100 anos da Revolução Russa: em busca dos sentidos perdidos
- Opinión
Possivelmente para as gerações nascidas após a ascensão da hegemonia neoliberal, falar em revolução pode soar um tanto quanto tresloucado. Nestes tempos onde o neoliberalismo, enquanto racionalidade, impõe uma lógica em que o presente é autodescrito como único possível, o futuro desejado passa a ser uma mera continuidade aperfeiçoada das contingências presentes. Sem imaginação política, o sujeito neoliberal consegue, quando muito, projetar mundos alternativos enquanto distopia.
Neste início de século XXI, a noção de que através da ação coletiva setores da humanidade podem tomar para si seus destinos, projetando uma nova sociedade construída no presente através de uma revolução ganha, em certo sentido, renovados ares subversivos. A ocasião do centenário da Revolução Russa nos permite resgatar hoje esta inquietante ideia da revolução.
Considerada a maior das revoluções políticas já registrada, onde inúmeros livros testemunham esta ruptura na ordem do mundo, assim como sua repercussão internacional imediata (como no clássico “Os dez dias que abalaram o Mundo”, de John Reed). A vitória em outubro de 1917 dos bolcheviques liderados por V.I. Lenin, nos convida a mais uma vez rememorar seus sentidos, mitificações e legados. Tomando aqui emprestado livremente o título do romance de Marcel Proust, talvez seja a hora de partirmos em busca dos sentidos perdidos da Revolução Russa.
Este esforço nos parece relevante para tentar identificar naquela que foi apontada como a “mãe das revoluções” do século XX, alguns aspectos significativos de seu processo. Indo ao encontro de Alvaro García Linera, vice-presidente da Bolívia, em livro “O que é uma revolução?”, lançado este ano, quando apontou que “Hoje recordamos a revolução soviética porque ela existiu, porque por um segundo despertou nos plebeus do mundo a esperança de que era possível construir outra sociedade...” Mas também “a recordamos porque ela fracassou de maneira estrepitosa, devorando as esperanças de toda uma geração de classes subalternas.”. Desta forma, que entendemos que através de uma melhor compreensão de sua natureza histórica, legados, limites e contradições; podemos renovar alguns de seus sentidos na atualidade.
Fruto de uma revolução vitoriosa, o primeiro regime político de orientação comunista a atingir o poder se estabeleceu em condições muito particulares. O ano de 1917 na Rússia foi de uma efervescência social multitudinária como poucas vezes se viu na história. O dia 25 de outubro (7 de novembro no calendário atual), quando da tomada do Palácio de Inverno pelo Comitê Militar Revolucionário do Soviet, derrubando o já decrépito governo de Kerensky, instituindo um governo revolucionário, comandado pelo Conselho dos Comissários do Povo, presidido por Lenin, só pode ser melhor compreendido a luz dos processos sociais que o antecederam.
Muito distante de poder ser enquadrado como um inesperado “golpe de estado”, a evolução do processo revolucionário entre fevereiro e outubro de 1917, ilustra bem como não se trata de uma minoritária conspiração de agitadores profissionais, mas de uma rica e acelerada assimilação de uma experiência política em escala de massa, de um deslocamento constante das relações de forças, acompanhando uma contínua radicalização de setores populares.
A queda do czarismo em fevereiro e a criação de um governo provisório, sob a direção do liberal príncipe Lvov, poderia, comparado ao ocorrido em outros contextos, estabilizar a Rússia e permitir o ingresso do país em um modelo político ocidentalizado. Não foi o que ocorreu. Um país debilitado, mergulhado em uma profunda crise econômica e envolvido em uma guerra que não era sua, nos meses que seguiram-se com o socialista-revolucionário Kerensky comandado o governo provisório, não se encontrou estabilidade alguma. A permanência da Rússia na guerra prolonga e aprofunda sua crise política. O partido bolchevique compreendeu a natureza do momento e a partir da aprovação das Teses de abril, onde estes proclamam sua oposição radical ao governo provisório e lançam uma consigna política que, como rastilho de pólvora, corroboraria para incendiar o país: Paz,Terra e Pão.
Paz era a saída da Rússia da guerra, terra seria promover a reforma agrária e pão garantir comida a todos. O acerto desta política permite que o partido liderado por Lenin capitalize e absorva a crescente insatisfação social. Trotski, na sua obra “História da Revolução Russa”, analisa esta radicalização de forma minuciosa, de eleição sindical em eleição sindical, eleição municipal em eleição municipal, junto aos operários, camponeses e soldados. Este crescimento acelerado e fulminante se observa, por exemplo, que os bolcheviques representavam apenas 13% dos delegados ao congresso dos Sovietes de junho; em outubro, as portas da revolução, eles já representam entre 45% e 60%.
As coisas mudam neste curto intervalo de meses com as “Jornadas de Julho” e a tentativa de golpe militar do general Kornilov, em setembro. As forças militares se desorganizam e na resistência ao golpe - liderada pelos bolcheviques e a maioria dos sovietes - uma parcela dos soldados, em sua maioria de origem camponesa e clamando pelo fim da guerra, se incorpora ao movimento revolucionário. O exército quase se funde com a sociedade e esta, por sua vez, se arma.
Os bolcheviques aproveitaram, com maestria, o que Lenin chamou de “situação revolucionária”. A insurreição representa o resultado e a conclusão provisória de uma prova de força que amadureceu ao longo de 1917. Como aponta Daniel Bensaïd , neste processo “o estado de espírito das massas plebeias esteve sempre à esquerda dos partidos e de seus estados-maiores, não somente dos socialistas revolucionários, mas mesmo daqueles do Partido Bolchevique ou de uma parte de sua direção (até inclusive sobre a decisão da insurreição)”.
Identificar quem “fez a revolução” nos ajuda, em parte, a compreender alguns dos seus desafios posteriores. Se não foi um ato conspiratório de um pequeno grupo, por certo também não se deu da forma representada por alguns de seus comentaristas e entusiastas. Derivada de uma certa leitura do marxismo que depositavam no proletariado uma condição de protagonismo quase que exclusiva na construção do socialismo, muitas vezes exagerou-se na efetiva importância do operariado para a vitória da revolução e, principalmente, na sua continuidade. Se é um fato que imensos contingentes de operários estiveram na linha de frente do processo revolucionário em Petrogrado, Moscou e outros centros industriais russos, sem o apoio das massas camponesas (que representavam a maioria da população) a revolução dificilmente teria saído exitosa.
Reside neste ponto a situação paradoxal de que a base social da revolução era simultaneamente ampla e estreita. Ampla na medida em que repousava sobre a aliança entre operários e camponeses, a esmagadora maioria social. É estreita na medida em que o elemento operário, já minoritário, é rapidamente eliminado pelos desgastes da guerra e as perdas da guerra civil. A eliminação física de parcelas significativas da vanguarda social que impulsionou a revolução, coloca em evidência o fenômeno da pirâmide invertida. Como sintetiza Bensaïd, “Não era mais a base que levava e empurrava o topo, mas a vontade do topo que esforçava-se de carregar a base. Daí a mecânica da substituição: o partido substitui ao povo, a burocracia ao partido, o homem providencial ao conjunto. Mas esta construção só se impõe pela formação de uma nova burocracia, fruto da herança do antigo regime e da promoção social acelerada de novos dirigentes.”
Este aspecto permite problematizar uma outra mistificação corrente nos debates sobre a revolução russa, que é o de atribuir todas as virtudes e conquistas soviéticas a sua fase inicial, debitando todos os problemas ao período stalinista iniciado em 1930, minimizando, assim, alguns equívocos tomados já nos primeiros momentos da revolução.
Como antevimos, a burocratização que sufocaria o socialismo soviético possui raízes sociais que acompanham quase imediatamente seus primeiros anos. Fica claro, por exemplo, que a atividade policial da Tcheka ganharia uma lógica própria já em seu nascimento; assim como o desterro político de opositores nas ilhas Solovski está aberto depois da guerra civil e antes da morte de Lenin. Outro erro político que se mostrou fatal nesta fase foi a supressão da pluralidade de partidos, a liberdade de expressão limitada, a restrição aos direitos democráticos no próprio partido a partir do 10° Congresso de 1921, que proibiu tendências e facções internas, adotando-se um modelo partidário monolítico. Assim, o processo que muitos analistas críticos chamam de “contra-revolução burocrática” não foi um acontecimento simples, datável e simétrico da insurreição de Outubro. Ele não se realizou em um único dia, mas sim em decorrência de escolhas, enfrentamentos e contingências sociais.
O fenômeno contra-revolucionário do stalinismo possui vínculos genuínos com a revolução bolchevique e, em certa medida, aprofundou problemas e impasses gestados ainda no período liderado por Lenin, Neste pequeno esboço de um balanço da centenária revolução russa, não se negará, por certo, a importância da figura histórica de Stálin, inexpressiva na revolução de 1917 mas com reconhecido papel na vitória dos aliados contra o nazi-fascismo na IIº Guerra Mundial. Seu legado político, o stalinismo, por outro lado, ainda que encontra-se em contínua decadência e com raros defensores, ainda segue pendende a tarefa de colocá-lo plenamente no ostracismo em suas reminiscências. Para além de inúmeras questões teóricas, no âmbito do marxismo (mas não apenas), que poderiam aqui ser pontuada, os crimes políticos do stalinismo, representados pela vasta pilha dos corpos de seus opositores assassinados pelo regime, interditam e tornam ilegítima qualquer tentativa de reabilitá-lo neste século XXI.
Escapando de anacronismos e não negando a existência do stalinismo enquanto fenômeno subsequente a revolução, se quisermos regatar e atualizar os sentidos e potências revolucionárias contidas em 1917, passa pela necessidade de romper totalmente com os cânones e a penumbra stalinista. Para assim identificar com maior precisão a magnífica força transformadora liberada pelas massas no processo revolucionário.
Olhando retrospectivamente, as condições adversas encontradas para o novo regime se estabelecer, emoldurada pela sangrenta guerra civil de 1918, encerrada apenas em 1922, conferem ares de uma verdadeira epopeia. As probabilidades de uma restauração não eram pequenas. Os primeiros anos do governo revolucionário, em uma Rússia empobrecida e arrasada pela guerra, foram especialmente adversos. Parecia que o fato de a revolução ter eclodido de forma solitária num dos “elos mais fracos do capitalismo”, cobrava suas duras consequências. Por esta razão que o apelo internacionalista que percorria as políticas bolcheviques tinham um papel estratégico. A necessidade da expansão europeia da revolução era encarada como uma necessidade, mas que veria-se frustrada, colocando a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, fundada em 1922, por alguns anos como a única república de orientação socialista no planeta.
Neste quadro adverso, ganha ainda mais relevo as conquistas e transformações sociais atingidas já nos primeiros anos da revolução, demonstrando como uma revolução genuína libera forças sociais não pré-determinadas e em múltiplas e profundas direções.
A questão da emancipação das mulheres é um exemplo eloquente. Nos tempos do czarismo, as mulheres eram formalmente submetidas aos homens. Leis czaristas permitiam explicitamente que o homem usasse de violência contra sua esposa, inclusive em algumas áreas rurais, as mulheres eram forçadas a usar véus e impedidas de aprender a ler e escrever. No período entre 1917 e 1927, toda uma série de leis foram aprovadas, dando às mulheres igualdade formal aos homens. O Partido Comunista, em 1919, proclamou em seu programa: “Não se limitando à igualdade formal das mulheres, o partido se esforça para liberá-las dos fardos materiais do trabalho doméstico obsoleto, substituindo-o por casas comunais, refeitórios públicos, lavanderias centrais, berçários, etc.”. O aborto foi legalizado em 1920, o divórcio foi simplificado e o registro civil de casamento foi introduzido, assim como o conceito de filhos ilegítimos foi abolido.
Poderíamos apontar ainda as impressionantes transformações no plano cultural, quando no âmago do processo revolucionário, uma nova arte buscou se expressar através de experimentalismos e uma defesa de uma arte engajada teve participação ativa nas disputas políticas daquele contexto. A artes visuais, por exemplo, seriam uma forma de educar e transmitir informação, em um quadro onde na virada do século XIX, a Rússia possuía uma proporção de iletrados entre 90 e 95%. (Chesnais, 1989). A luta pela superação do analfabetismo motivou um dos mais vastos programas de expansão educacional pública que se têm registro. A visão de Lenin e outros dirigentes comunistas era de que sem a educação das massas, não haveria forma do povo conscientemente apoiar e construir a transição para o comunismo. Este foi um processo não se deu apenas do topo para a base, mas na própria base da sociedade movimentos buscavam impulsionar estas transformações, como no notável exemplo dos estudantes de Odessa que mobilizaram-se por mudanças no currículo de história.
O que se pretende aqui, com estes exemplos (muitos outros poderiam ser agregados) é destacar um dos aspectos que merecem ser retidos e renovados na atualidade, que é o apelo da revolução ao despertar dos vencidos da história. Como o historiador Isaac Deutscher escreve, a revolução é precisamente “esse momento breve, mas carregado de sentido, quando os humildes e oprimidos têm, enfim, direito à palavra, e esse momento redime séculos de opressão.”
Para o bem ou para o mal, os sentidos da Revolução Russa neste século XXI serão muito diversos daqueles que se sucederam ao longo do século XX. Nestas linhas não se pretendeu esgotar o debate, mas apontar alguns aspectos que se inserem neste esforço de resgate de sentidos históricos e políticos. Se a hegemonia neoliberal busca neutralizar qualquer transformação profunda, proclamando que acabaram a era das revoluções, compreender a revolução russa pode ser um frutífero caminho para indagar não se ainda haverão revoluções, mas de tentar buscar algumas pistas de como elas poderão vir a ser.
Se a história, como sabemos, jamais se repete, por outro lado, nestas memórias da revolução e em suas novas simbologias, poderão residir elementos que animem e inspirem transformações futuras. Socialismo e comunismo possuem (e possuirão) novas formas neste século. A própria noção de revolução parece buscar um novo sentido. Se a via insurrecional inaugurada em 1917 não está posta na ordem do dia, em um momento de capitalismo pós-democrático, “as revoluções do século XXI mostram que este último chega a se realizar por meio de eleições democráticas”, como afirma Garcia Linera, a partir dos exemplos inaugurados na América Latina pelos governos de Salvador Allende no Chile, Hugo Chavez na Venezuela e Evo Morales na Bolívia. Estes são apenas alguns dos caminhos que refletem a atualidade da ideia da revolução, que como nos versos da cantora chilena Violeta Parra, nos convidam a “volver a los 17 depués de vivir un siglo”.
25/10/2017
https://jornalggn.com.br/blog/erick-da-silva/100-anos-da-revolucao-russa...