte, no município de Baruta, zona metropolitana de Caracas. Ela faz compras na feira livre do bairro, organizada pela prefeitura, que é administrada pelo prefeito Geraldo Blyde, do partido Primera Justicia, opositor ao governo Maduro.
Os trabalhadores da feira são identificados com um colete, que na parte da frente leva o nome do partido do prefeito e, atrás, a inscricão “Los Justiciero” (Os Justiceiros, em português). Os produtos vendidos nessa feira são produzidos no estado de Mérida, região andina de maioria opositora.
Já no centro e no oeste da cidade, regiões onde se concentra a classe trabalhadora, a maior parte dos alimentos vem do estado de Lara, região central do país, onde os movimentos sociais camponeses têm grande influência. Os produtos também são mais baratos. Alguns deles, como o queijo, pode custar até a metade do preço dos supermercados e feiras da zonas leste de Caracas.
“Venho comprar aqui porque é uma forma de economizar, mas também encontramos produtos que muitas vezes não têm nos supermercados”, explica a servente de escola, Blanca Fernandez, que faz feira no “Mercado a céu aberto da Comuna Cuna Libertador” (Comuna Berço do Libertador, em português), ao lado da Praça Bolívar, no centro da cidade.
Quando perguntada sobre a falta de produtos nas prateleira dos mercados, a trabalhadora tem a explicação na ponta da língua. “Estamos em uma guerra econômica, liderada pelos EUA, e que está afetando principalmente ao povo pobre da Venezuela”, afirma a funcionária de escola pública.
Desde o começo desse ano, essa "guerra"contra a Venezuela, denunciada pelo governo Maduro, foi intensificada. Para superar a falta de alguns produtos, as classes sociais encontraram diferentes caminhos. Enquanto a burguesia trás do exterior o que lhe falta no país, os trabalhadores do centro e do oeste da cidade construíram uma forma de organização popular para garantir que nenhum alimento e produto de primeira necessidade falte às famílias.
Só no centro de Caracas existem mais de 50 mercados a céu aberto, que comercializam alimentos de pequenos agricultores e também das hortas urbanas.
Clap, mais que cesta básica
Hoje, produtos de consumo básico, como comida, material de limpeza e de higiene pessoal (sem grande variedade de marcas), estão disponíveis no mercado, mas nem sempre são acessíveis a todos, devido ao preço. Por isso, foram criados em alguns bairros populares os Comitês Locais de Abastecimento e Produção (Clap), cujo o objetivo é superar a crise dos últimos dois anos.
Os Clap é uma nova forma de organização criada em 2016 que, em geral, reúne de três a quatro comunas. Através dessa estrutura social, o Ministério da Alimentação cadastra e distribui alimentos subsidiados pelo governo, entregues em uma cesta básica chamada de “cesta Clap”.
Porém, os Clap vão muito além. Os moradores de bairros populares e pequenos camponeses começaram a produzir alimentos e itens que estavam em falta no país. Produtos como sabonete, shampoo, detergente, diversos materiais de limpeza, creme dental, roupa e alimentos são fabricados de forma artesanal, vendidos ao governo e incluídos na “cesta Clap” da região onde são produzidos.
Segundo informações divulgadas pela Agência Venezuelana de Notícias, meio de comunicação público vinculado ao governo nacional, há mais de 32 mil Clap espalhados pela Venezuela. Desse total, 30% são de Clap produtivos, que desenvolvem projetos nas áreas de agricultura, higiene e têxtil.
Além de impulsionar a produção dos Claps, o governo venezuelano prevê a construção de 10 mil padarias comunitárias até o final desse ano. Algumas já estão em funcionamento e produzem pão com o trigo que o governo começou a importar da Rússia, em agosto. Segundo o presidente Nicolás Maduro, serão importados 60 mil toneladas de trigo russo por mês, o que seria suficiente para suprir 60% da demanda desse produto.
No setor de limpeza, cerca de 700 famílias já fabricam mais de 28 mil produtos mensais, de acordo com dados da Fundação para o Desenvolvimento e Promoção do Poder Comunal (Fundacomunal), ligada ao governo Maduro. Além disso, no ano passado, o governo liberou o financiamento para custear 1.800 projetos de agricultura familiar desenvolvidos pelos Clap, de acordo dados do Ministério da Agricultura Urbana.
Edição: Camila Rodrigues da Silva
30 de Setembro de 2017
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